No final de 2016, o STF concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário 593.849/MG, ocasião em que o tribunal revisou sua interpretação acerca do artigo 150, parágrafo 7º, da Constituição, que autorizou a instituição da substituição tributária progressiva, mas, por outro lado, assegurou aos contribuintes a imediata restituição do imposto nos casos em que não ocorrer o fato gerador presumido.
No julgamento da ADI 1.851/AL, em 2002, o STF entendeu que o fato gerador do ICMS/ST é definitivo, de modo que só caberia a restituição do imposto quando o fato gerador não se realizasse.
Desse modo, o atual entendimento da corte assentou o regime jurídico da substituição tributária progressiva da seguinte forma: o fato gerador é marcado pela definitividade, excepcionando-se, nos termos do parágrafo 7º do artigo 150 da CF, o direito à restituição total/parcial, nos casos de simples não ocorrência do fato gerador, bem como de sua ocorrência em menor expressão econômica. Fora essas duas situações, prevalece a definitividade.
Findo o julgamento, o estado de Minas Gerais opôs embargos de declaração contra o acórdão, a fim de que os ministros se manifestassem sobre a possibilidade de ser exigida a complementação do ICMS/ST, nas hipóteses em que os produtos fossem vendidos em valor superior àquele presumido para fins de tributação.
Embora os embargos tenham sido rejeitados por razões processuais (inovação recursal), o presente artigo visa adentrar no mérito dessa alegação, notadamente considerando-se que recentemente o estado de Minas Gerais editou decreto regulamentando a exigência da complementação (Decreto MG 47.530, publicado em 13 de novembro de 2018).
A decisão tomada pelo STF em 2016 baseou-se em importantes premissas, a saber: o regime da substituição tributária não é opção do contribuinte, mas imposição do estado; os preços de venda ao consumidor, de igual modo, também não são previamente “negociados”, mas impostos unilateralmente pelo ente público; esta sistemática antecipa o ingresso de receitas, representa a redução da máquina arrecadatória e também diminui a sonegação fiscal. Fundados nestes aspectos, concluíram os ministros que negar a restituição do imposto (correspondente ao fato gerador realizado à menor) equivaleria ao enriquecimento ilícito do estado.
De fato, considerados tantos benefícios, decorrentes de uma imposição dos próprios estados, difícil não concluir pelo enriquecimento ilícito por parte dos entes públicos, nos termos do artigo 884 do Código Civil, segundo o qual “aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido”.
Todas essas circunstâncias explicam o apego que os estados sempre tiveram com essa forma de tributação. Inclusive, no período anterior ao julgamento do STF (outubro de 2016), os estados impunham preços de venda presumidos (PMC ou MVA) sabidamente superiores àqueles praticados no mercado. E quanto a esse período, vale lembrar que o STF “anistiou” todos os estados da federação ao modular os efeitos de sua decisão somente para os indébitos ocorridos após o julgamento.
Visto isso, cabe expor os motivos pelos quais se entende ser indevida a complementação do ICMS/ST pretendida pelo estado de Minas Gerais.
A começar pelo contraponto do argumento do enriquecimento ilícito, não há que se falar que o contribuinte se enriquece à custa do estado sem justa causa, caso não complemente o imposto nas operações em que o valor de venda supere a presunção legal. Como demonstrado, o estado é quem ganha com esse regime, que assume uma estrutura verticalizada, na qual as regras são impostas de cima para baixo. Cobrar a complementação, inclusive, seria uma espécie de venire contra factum proprium, o que atenta conta a segurança jurídica.
Além disso, a possibilidade de se exigir a complementação prejudica o contribuinte substituído sob outro aspecto: como a operação ao consumidor final já ocorreu, ele não teria como repassar o ônus fiscal do imposto, o qual visa onerar justamente o consumo.
Mas não é só. A exigência da complementação viola o próprio regime jurídico da substituição tributária progressiva. A Constituição, ao tratar dessa matéria, prevê a definitividade do fato gerador e a excepciona apenas para a restituição do fato não ocorrido, inclusive quanto ao aspecto quantitativo, conforme entendimento adotado pelo STF. A Constituição, por outro lado, não abre exceção à definitividade para autorizar a complementação do imposto, o que poderia ter o efeito adverso de inviabilizar a manutenção desse regime.
Portanto, de acordo com a Constituição, interpretada soberanamente pelo STF, a substituição tributária progressiva possui duas características: a primeira, refere-se à possibilidade de cobrança antecipada do tributo; a segunda, diz respeito à garantia de que o contribuinte poderá restituir-se do imposto referente ao fato gerador não ocorrido, inclusive quanto ao aspecto quantitativo. Nas demais situações, prevalece o traço da definitividade, sob pena de se alterar esse instituto para a sistemática de cálculo do ICMS via débito e crédito, mediante apuração do efetivo valor devido em cada etapa da cadeia de consumo.
Nesta mesma lógica, a Lei Kandir, que assume a função de lei geral do ICMS, não autoriza a complementação do imposto. A lei complementar relativiza a definitividade somente para permitir a restituição do ICMS quando o fato gerador presumido não se realizar (inclusive quanto ao aspecto quantitativo, conforme entendimento do STF).
Logo, considerada a estrutura hierárquica do ordenamento, se é questionável a edição de uma lei complementar prevendo a obrigação de complementação do imposto, mais séria ainda é a atuação isolada dos estados, em franco desrespeito à lei geral que rege o ICMS.
Com base nessas considerações, conclui-se ser indevida a exigência de complementação do ICMS/ST, o que não significa, obviamente, que os estados devem ficar refém do regime da substituição tributária progressiva, na linha do que decidiu o Supremo. Pelo contrário, sempre que entenderem pela inconveniência desse regime para determinada mercadoria, ou determinado segmento, os entes públicos podem/devem extingui-lo.
Leandro Araújo Guerra é sócio do Araújo Guerra Sociedade de Advogados, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Fonte: Conjur
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