“Aquilo que os governos antigos arrebatavam pela guerra, nossos modernos obtêm com mais segurança pelo fiscalismo. É apenas a diferença desses meios que constitui sua verdade. Creio, no entanto, na possibilidade de um bom governo em que, respeitadas a liberdade e a propriedade do povo, ver-se-ia resultar o interesse geral, em contraposição ao interesse particular”. (Claude-Adrien Helvetius, carta a Montesquieu em 1748)
Escrevo a coluna neste sábado em que se comemora o Dia da Justiça. Isso significa o mesmo que o Dia Nacional de Respeito ao Contribuinte, o Dia do Saci Pererê e tantas outras festas e feriados que muitas vezes permitem descanso a advogados autônomos, que não têm férias de 60 dias por ano. Com espaço limitado, divido a pauta. Falo muito e me obrigo a escrever pouco.
Nosso sistema tributário trata-nos como “burros de carga”: cobra-nos uma das maiores cargas tributárias do mundo, sem recebermos os serviços e benefícios adequados em troca.
Se alguém perguntasse por que o brasileiro trabalha menos do que pessoas nascidas em outro país qualquer, a resposta seria: ganha pouco pelo que faz, não tem as garantias merecidas etc.
Na coluna de 7 de maio de 2018, com o título "Somos escravos do fisco desde os tempos do Império Romano", registramos notícia da Folha de São Paulo produzida em São Paulo, Recife e Rio de Janeiro, com um trágico título: “Viver com até R$ 47 por mês obriga a escolher entre comida e higiene.” Esses R$ 47 de 2017 eram R$ 76 em 2016, segundo a reportagem. Houve queda de 38% de um ano para outro!
Ora, quem vive abaixo da linha de pobreza não é culpado, mas vítima. O salário mínimo deste país é vergonhoso e inconstitucional, pois não obedece ao disposto no artigo 6º da nossa Lei Maior.
Com a crise econômica que ainda não foi debelada, vemos que muitas empresas cortam benefícios sociais e reduzem o quadro de funcionários. Neste dia em que escrevo, almocei num restaurante onde reduziram o número de empregados. O mesmo acontece em muitas lojas e até em postos de abastecimento de combustíveis. O atendimento fica ruim e o empresário perde clientes. Assim a vaca vai para o brejo...
Inadimplentes
Com tal situação, registra-se um fantástico número de pessoas que não conseguem pagar suas contas. Os donos do país, ou seja, as instituições financeiras, realizam a proeza de obter lucros fantásticos, concedendo descontos de mais de 50% nos seus créditos.
Criam “feiras de renegociação” onde o devedor, se não for acompanhado de um advogado, torna-se vítima de extorsão, pagando o que não existe, está prescrito ou calculado de forma criminosa.
Um dos maiores bancos do país, que o TJ-SP considera “empresa amiga da Justiça”, cobrou quase 200 mil reais de um cliente que nada lhe devia! A suposta dívida não existia e estava prescrita há mais de dez anos! Depois de propor acordo não aceito, o banco viu-se condenado com decisão transitada em julgado pelo mesmo tribunal. A Justiça prevaleceu sobre a tentativa frustrada de crime. E há colegas que, em caso parecido, ironizam que “os honorários são o maná dos advogados”...
Outros bancos agem de forma similar. Quase todos terceirizam a cobrança. O que se considera o maior banco privado do país cedeu seus créditos para uma empresa que lhe pertence, criada há cerca de dois anos. O fabuloso lucro que tal cessão proporciona acaba sofrendo tributação menor. Afinal, o fisco brasileiro cobra muito imposto. Quando o inadimplente se vê com o nome sujo, constata que o do banco não aparece.
A cessionária do crédito, por sua vez, contrata empresas de call center que usam mão de obra quase escrava, especializada em fazer ligações em dias e horários inoportunos. As ligações podem ser feitas de qualquer cidade do país, onde não há empregos e um salário mínimo vale alguma coisa.
Reforma ineficaz
Uma reforma tributária é inadiável e inevitável, mas não pode ser ineficaz. A casa econômica do Brasil caiu. Quando a casa cai, não adianta trocar a janela e a pia da cozinha ou consertar o telhado. Novo edifício deve ser levantado. Ao lado da tributária, a previdenciária tem as mesmas características e tem que ser realizada.
Com relação aos impostos, devem ser eliminadas as imunidades, isenções e incentivos que enriquecem espertalhões. Já foi criada uma igreja, apenas para provar que bom negócio poderia ser. Logo depois fechou-se a arapuca... Precisamos reduzir a carga e a burocracia. Sem isso, qualquer reforma será ineficaz. Já existem projetos a serem examinados pelo Congresso.
O que impede a Justiça
A pretexto de incrementar a arrecadação e combater a inadimplência ou mesmo a sonegação, não se pode criar um clima de terrorismo tributário, com leis ou atos administrativos inconstitucionais. Pior ainda é quando o Presidente da República, a pretexto de consolidar um regulamento, nele incorpora esses mesmos atos ou inclui propostas de autoridades fiscais.
O atual Regulamento do Imposto de Renda (Decreto 9.580 de 22/11/2018) traz diversas injustiças que traem dispositivos da Constituição. Amplia os poderes do fisco, alguns próximos de verdadeiro terrorismo, como a possibilidade de tornar públicos atos de fiscalização antes de seu julgamento. Isso pode causar danos irreparáveis aos contribuintes, similares aos noticiados nesta revista em 05/01/1998 com o título O grupo Regino foi absolvido.
Pretende a Secretaria da Receita Federal criar uma Instrução Normativa que trata da “imputação de responsabilidade tributária”, contrariando todas as normas legais em vigor, inclusive o CTN! Diz a autoridade fiscal que estaria “no uso da atribuição que lhe confere o inciso III do artigo 327 do Regimento Interno da Secretaria da Receita Federal do Brasil, aprovado pela Portaria MF 430, de 9 de outubro de 2017...”
Todavia, não se atribui a qualquer autoridade qualquer poder que pertence ao Legislativo. A Constituição fixa a hierarquia legislativa, que o autor da proposta não pode ignorar. Já temos muitas leis com “jabutis” e nelas não cabem “mulas” sem cabeça”. Precisamos apenas de Justiça Tributária.
Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Fonte: Conjur
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