Com uma contabilidade analítica bem estruturada será claramente mais difícil tomar decisões economicamente irracionais porque os números, quando bem sustentados, inibem.
O passado recente da sociedade portuguesa pode ser um excelente campo de reflexão e aprendizagem. Às fragilidades do nosso modelo de desenvolvimento económico, juntam-se as incoerências do nosso sistema financeiro e, por coincidência ou não, soma-se um conjunto de casos de corrupção económica que, pela dimensão e pelos atores envolvidos, pareciam até então impossíveis aos olhos do cidadão comum.
Numa perspetiva determinista podemos ver estes acontecimentos como uma mera reprodução do passado, um fenómeno recorrente e inevitável ao qual estaríamos coletivamente condenados, algo já identificado por Eça no século XIX. Mas também, numa perspetiva dinâmica, podemos olhar as dificuldades atuais como uma oportunidade de mudar. Sente-se a saturação popular face a um certo modo de fazer riqueza, a um certo modo de fazer política, e a um certo modo de gerir a coisa pública. Há, portante, espaço para novos modelos sociais.
A história da contabilidade tem mostrado que as mudanças na contabilidade não acontecem no vazio. Há, na base de cada mudança, ou desenvolvimento estrutural dos sistemas de contabilidade condições de possibilidade políticas, económicas e sociais particulares que o propiciaram. Ocorre então perguntar: que oportunidades o contexto atual reserva para a contabilidade? Haverá espaço para os TOC aumentarem o seu papel na redefinição das práticas de governança?
No âmbito do setor privado, apesar do muito que já foi feito, esta tarefa é extremamente difícil. Nas organizações privadas, a maximização do lucro e a garantia de sobrevivência financeira nem sempre são percebidas pelos seus administradores como compatíveis com uma informação financeira transparente. Outras vezes, os administradores dessas organizações orientam-se por interesses egoístas e ilegítimos e arrastam consigo a organização para situações de ilegalidade, colocando o TOC perante dilemas profissionais de extrema complexidade. Contudo, no setor público, o relato financeiro transparente parece ser apenas algo intrínseco ao caráter público da própria organização.
Na administração pública, a responsabilidade de prestar contas das suas ações está firmemente baseada nos princípios da democracia. No entanto, o modo como as organizações públicas o devem fazer tem evoluído e continua a evoluir à medida que a consciência democrática do cidadão aumenta. A prestação de contas das entidades públicas tem merecido uma atenção crescente de diversos organismos internacionais da contabilidade, nomeadamente o Goverment Accounting Standards Board (GASB), a National Academy of Public Administration (NAPA), a American Society for Public Administration (ASPA) e a National Governors Association (NGA). As preocupações de ordem económica e financeira, bem como as preocupações políticas de representação e controlo têm dominado a narrativa da contabilidade pública.
Mudanças na contabilidade pública
Ora, é precisamente na área da contabilidade pública que se perspetivam para breve mudanças estruturais com a adoção do Sistema de Normalização Contabilística Público (SNCP) em Portugal. Pretende-se com o novo modelo promover a integração das diversas áreas da contabilidade pública, a comparabilidade e agregação da informação e, sobretudo, a transparência e accountability da gestão pública.
Todavia, e sem colocar em causa a utilidade da informação financeira inerente à contabilidade patrimonial e à contabilidade orçamental, gostaríamos de destacar o papel que a contabilidade de gestão pode ter no novo quadro normativo da contabilidade pública, em especial os contributos que pode dar para os objetivos de transparência e accountability. O conceito accountability implica que se identifique não apenas o objeto no qual os recursos públicos foram aplicados, mas também a forma e os efeitos dessa aplicação. E, assim sendo, só com uma contabilidade de gestão ajustada à realidade de cada organização pública será possível assegurar o desenvolvimento de indicadores de desempenho capazes de avaliar e controlar o grau de eficiência e efetividade na prestação dos serviços públicos.
Embora esta ideia pareça simples e clara, a sua aplicação à complexidade e à variedade de formas que as organizações públicas assumem está longe de ser linear. No entanto, a dificuldade e a ambiguidade, que realmente existem, não podem servir para justificar o nada fazer, até porque há excelentes exemplos de boas práticas de contabilidade de gestão dentro da administração pública, e em áreas tão complexas como a saúde e as organizações hospitalares.
Eventualmente haverá casos em que o foco inicial terá de ser apenas o custo. Na verdade, há muitas organizações públicas que prestam serviços indiretos a outros serviços públicos e também muitas situações em que os benefícios dos serviços prestados diretamente ao cidadão e à sociedade são difíceis de medir. Nestas circunstâncias, espera-se que o TOC seja capaz de nos dizer quanto custa cada serviço prestado, cada decisão, cada projeto, etc. O desafio que deixamos é, portanto, o de o TOC não olhar a contabilidade de gestão pela perspetiva da dificuldade que ela ofereça a quem arrisca implementá-la nas organizações públicas, mas que olhe a contabilidade de gestão como uma oportunidade de participar ativamente no modo de gestão da coisa pública. Com uma contabilidade analítica bem estruturada, será claramente mais difícil tomar decisões economicamente irracionais. Os números, quando bem sustentados, inibem.
Na verdade, a contabilidade de gestão dentro da administração pública pode ajudar a prevenir atos de gestão negligentes, pode reforçar a cultura económica dentro das organizações e quando divulgada de modo inteligível para o cidadão comum, pode minimizar o risco moral associado à utilização de serviços públicos gratuitos, contribuindo assim para a sustentabilidade do Estado social.
Mas, se às práticas internas de contabilidade de gestão, juntarmos o relato (financeiro e não financeiro) voluntário sobre os atos de gestão e respetivas implicações económicas e financeiras, ou seja, se as organizações públicas relatarem informação de gestão interna de modo inteligível para os diversos stakeholders, então, para além de estarmos a operacionalizar a substância, e não apenas a forma, dos conceitos de transparência e accountability, haverá certamente uma forte possibilidade de restaurar a confiança do cidadão na administração pública.
Por Amélia Ferreira da Silva - Docente do IPP – Instituto Politécnico do Porto, ISCAP – Instituto Superior de Contabilidade e Administração, Membro do CECEJ - Centro de Estudos em Ciências Empresarias e Jurídicas Membro do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Fonte: Revista TOC 184 p. 40
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