O ICMS, conforme determinado pela Constituição Federal de 1988, deve sempre obedecer ao princípio da não-cumulatividade, assim entendida a sistemática de compensação entre créditos e débitos do imposto, a fim de evitar a chamada “tributação em cascata”.
O que se verifica por uma análise pragmática da apuração do ICMS é a escrituração de débitos e créditos pelo próprio contribuinte, compensando-se os valores lançados nos livros fiscais para se apurar o valor a pagar no respectivo período de apuração.
Por se tratar de tributo sujeito ao lançamento por homologação, a escrituração fiscal do contribuinte deverá, a rigor, ser posteriormente analisada pelo Fisco Estadual, que irá verificar a regularidade das compensações escriturais, ou seja, a materialidade dos créditos e dos débitos do ICMS, para aferir se os recolhimentos efetuados no período pelo contribuinte são suficientes, podendo, se o caso, efetuar o lançamento de ofício para exigir eventuais diferenças.
É certo que a exigência de tributo só poderá ser levada a efeito quando se constatar o descumprimento de obrigação principal, uma vez que o descumprimento de obrigação acessória não conduz, lógica e necessariamente, à falta de recolhimento do tributo, de modo que usualmente é aplicada multa pela formalidade que não foi atendida pelo contribuinte.
Pois bem, neste ponto surge o debate que pretendemos expor. A constatação pelo Fisco Estadual de escrituração indevida de crédito do ICMS pode ser considerada descumprimento de obrigação principal a ensejar o pronto lançamento de ofício para exigir exatamente o montante do crédito glosado como imposto devido?
Esse é o expediente que tem sido adotado pelos Fiscos Estaduais, a saber: com a constatação de suposta escrituração indevida de crédito do ICMS, tem sido efetuado o lançamento de ofício com a exigência do valor indevidamente creditado como se fosse imposto (valor principal), inclusive acrescido de juros e multa.
Em outras palavras, o montante do crédito de ICMS glosado tem sido considerado pelos Fiscos Estaduais como ICMS não recolhido, sem refazer toda a escrita fiscal do contribuinte a fim de constatar se o creditamento indevido realmente resultou em falta de recolhimento do tributo.
A nosso ver, todavia, a adoção desse expediente (lançamento de ofício do crédito glosado como se fosse imposto devido) acaba por subverter toda a materialidade do Imposto sobre Circulação de Mercadorias, conforme delimitado pelo Texto Constitucional.
Com efeito, o artigo 155, inciso II, da Constituição Federal alude à competência dos Estados e do Distrito Federal para instituição de imposto sobre “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações ou prestações se iniciem no exterior”.
A partir da análise do texto constitucional, acentua o Professor Roque Antonio Carrazza que a lei que veicular a hipótese de incidência do ICMS apenas será válida se descrever operação relativa à circulação de mercadorias (“ICMS”, 14ª edição, Editora Malheiros, 2010, p. 38).
Por sua vez, a Lei Complementar nº 87, de 1996, obedece à disposição constitucional, descrevendo a hipótese de incidência do ICMS como “operações relativa à circulação de mercadorias, inclusive o fornecimento de alimentação e bebidas em bares, restaurantes e estabelecimento similares”.
Considerando que o ICMS é imposto incidente, em linhas gerais, sobre operações mercantis, a sua base de cálculo será o preço praticado entre o vendedor e o adquirente da mercadoria, que se presta a mensurar o fato colhido pela norma para render ensejo à tributação. Assim, servindo a base de cálculo para mensurar o fato colhido pela norma para render ensejo à tributação, a adoção de critério dissociado do fato jurídico mensurado acaba ruinando a própria materialidade do ICMS eleita pelo texto constitucional.
Por se tratar de imposto incidente sobre a cadeia de circulação, estabelece o texto constitucional que o valor do tributo, em cada operação, deve ser compensado com o montante cobrado nas operações anteriores, observando, assim, o princípio da não-cumulatividade.
