A decisão administrativa final que mantém o lançamento tributário pode ser impugnada em juízo pelo contribuinte (CF, artigo 5º, inciso XXXV).
Donde a pergunta: cabe ação judicial também contra aquela que o desconstitui? O Código Tributário Nacional (CTN) não afasta de todo a possibilidade, ao listar como causa de extinção do crédito tributário a decisão “definitiva na órbita administrativa, que não possa mais ser objeto de ação anulatória” (artigo 156, inciso IX). Trata-se, claro está, de decisão contrária ao Fisco, ou não teria sentido incluí-a entre as causas extintivas.
Cumpre, portanto, considerando a totalidade do sistema jurídico, definir as hipóteses em que tal revisão judicial será cabível. E elas se limitam, a nosso sentir, à existência de vícios extrínsecos que comprometam a formação ou a definitividade da decisão administrativa, tais como:
- decisão do processo por órgão incompetente;
- atuação de julgador nomeado de forma irregular. Não incluímos aqui a participação de advogados nos órgãos paritários de deliberação. Embora defendamos interpretação estrita do artigo 28, inciso II, do Estatuto da OAB[1] — em linha com a recente manifestação do Conselho Federal — lembramos que a incompatibilidade obsta o exercício da advocacia, e não da outra atividade, nos termos do artigo 27 Estatuto [2];
- erro na totalização dos votos suficiente para alterar o resultado;
- falta de intimação da Fazenda quanto a decisão desfavorável, quando não cabível recurso de ofício.
De fato, tanto quanto o contribuinte, o Estado e a sociedade têm o direito de exigir a rígida observância das formas na apreciação dos processos administrativos tributários, dado o impacto que as decisões neles tomadas têm sobre as finanças públicas.
Dessa forma, não sanados de ofício os vícios acima apontados — ou outros de semelhante natureza (falhas na constituição do órgão julgador ou graves errores in procedendo) —, pode o acórdão favorável ao contribuinte ser objeto de ação anulatória proposta pela Fazenda Pública vencida, de ação civil pública ou de ação popular.
A ação civil pública terá apoio no artigo 1º, incisos IV (dano a interesse difuso) e VIII (dano ao patrimônio público), da Lei 7.347/85 e não será obstada pelo respectivo parágrafo 1º, já que — embora verse matéria fiscal – não tem beneficiários individualmente determináveis. Poderá ser proposta pelo Ministério Público ou pelos demais legitimados do artigo 5º do mesmo diploma.
A ação popular terá por fundamento o dano ao patrimônio público oriundo de incompetência, vício de forma ou ilegalidade (Lei 4.717/65, artigos 1º e 2º, alíneas “a”, “b” e “c”).
Em qualquer caso, o Judiciário se limitará a anular o ato viciado (acórdão; ata de julgamento, se o erro for de contagem dos votos; certidão de trânsito, se a hipótese for de falta de intimação; etc.), determinando a retomada do feito administrativo desde a fase imediatamente anterior. Deveras, embora graves o bastante para reabrir o processo indevidamente encerrado, os vícios em questão nada dizem sobre o mérito da controvérsia, cuja análise deverá ser completada pelo órgão administrativo competente.
Questão interessante respeita ao prazo para o ajuizamento de tais ações. Tratando-se de matéria tributária, onde a prescrição deve ser regida por lei complementar (CF, artigo 146, inciso III, alínea “b”), torna-se irrelevante o prazo quinquenal do artigo 21 da Lei da Ação Popular, estendido por analogia à ação civil pública [3]. A solução há de ser buscada no CTN, também por analogia. Ou se aplicam os cinco anos do artigo 174, que trata da execução do crédito mantido na esfera administrativa (ou não impugnado), ou os dois anos do artigo 169, que nos parece mais próximo da situação em análise, por também cuidar de ação anulatória — a saber, aquela movida pelo contribuinte contra a decisão administrativa que rejeita o seu pedido de restituição. Valendo para um lado, nada mais adequado que — face à omissão do Código — valha também para o outro.
Tratamento apartado merece a decisão administrativa maculada por corrupção ou concussão do julgador. Sendo a obrigação de reparar o dano advindo do crime efeito direto da condenação (Código Penal, artigo 91, inciso I), e sendo o potencial prejuízo de fácil aferição — pois corresponderá ao valor atualizado do lançamento desconstituído pela decisão viciada —, entendemos que a ação civil de caráter anulatório sequer se fará necessária.
Transitada em julgado a sentença condenatória — a coisa julgada permanece imprescindível aqui, por força do artigo 63 do Código de Processo Penal [4], apesar da infausta decisão do STF no HC 126.292/SP (Pleno, relator ministro Teori Zavascki, julgado em 17.02.2016), que aniquilou o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição —, seguir-se-á, no juízo cível competente, a execução fiscal do crédito tributário malversado.
A espera pelo fim da ação penal não induz risco de prescrição, pois a execução fiscal, nesta singularíssima hipótese, será imprescritível, nos termos do artigo 37, parágrafo 5º, da Constituição[5] — o qual, sendo disposição constitucional originária, decerto prepondera sobre o CTN. Embora penda de final delimitação pelo Supremo, a regra tende a impor a imprescritibilidade, pelo menos, aos danos decorrentes de crimes, como registrou o ministro Cezar Peluso em voto vencido no MS 26.210/DF (Pleno, relator ministro Ricardo Lewandowski, DJe 10.10.2008)[6].
