No último dia 15.10.2018, foi aberta a Consulta Pública RFB nº 4/2018 pela Receita Federal para receber opiniões sobre o programa a ser lançado para estimular as empresas a adotarem boas práticas fiscais mediante classificação conforme o grau de risco que representam.
Na linha do programa de iniciativa da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo conhecido como “Nos Conformes”1, a Receita Federal pretende criar mecanismos para induzir o compliance tributário das empresas oferecendo benefícios aos “bons” contribuintes e aumentando a rigidez na fiscalização dos “maus” contribuintes.
De acordo com a minuta da portaria submetida à consulta, a classificação em uma das categorias acima será atribuída anualmente e informada ao contribuinte por meio de comunicação enviada à sua caixa postal eletrônica. Diferentemente do programa estadual “Nos Conformes”, nos parece que a intenção inicial não é divulgar ao público a nota atribuída a determinado contribuinte.
Os contribuintes classificados na categoria “A” poderão gozar de certos benefícios, tais quais: (i) informação prévia sobre indício de infração apurado em análise realizada por Auditor Fiscal da Receita Federal antes de iniciado o procedimento fiscal, possibilitando ao contribuinte regularizar sua situação sem que tal medida implique a imposição das penalidades previstas na legislação tributária federal; (ii) atendimento presencial prioritário; (iii) prioridade na análise de demandas perante a Receita Federal, inclusive relativas a pedidos de restituição; e (iv) obtenção de Certificado de Conformidade Tributária emitido pela Receita Federal atestando sua conduta de bom pagador.
Em contrapartida, contribuintes classificados na categoria “C” ficarão sujeitos à inclusão no Regime Especial de Fiscalização estabelecido pela Instrução Normativa nº 979/096 e aplicação prioritária das medidas coercitivas previstas na Portaria nº 1.265/157, dentre elas a cassação dos benefícios fiscais.
Ressaltamos que a primeira minuta disponibilizada para consulta pública ainda deixa uma série de questões essenciais em aberto, tal qual a forma de aplicação dos critérios estabelecidos para fins de atribuição da nota aos contribuintes.
Além disso, a despeito da louvável iniciativa da Receita Federal de aproximar fisco e contribuintes, identificamos na proposta do texto normativo algumas questões controversas que devem ser apontadas pelos contribuintes nessa consulta pública.
Quanto a esse aspecto, vale mencionar que a proposta prevê a aplicação dos critérios de classificação levando-se em conta os períodos pretéritos (ano corrente e até os 4 últimos anos-calendário, a partir do ano de 2016). Essa disposição deve deixar muitos contribuintes desconfortáveis pois podem ser penalizados com relação a condutas adotadas anteriormente à vigência do programa.
Ainda, apenas os débitos com exigibilidade suspensa serão desconsiderados para fins de aplicação do critério de classificação com base no cumprimento da obrigação principal. Ficaram de fora os débitos garantidos pelo contribuinte em discussão judicial, o que nos leva a questionar a possibilidade de penalização do contribuinte que exerce legitimamente seu direito à ampla defesa e acesso ao Poder Judiciário sem que tal fato represente um prejuízo efetivo ao fisco, que tem a garantia da satisfação do crédito.
Mais uma demonstração de questionável arbitrariedade prevista no texto proposto decorre da aplicação de parâmetros pouco razoáveis para se obter a classificação dos contribuintes, tais quais os resultados dos pedidos de restituição e declarações de compensação ou existência de retificações reiteradas das declarações fiscais. Isso porque os contribuintes não podem se sentir constrangidos no exercício do seu direito de apresentar pedidos de restituição e/ou compensações ou mesmo de corrigir informações eventualmente prestadas de forma equivocada e que não implicam qualquer dano concreto ao fisco.
Outro ponto que merece breve menção diz respeito à possibilidade de cassação de benefícios fiscais concedidos a contribuintes em função da sua classificação. Ora, nos parece que apenas a lei teria essa prerrogativa, enquanto essa determinação estaria prevista em uma portaria8.
Para finalizar os comentários sobre a proposta do texto normativo, nos parece inadequado criar um programa dessa magnitude via portaria editada pela Receita Federal. Na medida em que o programa poderia implicar a penalização de contribuintes, entendemos ser necessária a edição de lei para sua instituição, em observância ao princípio da legalidade.