O princípio da não-cumulatividade do ICMS, como já ressaltado, afigura-se como uma técnica de apuração voltada a evitar que a carga tributária de cada operação de tradição de mercadoria seja acumulada como aquela incidente na próxima operação, sob pena de elevar em demasia o montante a pagar, podendo – em último caso – até mesmo inviabilizar a circulação da mercadoria.
A técnica de apuração é realizada mediante uma sistemática de créditos e débitos do imposto, confrontados dentro de um determinado período de apuração, conforme disciplinado pelos artigos 19 e seguintes da Lei Complementar nº 87, de 1996, e pelas leis estaduais (e distritais) sobre o tema.
Os créditos apurados pela técnica de apuração veiculada para dar cumprimento ao princípio da não-cumulatividade, em hipótese alguma, podem se confundir com o próprio fato gerador do ICMS. Os descontos dos créditos sobre os débitos do tributo nada mais são do que uma técnica de apuração que visa dar cumprimento ao princípio da não-cumulatividade, de modo que os créditos atuam como redutor de débitos apurados.
Em que pese os créditos do tributo impactarem diretamente no montante a ser recolhido pelo contribuinte aos cofres estaduais, a base de cálculo do tributo permanece aquela delimitada pelo texto constitucional, ou seja, o valor da operação.
Os créditos do ICMS apenas e tão somente atuam no âmbito da sistemática da não-cumulatividade, não representando, fora dela, um fato jurídico autônomo ou alheio à apuração do valor a ser recolhido, a motivar a exigência de imposto pelo ato administrativo do lançamento de ofício.
Nesse cenário, entendemos não ser possível que os Fiscos Estaduais glosem créditos de ICMS havidos por indevidos, exigindo-se prontamente o exato valor do crédito glosado como se fosse imposto devido, sem antes refazer toda a escrita fiscal do contribuinte, para, aí sim, verificar se a glosa do crédito implica falta de recolhimento de imposto.
Além disso, a glosa do crédito de ICMS nem sempre irá gerar falta de recolhimento do imposto, notadamente nas usuais hipóteses de o contribuinte ostentar saldo credor do imposto frente ao Estado. Nos parece inconcebível que um contribuinte possa ser devedor do Estado, mesmo ostentando crédito muito superior ao valor cobrado.
O procedimento de lançamento, a teor do que dispõe o artigo 142 do Código Tributário Nacional, tende à correta determinação da matéria tributável. No caso do ICMS, em que se opera o princípio da não-cumulatividade, a determinação da matéria tributável no lançamento de ofício passa necessariamente pelo dever de a autoridade administrativa verificar se as compensações entre créditos e débitos do contribuinte geraram falta de recolhimento do imposto.
Essa linha de raciocínio conduz à conclusão de que, para o lançamento de ofício ser válido no caso de ser constatado o creditamento indevido de ICMS, a autoridade administrativa deve sempre demonstrar suficientemente que, refazendo toda a escrita fiscal do contribuinte, a utilização do crédito havido por indevido realmente levou à falta de recolhimento.
No caso de o contribuinte ostentar saldo credor, o único e exclusivo efeito do lançamento de ofício deve ser o de reduzir o estoque de créditos do contribuinte, mas nunca a cobrança do crédito glosado como se imposto devido fosse.
Aliás, esse é o procedimento adotado pelos agentes fiscais da Receita Federal do Brasil ao efetuar lançamentos de créditos tributários de IPI – tributo também regido pela sistemática da não-cumulatividade: o refazimento de toda a escrita fiscal do contribuinte, a fim de aferir se o crédito glosado implicou falta de recolhimento do imposto.
Portanto, a apuração de créditos do ICMS atua apenas e tão somente na sistemática de apuração decorrente do princípio da não-cumulatividade, fugindo à materialidade do imposto, de modo que o creditamento indevido do imposto não pode gerar, por si só, a falta de recolhimento de imposto, ainda mais no exato montante do crédito glosado.
Por Júlio M. de Oliveira - Mestre e Doutor em Direito Tributário pela PUC/SP, professor nos cursos de especialização da USP, IBET e GVlaw e sócio do escritório Machado Associados
Raphael Okano Pinto de Oliveira - Especialista em Direito Tributário e associado do escritório Machado Associados
Fonte: Jota
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