Brasileiros que mantinham dinheiro não declarado no exterior e aderiram ao Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT) – o chamado programa de repatriação – já estão sendo notificados pela Receita Federal para que comprovem a origem de tais recursos. O Fisco havia afirmado, há cerca de um mês, que isso poderia ocorrer.
"Há algumas dezenas de casos em andamento", informou ao Valor, por nota, a Receita Federal. A previsão para os próximos cinco anos, segundo levantamentos preliminares da área de gestão de risco do órgão, é de que sejam realizadas "centenas de auditorias".
Os contribuintes foram avisados ainda que as informações serão cruzadas com dados fornecidos por órgãos reguladores de outros países e que havendo inconsistência o caso será encaminhado ao Ministério Público Federal (MPF).
Os três casos do advogado envolvem pessoas que tiveram os nomes divulgados pela Panamá Papers, apuração coordenada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ) sobre offshores constituídas em paraísos fiscais com a ajuda do escritório panamenho Mossack Fonseca.
Jornalistas de 76 países publicaram, em 2016, reportagens a partir de 11 milhões de documentos vazados dessa firma e divulgaram os nomes de proprietários das offshores – empresários e políticos em sua maioria. Ter o nome na lista, porém, não significa que a pessoa tenha feito algo ilegal, já que as offshores não são proibidas.
O advogado René Ávila, especialista na área tributária, também foi consultado por pessoas notificadas pelo Fisco. Os casos, envolvem contribuintes que fizeram a declaração com base na "foto", ou seja, o saldo existente na conta no dia 31 de dezembro de 2014 – data prevista para a base do cálculo do tributo que seria recolhido.
Essa foi uma das questões polêmicas na época das adesões. O Fisco firmou entendimento de que a lei que instituiu o programa (nº 13.254, de 2016) não tratava só da "foto", mas do "filme". Isso quer dizer que o contribuinte deveria declarar toda a movimentação dos últimos cinco anos e não apenas o saldo do dia 31.
"A Receita Federal pode entender que tenha havido sonegação nesses casos, pois pela interpretação que deu à lei o contribuinte não terá feito a declaração na sua integralidade", diz o tributarista.
Há grande preocupação em relação a essas notificações porque aqueles que não conseguirem provar que os recursos são oriundos de atividade lícita, como determina a lei, correm o risco de exclusão do programa e, por consequência, enfrentar complicações penais.
Fora do programa de repatriação o contribuinte perde o direito à anistia penal. Sendo assim, pode ser processado por crimes como o de sonegação, evasão de divisas e lavagem de dinheiro.
O programa, que teve início em 2016, arrecadou R$ 46,8 bilhões para a União e teve a adesão de 25 mil pessoas físicas e 100 empresas. Já a segunda fase, em 2017, teve a adesão de 1.915 pessoas físicas e 20 empresas, arrecadando R$ 1,61 bilhão.
O anúncio da Receita sobre a exigência de comprovação da origem dos recursos foi feito há cerca de um mês por meio do Ato Declaratório nº 5. A norma modificou o item 40 do Perguntas e Respostas que havia sido publicado em seu site na época das adesões, em 2016, e servia para instruir os contribuintes sobre como interpretar a Lei nº 13.254.
A versão original estabelecia que o contribuinte deveria declarar a origem do bem, mas sem a obrigatoriedade de comprovação. "O ônus da prova de demonstrar que as informações são falsas é da Receita Federal do Brasil", dizia o texto.
Essa resposta ainda existe. Só que com o Ato nº 5 foram adicionadas três notas complementares. Na primeira consta que a desobrigação de comprovar a origem, por meio de documentos, valia somente para o momento da adesão. A segunda estabelece que o ingresso e a permanência no regime poderá ser objeto de fiscalização e a terceira informa que haverá "prazo razoável" para a apresentação dos documentos após intimação.
O professor da PUC-RS e vice-presidente do Instituto de Estudos Tributários (IET), Arthur Ferreira Neto, afirma que antes desse comunicado, no entanto, a Receita já havia enviado notificações a contribuintes. "Um auditor disparou uma intimação padrão para uma série de pessoas da grande Porto Alegre. Isso foi no fim de 2017. Não sabemos a motivação nem se já havia orientação interna."
O advogado protocolou petição na delegacia regional do órgão informando que pela lei de repatriação deveria haver algum indício ou elemento prévio apresentado pela Receita para que se iniciasse a fiscalização contra o contribuinte e solicitava tais dados. "Não dissemos que não iríamos fornecer, mas pedimos que nos informassem quais eram os indícios de que aqueles contribuintes haviam declarado recursos de origem ilícita", diz o professor. "Depois disso não tivemos resposta sobre o assunto."
A Receita Federal, na nota enviada ao Valor, afirma que as notificações não estão sendo enviadas de ofício, para todos que aderiram ao programa. "A área de gestão de risco da fiscalização processa diversos dados para, então, indicar situações a serem auditadas".
Para especialistas, ainda assim, não é o que prevê a lei e não era essa a interpretação do próprio Fisco quando os contribuintes fizeram a opção de aderir ao programa. "A única prova exigida era a da titularidade da conta. Sobre a origem, bastava uma declaração do contribuinte de que os recursos eram lícitos", diz José Henrique Longo, sócio do PLKC Advogados, escritório que, na época, foi contrato para fazer mais de 250 adesões.
O advogado entende ser "praticamente impossível" provar a origem dos recursos declarados. Segundo ele, são coisas muito antigas e as pessoas não têm os documentos. "Mas não dá para colocá-las em igualdade de condição a pessoas que praticaram atos de corrupção, por exemplo. Se existem essas pessoas cabe à Receita mostrar quem são", acrescenta.
Rodrigo Fragoso, que tem três clientes já notificados, não definiu se responderá ao órgão ou se ingressará com pedido na Justiça para que os contribuintes sejam liberados da exigência. Segundo ele, se houver indícios e a Receita conseguir provar que a declaração contém informações falsas, o órgão obviamente poderá fazer a exclusão. "Mas é a Receita que deve provar", enfatiza.
O advogado recorda que isso já aconteceu. Ele cita o caso de um ex-funcionário da Petrobras preso em 2017 na Operação Lava-Jato acusado de "lavar" R$ 48 milhões em propina por meio do programa.
Por Joice Bacelo | De São Paulo
Fonte : Valor
Via Alfonsin.com.br/
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