A expressão que intitula o Capítulo I, do Título VI, da Constituição Federal — “Do Sistema Tributário Nacional” — bem denota a forma como devem interagir e ser interpretadas as normas e princípios que regem as relações jurídico-tributárias.
Essas normas e princípios, como o referido título indica, formam um “sistema”. E assim é há mais de meio século, desde a reforma tributária veiculada pela Emenda Constitucional 18/65, ainda na vigência da Constituição Federal de 1946.
Por meio dessa reforma, os princípios e normas tributárias passaram, pela primeira vez, a formar um todo e a ser aplicados de forma harmônica, contrastando com as normas esparsas e desencontradas que vigoravam até então.
Essa técnica de tributação foi criada na Europa, em meados do século passado, por meio da instituição do até hoje vigente imposto sobre valor agregado (IVA), que, à época, se contrapôs às incidências cumulativas que oneravam a cadeia multifásica de circulação de produtos, mercadorias e serviços.
Nas situações em que ocorria, essa tributação cumulativa se mostrava extremamente danosa à economia, seja pelo aumento de preços gerado pela multiplicidade de incidências ocorridas nessa cadeia multifásica (com todos os efeitos inflacionários daí decorrentes), seja pela quebra de neutralidade da tributação que decorre da inevitável “verticalização” dos grupos de empresas que compõem grandes conglomerados, ou, ainda, pela consequente maior oneração dos empresários de menor porte, que se viam forçados a sobreviver como mero elo de uma cadeia de circulação maior, repleta de outros agentes, cada um deles gerando incidências adicionais.
De fato, como já tive a oportunidade de afirmar neste espaço:
“(...) quanto mais fases houvesse na cadeia, maior seria o ônus tributário sobre o preço cobrado do consumidor final e menor seria a competitividade desses pequenos contribuintes em relação aos grandes conglomerados, que sempre tinham à sua disponibilidade a possibilidade de reunir em um só estabelecimento todas essas diversas fases de produção e circulação de bens, concentrando, assim, a tributação na saída do bem desse estabelecimento único.
A não cumulatividade, por meio da qual se permite que o imposto pago em cada elo da cadeia de circulação seja abatido do imposto devido nos elos seguintes (por meio de uma sistemática de débitos e créditos), visa justamente evitar esses efeitos. A não observância desse princípio, ou mesmo a sua observância parcial, com restrições inadequadas relativas às aquisições que propiciam direito a crédito, fazem ressurgir as consequências nocivas acima mencionadas, na mesma proporção em que essa inadequação tenha propiciado dupla incidência sobre a mesma base”.
Portanto, o mal é sempre o mesmo (os efeitos maléficos da cumulatividade) e a cura não pode ser diferente: a aplicação da técnica decorrente do princípio da não cumulatividade, por meio da qual não se admita que, em cada elo de circulação do produto, da mercadoria ou do serviço, o ônus tributário seja superior ao que se tenha então agregado de valor a essas riquezas.
E esse princípio é de tal importância que a Constituição Federal somente admite a criação de novo imposto se, além de a nova exação não poder ter fato gerador nem base de cálculo próprios dos demais impostos discriminados na lei maior, ela for “não cumulativa” (artigo 154, inciso I).
Ainda assim, como disse acima, há completa ausência de uniformidade nas regras constitucionais e infraconstitucionais que regulam a aplicação desse mesmo princípio à incidência dos únicos três tributos para os quais ela é expressa e constitucionalmente prevista. E esse resultado ocorre, apesar de essas três exações onerarem bases de mesma natureza (receita ou faturamento).
