A edição da Medida Provisória nº 685, de 21 de julho de 2015 (MP), no que respeita à criação da obrigatoriedade da declaração de operações das empresas que acarretem suspensão, redução ou diferimento de tributo, se insere num capítulo lamentável da República Brasileira.
Qualquer analista independente, ao chegar ao Brasil deste ano, verá um Poder Executivo em frangalhos e o órgão de arrecadação tributária deste mesmo poder adquirindo força hercúlea. E resta a pergunta: por quê?
Os que prezam as liberdades individuais restarão estarrecidos com uma postura governamental extremamente libertária em relação a costumes e, por outro lado, duramente totalitária em matéria da relação entre o Estado tributante e o cidadão-contribuinte.
Se o Estado quer mostrar sua força é momento de saber se ela é legítima, dentro das garantias constitucionais
O discurso oficial, ao tratar a matéria como melhoria da transparência fiscal ou como redução da litigiosidade, soa obscuro. O argumento da redução da litigiosidade entre o Fisco e as empresas beira a um discurso kafkiano. De repente acordo, estou sendo processado, mas sequer tenho o direito de saber por qual crime! O crime tributário passa a ser presumido em tipos abertos e dependentes da interpretação absoluta do órgão de arrecadação – negócio jurídico indireto, razões extratributárias, forma não usual, cláusula contratual desnaturadora, lista prévia proibitiva de operações feita pelo órgão arrecadador e sem processo público e sem previsão em lei.
De se atentar ainda que a previsão do artigo 12 da MP, criação de mais um tipo penal de sonegação fiscal, na modalidade de omissão dolosa de entrega da declaração do conjunto de operações realizadas que envolvam atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo ou de ineficácia desta declaração, é inconstitucional no seu nascedouro, visto que o Supremo Tribunal Federal (STF) já julgou inconstitucionais normas jurídicas penais que sejam inauguradas em medidas provisórias.
Neste contexto, o remédio contra o art. 7ª desta MP, nítida cláusula de autoincriminação, considerados, ainda, os efeitos do art. 12, sonegação presumida por omissão dolosa ou por erro comissivo ou omissivo, será um mandado de segurança ou um habeas corpus, ou ambos?
Como pode um cidadão-contribuinte, com as garantias constitucionais que possui, ser obrigado a declarar, sob pena de caracterização de sonegação fiscal e aplicação de multa agravada, que praticou:
i) Atos ou negócios jurídicos sem razões extratributárias relevantes (o que seja isto!); ii) Negócio Jurídico indireto ou contrato com forma não usual ou cláusula que o desnature (haja ambiguidade e cláusula de interpretação aberta); iii) atos ou negócios jurídicos proibidos pela Receita Federal em ato infralegal e em procedimento não previsto em qualquer lei.
Há limites para o silêncio daqueles que respeitam as instituições democráticas. O artigo 7º combinado com o artigo 12 agridem de forma brutal a Constituição Federal ao admitir a criação de conceitos abertos de proibição e a criação de lista de operações/negócios proibidos sem previsão legal.
Há uma incompatibilidade escrachada entre os dispositivos supramencionados e os fundamentos do Estado Democrático de Direito, a saber:
i) A livre iniciativa, fundamento inserto no art. 1º, inciso IV, da Constituição Federal (CF); (ii) o princípio da legalidade, inserto no art. 5º, inciso II e art. 150, I, ambos da CF; (iii) o princípio da não-autoincriminação, previsto no art. 5º, inciso LXIII, da CF; (iv) o princípio da presunção de inocência, previsto no art 5º, inciso LVII, da CF; e (v) os princípios da tipicidade penal (art. 5º, inciso XXXIX, da CF) e da tipicidade tributária (art. 150, inciso I, da CF).
Por outro lado, o caminho para a criação de uma norma antielisiva republicana e/ou de uma norma que possibilite a abertura de informações dos contribuintes deverá passar, ao nosso ver, por um projeto de lei com discussões em audiências públicas, sem a criminalização antecipada das condutas empresariais e a criação de um espaço público e voluntário de discussão entre o Poder Público e a iniciativa privada.
Se há a intenção do Estado de importar modelos de transparência fiscal da OCDE ou de outros países, que se faça dentro dos moldes destes sistemas, com relação respeitosa e sem ameaças. A busca do diálogo, ou da criação de um espaço de transparência fiscal, ou da diminuição da litigiosidade entre Fisco e contribuintes, não se comunica com a aplicação prévia de penalidades gravosas, quer no âmbito civil ou criminal. A aproximação e o diálogo devem ser acompanhados da quebra do paradigma existente entre Estado-força e contribuinte-sonegador. Ao se criar mais uma figura de sonegação, não se está convidando o contribuinte ao diálogo, mas ampliando o fosso entre a força do Estado e a fragilidade das relações e das instituições de representação do cidadão-contribuinte.
Se o Estado quer mostrar sua força é momento de saber se ela é legítima, dentro das garantias Constitucionais e das limitações constitucionais ao poder de tributar.
Por fim, se o Estado quer ampliar a transparência e o diálogo com a iniciativa privada, há que escolher um caminho sem armadilhas.
Julio de Oliveira é sócio do escritório Machado Associados e doutor em direito pela PUC de São Paulo
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
Por Julio de Oliveira
Fonte : Valor
Via Alfonsin.com.br
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