Para Friedrich Nietzsche, a antiquíssima dicotomia sobre o absolutismo do bem ou do mal se relaciona ao "instinto de rebanho", que indica que a moral ensina a só atribuir valor em função do "rebanho", que também poderia ser traduzido sociedades. Contudo, o indivíduo deve ir além dessa mera sistemática binária.
A polêmica em torno dos benefícios fiscais outorgados pelos Estados sem a aprovação do Confaz, se ilegais e inconstitucionais, não é tão anciã como essa dicotomia do bem e do mal, mas já atravessa décadas e não pode ser adstrita a um instinto de rebanho. A questão é complexa e devemos transcender o mero achismo.
A redução do principal tributo sobre o consumo, e o principal dos Estados, é sim sinônimo de atração de investimentos
Muito se escreveu sobre a chamada "guerra fiscal dos Estados" – denominação criada para descrever a luta dos Estados para atrair investimentos por meio de outorga de benefícios fiscais, mas sem a observância dos requisitos da Constituição Federal e da Lei Complementar nº 24/75. Há uma verdadeira demonização desses benefícios, que, em geral, representam uma redução do ônus do ICMS.
O objetivo deste texto não é discutir a legalidade ou inconstitucionalidade desses benefícios, mas enfatizar que a chamada guerra fiscal não foi uma medida sem "pé nem cabeça" endereçada a acabar com o Estado brasileiro: um mal institucionalizado.
Ela foi a consequência de um país desigual, social e economicamente. Nossa Constituição, celebrada em diversos aspectos, também criou inúmeras distorções: de um lado, tentou sedimentar princípios caros a uma democracia renovada, de outro, centralizou direitos e descentralizou obrigações de forma amplamente desproporcional, concentrando as receitas tributárias na União e deixando muito pouco a Estados e municípios e, desse pouco, menos ainda àqueles fora do eixo de maior densidade do Sudeste-Sul.
Fato é que a guerra fiscal não é um "monopólio perverso" dos Estados brasileiros. Na Alemanha, por exemplo, os municípios têm certa ingerência sobre o chamado Gewerbesteuer e o diminuem para atrair empresas; alguns Estados americanos, como Delaware, oferecem diversos incentivos.
Não faz qualquer sentido para aquele que dependa de mercado consumidor relevante, alocar investimentos em Mato Grosso do Sul ou Goiás. Em um país continental, com transporte por caminhões e infraestrutura subsaariana, fazer com que uma indústria se aloque longe de São Paulo, onde se concentram 40 milhões de pessoas e 33% do PIB nacional, pode significar aumento de custos e riscos.
A redução do principal tributo sobre o consumo, e o principal dos Estados, é sim sinônimo de atração de investimentos. Inúmeras indústrias não estariam nesses Estados se não fossem por incentivos, seja para fazer frente à elevação dos custos com logística, risco empresarial, seja pela falta de mão de obra qualificada etc. Quem não preferiria importar pelo porto de Santos, o mais próximo de São Paulo, quem não gostaria de se instalar à beira da Rodovia dos Bandeirantes?
É certo que os incentivos beneficiam os negócios dessas empresas que resolveram explorar o interior do Brasil, mas igualmente é certo que os Estados receptores também se beneficiaram. O benefício que hoje é demonizado e intitulado como saqueador das contas públicas estaduais, na verdade, não pode ser encarado por essa faceta: se não existisse, não haveria qualquer recolhimento de ICMS por parte da empresa beneficiada, pois ela não estaria ali. Não houve redução da receita, mas aumento, mesmo que não diretamente proporcional ao aumento do PIB local. O benefício criou a arrecadação; se de 5 ou 15, isso é outra questão.
Não podemos desprezar o aumento do número de empregos formais (um dos requisitos básicos desses incentivos é a comprovação da criação de empregos), renda das pessoas e da economia regional. É muito comum fecharmos os olhos para este incremento: pessoas com renda adquirem, gastam, investem, fazem outras investirem, venderem, gastarem e, assim, pagarem tributos. Em um país, em que a carga tributária é fortemente incidente sobre o consumo, aumentar o movimento e a economia locais significa, por via de consequência, aumentar a arrecadação, como atestam alguns institutos, como o Instituto Mauro Borges (IMB) em Goiás. Em estudo da jurista goiana Liz Guedes Vecci, o mero fim dos benefícios pode trazer danos desastrosos para alguns Estados.
As normas acima não vieram consolidar o "mal" guerra fiscal, mas dar segurança jurídica momentânea à situação. Nesse meio tempo, medidas compensadoras precisam, necessariamente, ser implementadas para equalizar o provável direcionamento de investimentos aos maiores mercados consumidores. Não é simplesmente convalidar os benefícios por um tempo e esquecer. Rapidamente, o problema volta mais forte. Falta de desenvolvimento e investimento vêm em forma de deterioração da renda, saúde, infraestrutura e ainda aumento de violência, analfabetismo etc.
Portanto, parece-nos que nenhum desastre foi concretizado com a lei e o convênio citados. Contudo, se nada for feito para ajustar o pacto federativo de forma ampla e em razoável prazo, ou se uma (desejada!) reforma tributária vier alterar o sistema, mas sem trazer instrumentos que considerem os aspectos socioeconômicos regionais, aí sim a edição dos dois portfólios de normas criará a redução dos investimentos nos Estados afetados, em particular sua desindustrialização. Aí sim, ambos dispositivos terão sido um mal ao país.
Paulo César Teixeira Duarte Filho é doutor em Direito Econômico, pela Vienna University of Economics and Business, mestre em Direito Tributário Internacional pela Ludwig-Maximilians-Universität München e sócio do escritório Stocche Forbes Advogados em São Paulo
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Fonte : Valor
Via Alfonsin.com.br/
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