Assim, a única prescrição relevante na espécie será a penal.
Não tendo havido deliberação, no juízo criminal, sobre o mérito da exigência, fica aberta para o contribuinte a via dos embargos à execução, pois bem pode acontecer de o tributo — apesar do mau proceder dos envolvidos — ser indevido: pacificação da jurisprudência administrativa ou judicial no sentido da decisão viciada, por exemplo. A possibilidade não deve chocar, pois, como lembra Cezar Roberto Bittencourt, “o ato funcional objeto da venalidade” pode ser “lícito ou ilícito”[7]. E tributo não é sanção de ato ilícito (CTN, artigo 3º).
A eventual extinção do crédito tributário na ação de embargos não terá nenhum efeito sobre a condenação pelos crimes de corrupção ou concussão, visto que estes — ao contrário do que ocorre com a sonegação fiscal — não dependem da existência de tributo devido ou da efetiva percepção da vantagem pelos agentes criminosos.
Dada a insindicabilidade no mérito das decisões administrativas finais favoráveis ao particular — nosso próximo ponto —, só haverá possibilidade de dano ao Erário quando comprovado o crime, o que torna inviável a ação civil paralela ao processo criminal, ou posterior ao arquivamento do inquérito, à extinção da punibilidade ou à absolvição (CPP, artigos 64, 66 e 67).
O descabimento de ação judicial para a rediscussão do mérito das decisões administrativas finais que extinguem o crédito tributário justifica-se de forma diferente, segundo o autor da pretensão.
Para o Fisco vencido, trata-se da vedação de venire contra factum proprium, pois o órgão julgador e a Procuradoria que atuaria em juízo integram a mesma pessoa política, a denunciar inaceitável esquizofrenia institucional.
Nem se invoque a isonomia com o contribuinte, que pode propor ação quando derrotado, porque a disparidade da sua situação jurídica frente ao Poder Público é clara: o órgão julgador integra a estrutura deste último e, ainda quando de composição paritária — o que não é obrigatório, havendo instâncias formadas apenas de servidores concursados, como as Delegacias Regionais de Julgamento da Receita Federal ou o Tribunal Administrativo-Tributário de Pernambuco[8] — tende a creditar o empate a favor do Fisco (voto de qualidade).
O amplo acesso ao Judiciário tampouco socorre a Fazenda, por constituir garantia fundamental do particular contra o Estado, e não o contrário. Ação deste contra aquele há de ter fundamento específico, não lhe bastando a cláusula genérica do artigo 5º, XXXV, da Constituição.
No mais, a certeza, para a Administração, da higidez de suas próprias decisões decorre do respeito aos requisitos formais para a respectiva produção: sistema de recrutamento de julgadores, publicidade das sessões, dever de fundamentação, sistema recursal, etc.
Insubsistente, portanto, o Parecer PGFN 1.087/2004, que resenha a teoria do controle judicial dos atos administrativos, mas passa inteiramente ao largo da discussão sobre a legitimidade processual para suscitá-lo.
Já para terceiros — cidadãos e o Ministério Público —, a pretensão de que a própria leitura das leis tributárias prepondere sobre aquela finalmente adotada pelo credor (o processo administrativo é meio de controle interno do ato de lançamento) mascara tentativa de manietar a Administração, impondo-lhe a prática de atos comissivos que esta entende indevidos.
Trata-se, noutras palavras, de predicar a instauração do governo dos Juízes, pedindo-lhes que assumam o papel do administrador na definição das linhas de ação do Executivo — o que o STF não admite senão em situações excepcionalíssimas, quando estão em jogo direitos fundamentais como a educação (2ª Turma, ARE 639.337-AgR/SP, relator ministro Celso de Mello, DJe 15.09.2011).
Pode o Ministério Público pedir ao Judiciário que obrigue o Fisco a autuar operações que este entende intributáveis? Pode o cidadão pedir ao Juiz que imponha ao Parquet denunciar quem pratica atos por este reputados atípicos?
Se a resposta é negativa quanto à convicção inicial de cada órgão competente, com maior razão o será relativamente à sua posição final, tomada após ampla revisão das instâncias internas de controle.
Em suma, se a decisão administrativa final extinguiu o crédito, o Judiciário pode anulá-la por vícios formais, mas nunca por razões de fundo.
1 “Art. 28. A advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com as seguintes atividades:
(...)
II – membros de órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos tribunais e conselhos de contas, dos juizados especiais, da justiça de paz, juízes classistas, bem como de todos os que exerçam função de julgamento em órgãos de deliberação coletiva da administração pública direta e indireta.”
2 “Art. 27. A incompatibilidade determina a proibição total, e o impedimento, a proibição parcial do exercício da advocacia.”
3 STJ, 2ª Seção, AgRg nos EREsp. 995.995/DF, Relator Ministro Raul Araújo, DJe 09.04.2015.
4 “Art. 63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.
Parágrafo único. Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido.”
5 “Art. 37, § 5º. A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.”
6 Ver ainda, sobre o tema, o RE 669.069/MG (Pleno, Relator Ministro Teori Zavascki, j. em 03.02.2016).
7 Tratado de Direito Penal – Volume 5. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 80.
8 Não cabe aqui discutir eventuais mazelas de umas ou outro.
por Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG. Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.
Fonte: Conjur
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