A recente publicação da Instrução Normativa RFB nº 1627/16 (Instrução Normativa) – que regulamentou a Lei nº 13.254/16 (Lei da Repatriação) – possibilita a efetiva regularização cambial e tributária de recursos, bens ou direitos não declarados ou declarados incorretamente, remetidos ou mantidos no exterior, ou já repatriados por residentes.
Em que pese a instrução normativa não ter dissipado toda apreensão na comunidade jurídica e empresarial quanto aos seus aspectos penais, é certo que um primeiro e fundamental efeito da lei é impedir prisões cautelares e/ou sentenças condenatórias dos crimes nela previstos, exceto para funcionários públicos, enquanto vigente o prazo para adesão ao programa. A situação é semelhante àquela criada pela Lei nº 10.826/03 (arts. 30 a 32), que tratou da posse ilegal de armas de fogo.
É preciso cautela para que não sejam fornecidos documentos comprovando a prática de crimes não abrangidos pela lei
Sob o ponto de vista penal, é possível dizer que a Lei da Repatriação instituiu verdadeira anistia, isto é, o esquecimento jurídico de um fato. Os crimes anistiados permanecem em vigor, mas haverá o esquecimento jurídico das condutas de quem os praticou, caso sejam cumpridos os requisitos previstos na referida lei.
Como a lei estabeleceu um rol muito restrito de crimes sujeitos à anistia, é preciso analisar caso a caso a extensão dessa medida. É possível que, em determinadas situações, a adesão ao regime resolva apenas parte do problema criminal, pois haja extinção da punibilidade de alguns crimes e permanência do risco quanto a outros.
A lei abrange a anistia dos crimes de sonegação fiscal e previdenciária, falsidades cometidas para realizar a sonegação, evasão de divisas e lavagem de dinheiro, desde que seu objeto seja proveniente de algum dos crimes anteriores.
Note-se que houve veto presidencial à inclusão dos crimes de descaminho e falsa identidade em operação de câmbio.
Especificamente quanto ao descaminho, há margem para questionamento judicial de sua exclusão, pois há precedente do STJ reconhecendo a natureza tributária desse crime (HC 137.628/RJ), possibilitando que a ele sejam estendidos os benefícios que a lei penal prevê para a sonegação fiscal – por exemplo, a extinção da punibilidade com o pagamento do tributo. Nesse sentido, há fortes argumentos para que cidadãos possuidores de bens ou recursos oriundos de descaminho requeiram judicialmente sua inclusão no programa.
Uma grande preocupação decorre da obrigação de manter, pelo prazo de cinco anos, contado do prazo final para entrega da declaração, os documentos que ampararam a adesão ao programa (art. 14 da instrução normativa). Isto porque tais documentos e informações poderão apontar condutas criminosas de terceiros, que não serão beneficiados pela anistia concedida ao declarante.
Não é incomum que os recursos tenham sido remetidos ou mantidos no exterior com o auxílio de terceiros (por exemplo, operadores clandestinos de câmbio, os doleiros). Todavia, há uma exceção prevista no art. 4º, § 5º, da Lei da Repatriação, que estende a extinção da punibilidade àquele que tenha sido utilizado como interposta pessoa na titularidade dos ativos.
Ainda no que se refere à obrigação de manter em boa guarda e ordem tais documentos, o declarante não pode ser obrigado a fornecer aquilo que não seja estritamente essencial à demonstração da prática dos crimes previstos na Lei da Repatriação. Assim, é preciso cautela para que não sejam fornecidos documentos comprovando a prática de crimes não abrangidos pela lei.
Quanto à utilização do conteúdo da declaração nos autos de investigação ou de procedimento de natureza criminal, em que pese a lei prever que ela não poderá ser utilizada se for o único indício ou elemento (art. 4º, § 12, I), há previsão de que tal regra não valerá se houver evidências documentais não relacionadas à declaração do contribuinte (art. 9º, § 2º).
Ora, o cotidiano forense é rico em exemplos de situações que podem frustrar esse objetivo da lei. Basta citar as famigeradas e recorrentes "denúncias anônimas", muitas vezes originadas do vazamento indevido de informações protegidas por sigilo legal. Assim, por uma questão de segurança jurídica, caso o contribuinte seja excluído do programa de repatriação, não se pode aceitar "evidências documentais não relacionadas à declaração do contribuinte" com origem suspeita, isto é, que possam decorrer de um vazamento ilegal da declaração de repatriação.
Quanto à previsão do art. 5º, § 2º, II, no sentido de que seus benefícios só podem ser aplicados se houver o cumprimento dos requisitos antes do trânsito em julgado da decisão criminal condenatória, cremos que tal norma poderá ter sua constitucionalidade questionada, visto que fere o princípio da igualdade.
Não há razões para impedir que o cidadão atingido por condenação criminal com trânsito em julgado possa se valer dos benefícios dessa lei, quando houver o pagamento do tributo incidente sobre os recursos que eram mantidos no exterior. Considerando que a Instrução Normativa reiterou tal proibição, porém de forma ainda mais gravosa, impedindo a adesão daqueles que possuírem condenação criminal sem trânsito em julgado (cf. art. 4º, § 3º), a solução da controvérsia dependerá de questionamento judicial sobre sua constitucionalidade.
Em conclusão, estamos em um hiato entre o efetivo início de aplicação da lei – que depende da disponibilização da declaração no sítio da Receita Federal, a partir de 4 de abril de 2016 – e o fim do prazo de sua anistia. Não se deve dispensar os benefícios deste programa, diante dos altos riscos penais que representa a manutenção irregular de ativos no exterior, mas é necessário realizar uma análise minuciosa das peculiaridades fáticas da origem de cada ativo.
por Fernando Augusto Fernandes e Anderson Bezerra Lopes são advogados criminalistas, sócios da Fernando Fernandes Advogados
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Fonte : Valor
Via Alfonsin.com.br
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