terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Os limites subjetivos da coisa julgada e seus efeitos no CARF

Dúvidas não existem sobre a impossibilidade de concomitância de disputas judicial e administrativa envolvendo o mesmo tema e um único contribuinte. Este tema, por demais conhecido, inclusive, é o objeto da Súmula nº 1 do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF1.

O acórdão que hoje trazemos à tona aborda temática relacionada à Súmula nº 1, mas refletindo uma tentativa do Fisco em não reconhecer a existência de decisão judicial, de modo a manter a disputa na esfera administrativa em relação ao crédito tributário devido no desembaraço aduaneiro de mercadorias.

A disputa em análise decorreu de auto de infração para cobrança de crédito tributário advindo da divergência acerca da enquadramento fiscal de determinada mercadoria importada, situação esta bastante frequente e sobre a qual já tratamos em outras ocasiões neste espaço2.

A peculiaridade do acórdão hoje comentado trata da interpretação dada pelo Fisco quanto aos limites subjetivos da coisa formada em âmbito judicial. Isso porque antes mesmo da lavratura do auto de infração que deu origem à disputa administrativa, a contribuinte havia ajuizado ação declaratória objetivando assegurar o direito à utilização da classificação fiscal que entendia pertinente em relação à mercadoria importada, tendo sido tal ação declaratória ajuizada em nome do estabelecimento matriz da contribuinte (CNPJ Matriz).

Em tal ação declaratória a Contribuinte obteve o reconhecimento judicial acerca da classificação fiscal solicitada e, portanto, passou a utilizá-la para o registro das Declarações de Importação e desembaraços das mercadorias por ela importadas, geralmente em operações de importação sob conta e ordem.

Ocorre que para o Fisco tal decisão somente teria efeito em relação às importações realizadas pelo estabelecimento matriz da contribuinte, na medida em que a ação judicial teria sido promovida por aquele estabelecimento/CNPJ. Assim, todas as importações realizadas pelos estabelecimentos filiais da contribuinte não estariam amparados pela decisão judicial alcançada na ação declaratória em face da individualização dos estabelecimentos. Nesta linha, foi sustentado no auto de infração, citando jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que “a existência de registros de CNPJ diferentes caracteriza autonomia patrimonial, administrativa e jurídica de cada um dos estabelecimentos”, razão pela qual “matriz e filiais operam de modo independente em relação aos demais”, o que ensejaria o lançamento do crédito tributário em relação à filial importadora em face da divergência de entendimento quanto à classificação fiscal da mercadoria importada, entendimento este que foi acolhido pela decisão da Delegacia Regional de Julgamento.

Em sede de recurso voluntário foi sustentada a necessidade de aplicação do disposto no artigo 15 da Lei nº 9.779/99, o qual, no entender da contribuinte, teria o condão de impor o reconhecimento de que os tributos federais são devidos e recolhidos de forma individualizada pelo estabelecimento matriz, reforçando assim a unicidade que uma matriz e suas filiais formam conforme dispõe o artigo 75, §1º do Código Civil.

Evidentemente, não há dúvidas que para fins societários as filiais são parte do acervo de uma mesma pessoa jurídica, não subsistindo sem a sua matriz. Em outras palavras, societariamente e perante terceiros as filiais somente assumem obrigações em função da existência de uma entidade jurídica que lhes dá validade, sendo tal condição publicizada pelo fato de o CNPJ raiz ser sempre o do estabelecimento matriz.

Deste modo, não haveria como evitar a extensão dos efeitos da decisão judicial obtida pelo estabelecimento também em relação aos atos jurídicos praticados pelos estabelecimentos filiais daquela Contribuinte, inclusive os relacionados ao desembaraço de mercadorias importadas, ainda mais tratando-se de uma ação declaratória e não um mandado de segurança contra ato específico de autoridade coatora.

Quando da análise do recurso voluntário, destaca-se do voto proferido pela conselheira-relatora a evidente surpresa com o ousado entendimento do Fisco quanto à interpretação dada à decisão judicial e aos limites subjetivos da lide, tendo em vista que a Contribuinte “ao invés de ter o seu direito, já declarado e resguardado pelo Poder Judiciário, simplesmente cumprido pelas autoridades administrativas, a Recorrente foi sendo envolvida em um emaranhado de atos que levam não só à injustiça, como também à insanidade do que diz respeito ao próprio direito”.

Com efeito, embora não tenha sido aprofundado o tema no curso do julgado, há de se destacar que a medida judicial adotada pela Contribuinte tratou-se de uma ação ordinária (ação declaratória), com efeito preventivo a fim de assegurar o reconhecimento da classificação fiscal mais indicada para a mercadoria objeto de importação. Justamente por tal detalhe é que restou ainda mais evidente a ilegalidade do auto de infração ao tentar afastar a filial dos efeitos da decisão judicial, pois ali não se estava tratando de um combate a ato coator específico (um desembaraço aduaneiro, por exemplo), mas sim se pretendeu alcançar uma declaração judicial que reconhecesse a correta classificação fiscal de uma mercadoria, de modo a restar assegurado que aquela classificação fosse adotada sempre que importada a mercadoria pela Contribuinte, independentemente de qual estabelecimento em específico fosse responsável pela importação, ante a unicidade da personalidade jurídica da matriz e suas filiais.

Nesta linha, em atenção à “unicidade da jurisdição adotada no sistema brasileiro”, nos parece ter andado bem a decisão da turma ordinária da Terceira Seção que, de forma unânime, reconheceu a “insubsistência do auto de infração, uma vez que sua motivação (extensão dos efeitos da sentença judicial transitada em julgado em favor do estabelecimento matriz, também para a filial da empresa), foi levada à apreciação do Poder Judiciário, que a julgou em favor da Contribuinte” (Acórdão nº 3402-005.137).

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1 Súmula CARF nº 1

Importa renúncia às instâncias administrativas a propositura pelo sujeito passivo de ação judicial por qualquer modalidade processual, antes ou depois do lançamento de ofício, com o mesmo objeto do processo administrativo, sendo cabível apenas a apreciação, pelo órgão de julgamento administrativo, de matéria distinta da constante do processo judicial. (Vinculante, conforme Portaria MF nº 277, de 07/06/2018, DOU de 08/06/2018).

2 https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-do-carf/a-literalidade-em-socorro-a-classificacao-fiscal-26092017

THALES STUCKY – Advogado, LL.M. em Tributação Internacional pela New York University e Ex-presidente do Instituto de Estudos Tributários – IET. Sócio de Trench, Rossi e Watanabe Advogados

Fonte: Jota

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