À luz dos princípios penais constitucionais, é preciso refletir acerca da possibilidade de reduzir o âmbito de atuação do Direito Penal no que tange às condutas tributárias e das possíveis e efetivas políticas descriminalizantes capazes de delimitar o âmbito de atuação do Direito Penal frente às novas exigências e características da sociedade atual.
Atualmente, estar-se diante de uma necessidade cada vez maior de tipificação e criminalização de condutas econômicas — antes afastadas do âmbito da intervenção penal e relegadas a outros ramos jurídicos —, implantadas em uma situação de reforço penal a condutas voltadas meramente à ordenação de certos setores da atividade econômica.
O Direito Penal deve ser tido como “remédio” sancionador extremo, somente sendo ministrado quando qualquer outro se revele ineficiente, sendo certo que o caráter subsidiário do Direito Penal atrelado à real função não ressocializadora das prisões no país impõe a descriminalização de diversas condutas que, hoje, permeiam a legislação penal.
A questão fundamental que se coloca em discussão, portanto, está em descobrir se a intenção que fez surgir a criação dos crimes tributários se amolda à Lei Maior — a seus princípios explícitos e implícitos. Por isso, se faz necessário analisar as reais possibilidades de propostas descriminalizantes e desprisionalizantes aos crimes tributários, verificando a existência de diversos outros meios a tutelar o bem jurídico "ordem tributária", sempre em busca de um Direito Penal de liberdade, na sua justa medida.
Os crimes tributários não manifestam juízo coletivo de reprovabilidade, principalmente com a plena possibilidade de extinção da punibilidade pelo pagamento dos tributos a qualquer tempo, que assim caracteriza a “perda de valor” do Direito Penal, o qual passa a possuir, claramente, uma finalidade desviada.
O Direito Penal Tributário, da forma como hoje se encontra, tornou-se mecanismo de opressão da classe hegemônica, pois constata, como sua finalidade, a proteção de seus interesses em detrimento daqueles respectivos à sociedade de modo geral. Tais tutelas podem e devem ser submetidas à jurisdição de outros ramos de Direito que não o Penal, nos quais as penas criminais são substituídas por sanções de outra índole, cabendo a interferência do Direito Penal somente aos casos de ataque extremamente grave aos bens jurídicos mais importantes.
Especificamente no que diz respeito à pena de prisão prevista aos crimes tributários que, como já salientado, tutelam bens jurídicos coletivos, acaba por caracterizar uma excessiva punição, através da qual o Estado se utiliza da mais rigorosa pena a atingir seu intento econômico, fazendo relembrar os ensinamentos de Michel Foucault, para quem a pena restritiva de liberdade “não se destina a sancionar a infração, mas a controlar o indivíduo, a neutralizar sua periculosidade, a modificar suas disposições criminosas”.
Tal assertiva caracteriza os ergástulos públicos brasileiros, que não atendem às exigências legais, não parecendo justo que indivíduos sofram restrição tão severa em reação ao ferimento de um bem jurídico difuso, sendo certo que outros meios extraprisionais solucionariam a contento tal ressocialização.
Uma política que pretende substituir o conceito de bem jurídico pelo interesse difuso equivale a eliminar o pouco e o muito que se conseguiu com a luta da sociedade civil contra o controle estatal, vale dizer, todo o sistema de garantias dos sujeitos ante a intervenção do Estado.
Uma vez constatada a ineficácia do sistema de penas do atual Direito Penal Tributário, portanto, busca-se soluções reais no ordenamento jurídico, sendo de fundamental importância o exame de alternativas descriminalizantes, a exemplo de medidas de natureza administrativa e civil, que devem nascer pela implementação da reforma tributária, materializadas por meio de multas e/ou restrições de direitos.
Inúmeros são os meios alternativos para solucionar os conflitos tributários, tais como: acordos, transações, conciliações e arbitragem, entre outros. Por meio dessas espécies de mecanismos, dar-se-á a efetivação de condições de ação para evitar a prática crescente de fraudes, cujas repercussões penais produzem cada vez menor efeito, tendo em vista a já mencionada extinção da punibilidade pelo pagamento a qualquer tempo do tributo devido.
Uma possível solução, ao menos aparente, nos ensina Hassemer, estaria na elaboração de um Direito de Intervenção, aplicando-se a descriminalização de condutas como as correspondentes ao crime contra a ordem tributária, sendo estas reguladas pelo Direito Civil ou Administrativo, e não mais pelo Direito Penal, o que, parece-nos, só poderia registrar exitosa se respeitadas as garantias democráticas essenciais propostas pelo ordenamento jurídico. Nos ensinamentos do autor, verifica-se que:
Há muitos âmbitos, como o das infrações administrativas, o direito civil, o direito público, mas também o próprio mercado e o cuidado da vítima, nos quais muitos dos problemas que se regulam pelo moderno direito penal poderiam ser resolvidos de um modo muito mais satisfatório. Quiçá seria recomendável regular em um ‘Direito de intervenção’ os problemas que as modernas sociedades entregaram ao direito penal.
Miguel Reale Jr., para quem a defesa desses bens jurídicos não encontra bom espaço na lei penal, também visualiza, num “Direito Administrativo-Penal”, instrumentos mais ágeis e eficazes aos delitos econômicos, com base nos princípios garantistas do Direito Penal.
Verifica-se, portanto, que a descriminalização do crime tributário é plenamente possível quando da adoção de outras modalidades repreensivas, evitando-se esvaziar o extrato substancial desse delito penal. A substituição do sistema penal por outros ramos do Direito é exigência corrente, mesmo que implique em mudanças e certa dificuldade, mas que implicará uma libertação da servidão de passagem e do hermetismo a que conduz o raciocínio ancorado na prisão, como corpo e alma de um sistema agonizante.
O tema, ora proposto, longe está de se esgotar. Ficam aqui considerações, ressaltando-se que, independentemente das futuras escolhas políticas e dos mecanismos de proteção do bem jurídico tutelado na fraude fiscal, há que se respeitar os princípios adotados e ratificados pela Constituição, inclusive os direitos e garantias fundamentais do ser humano, tais como a dignidade da pessoa humana, em contínuo primor pela liberdade.
É preciso, portanto, sob o olhar crítico de que o Direito Penal atualmente possui uma função simbólica, promocional e arrecadatória no que tange aos delitos fiscais, analisar se a Constituição deve ser compreendida como fundamento ou como limite ao Direito Penal, buscando argumentos capazes de sustentar a descriminalização e desprisionalização dos crimes tributários, do ponto de vista da política criminal mais democrática e dos princípios norteadores de um Estado Democrático de Direito.
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Maria Manuela Galvão é sócia do Da Fonte Advogados, especialista em Direito Penal e Processual Penal e mestranda em Direito Penal pela Fadic.
Fonte: Conjur
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