Esses são apenas alguns exemplos que deverão gerar questionamento na consulta pública – que fica aberta até esta quarta-feira (31/10) – e devem ser melhor explorados antes da edição do ato normativo. Não se pretende aqui esgotar todos os pontos controversos, mas ressaltar que a participação publica é imprescindível para atingirmos efetivamente o objetivo da norma – promover o bom relacionamento entre administração e contribuintes no intuito de aumentar a conformidade tributária, diminuir a inadimplência e o contencioso, e propiciar um ambiente de segurança e estabilidade para o desenvolvimento de negócios.
————————————
1 Programa instituído pela Lei Complementar nº 1.320, de 6.4.2018.
2 Para esta finalidade, serão consideradas: I – identificação da atividade econômica; II – identificação do responsável e do Quadro de Sócios e Administradores (QSA); e III – situação cadastral.
3 Nesse ponto, deverão ser observados os seguintes critérios: I – conformidade e compatibilidade entre as informações das escriturações e das declarações de confissão de dívida tributária entregues à RFB; II – iniciativas de conformidade a que o contribuinte foi submetido; III – mudança de comportamento após a realização de iniciativas de conformidade; IV – resultados dos pedidos de restituição, reembolso e ressarcimento e das declarações de compensação; V – validações dos créditos tributários vinculados a suspensão judicial; VI – lançamentos decorrentes de procedimento de fiscalização; VII – análises das declarações relativas ao desembaraço aduaneiro; VIII – manutenção dos requisitos para fruição de benefícios fiscais e regimes especiais de tributação; e IX – representações fiscais para fins penais.
4 Sob esse item, deverão ser observados os seguintes critérios: I – apresentação de todas as declarações e escriturações às quais o contribuinte estiver obrigado; II – tempestividade na entrega das declarações apresentadas; e III – retificações reiteradas de declarações.
5 Quanto esse tópico, deve-se observar: I – regularidade e tempestividade dos pagamentos; II – parcelamentos rescindidos; e III – encaminhamento de débitos para inscrição em Dívida Ativa da União.
6 O artigo 4º da Instrução Normativa nº 979/09 prevê as medidas que podem ser adotadas pela Receita Federal em função da adoção do Regime Especial de Fiscalização. Vejamos:
“Art. 4º A aplicação do REF poderá ter como consequência a adoção das seguintes medidas, isolada ou cumulativamente, em relação a um ou mais tributos administrados pela RFB:
I – manutenção de fiscalização ininterrupta no estabelecimento do sujeito passivo, inclusive com presença física permanente de Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (AFRFB);
II – redução, à metade, dos períodos de apuração e dos prazos de recolhimento dos tributos;
III – utilização compulsória de controle eletrônico das operações realizadas e recolhimento diário dos respectivos tributos;
IV – exigência de comprovação sistemática do cumprimento das obrigações tributárias;
V – controle especial da impressão e emissão de documentos comerciais e fiscais e da movimentação financeira. (…)”
7 A Portaria nº 1.265/15 estabelece a Cobrança Administrativa Especial no âmbito da Receita Federal com vistas a aprimorar os procedimentos de recuperação de créditos tributários e promover o aumento e a sustentação da arrecadação dos tributos federais. O artigo 2º dessa Portaria estabelece uma série de medidas restritivas que podem ser impostas aos contribuintes que não regularizem seus créditos tributários abrangidos pela Cobrança Administrativa Especial, dentre as quais exclusão de programas de parcelamento, arrolamento de bens, exclusão de benefícios fiscais, etc.
8 A esse respeito, vale mencionar que muito embora o artigo 60 da Lei nº 9.069, de 29.6.1995 imponha a regularidade fiscal do contribuinte como condição à obtenção de benefício fiscal, esse dispositivo não autoriza sua revogação, especialmente se considerarmos o caso concreto ora analisado em que ainda são incertos os parâmetros de atribuição de nota “C” ao contribuinte, de forma que o contribuinte pode estar regular perante a Receita Federal mas ainda receber tal nota. Confira-se redação do dispositivo mencionado:
“Art. 60. A concessão ou reconhecimento de qualquer incentivo ou benefício fiscal, relativos a tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal fica condicionada à comprovação pelo contribuinte, pessoa física ou jurídica, da quitação de tributos e contribuições federais.”
TÉRCIO CHIAVASSA – Sócio do Pinheiro Neto Advogados
GABRIELA DE SOUZA CONCA – Mestre (LL.M.) em Direito pela Harvard Law School. Especialista em Economia pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogada associada da área tributária de Pinheiro Neto Advogados
Fonte: Jota.info/
Nenhum comentário:
Postar um comentário