Só para citar quatro exemplos dessa ausência de uniformidade, entre outros:
(a) a não cumulatividade é assegurada constitucionalmente para todas as operações oneradas pelo IPI e pelo ICMS; quanto ao PIS/Cofins, por expressa determinação da própria constituição, cabe ao legislador infraconstitucional definir os setores e atividades econômicas para os quais essas contribuições serão não cumulativas (CF, artigo 195, parágrafo 12º);
(b) no que concerne ao ICMS e ao PIS/Cofins, a técnica da não cumulatividade a eles aplicável admite, ainda que de forma restritiva, o creditamento do imposto incidente na aquisição de bens que integrem o ativo imobilizado; a legislação do IPI, inexplicavelmente, não admite o aproveitamento de créditos nessas circunstâncias;
(c) as regras constitucionais referentes à incidência do ICMS impõem expressamente o estorno, ou o não aproveitamento de créditos, nas alienações ou aquisições isentas ou que sejam objeto de não incidência; as regras constitucionais relativas à incidência do IPI não fazem essa ressalva de forma expressa, o que, aliás, propiciou extrema oscilação jurisprudencial dos nossos tribunais superiores no que diz respeito a essa matéria;
(d) as regras relativas à abrangência das atividades contempladas pela aplicação do regime divergem a ponto de a legislação do PIS/Cofins deixar de prever a possibilidade de aproveitamento de créditos por empresas comerciantes em hipóteses que não sejam aquelas relativas à aquisição das próprias mercadorias por eles comercializadas (omitindo-se, portanto, quanto à possibilidade, nessas circunstâncias, do aproveitamento de créditos nas aquisições de “insumos” e bens integrantes do ativo imobilizado).
Como se vê, a heterogeneidade das regras previstas para ICMS, IPI e PIS/Cofins impede que haja, de fato, um “sistema” coerente e harmônico sobre a forma como o princípio da não cumulatividade deva ser interpretado e aplicado.
No que diz respeito ao PIS/Cofins, a questão é ainda mais gravosa, tendo em vista a lacuna legislativa e a oscilação jurisprudencial relativas a conceitos básicos inerentes à aplicação dessa técnica ao campo de incidência dessas contribuições.
De fato, como se sabe, a sistemática não cumulativa do PIS/Cofins foi instituída pelas leis 10.637/02 e 10.833/03, cujo artigo 3º determina que o contribuinte poderá “descontar créditos” em relação a “bens e serviços, utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda” (inciso II).
Há duas lacunas graves nessa norma:
(a) a indefinição do que se deva entender por “insumo”, cujo creditamento, em uma interpretação literal, estaria limitado às hipóteses em que ele fosse utilizado na “produção ou fabricação de bens ou produtos”; e
(b) a não definição das demais aquisições que geram, para comerciantes, direito a crédito, além dos “produtos destinados à venda”, o que torna os efeitos da cumulatividade presentes em todas as hipóteses em que esses créditos não sejam viabilizados.
Como demonstrei na coluna “Insumos geram créditos de PIS/Cofins na exploração e produção de petróleo”, houve enorme controvérsia na jurisprudência sobre a amplitude do conceito de “insumo” para os fins acima demonstrados, tendo havido a prevalência, em fases distintas, de três correntes distintas na jurisprudência administrativa e judicial:
a) em uma primeira fase, adotou-se o mesmo conceito previsto na legislação do IPI, admitindo-se a apuração de créditos decorrentes da aquisição de bens e serviços somente nas hipóteses em que fossem diretamente aplicados ou consumidos na produção/prestação; no âmbito dessa tese, chegaram a ser proferidas decisões no Superior Tribunal de Justiça no sentido de que os créditos em exame seriam comparáveis a benefícios fiscais e, portanto, deveriam estar submetidos à regra de interpretação restritiva exigida pelo artigo 111 do Código Tributário Nacional (CTN), o que, com a devida vênia do referido tribunal, não procede;
b) em um segundo momento, foi adotado o entendimento de que o conceito de insumos previsto na legislação do PIS/Cofins deveria ser equiparado àquele relativo a despesa dedutível para fins do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), que autorizava, portanto, que quaisquer custos ou despesas necessários à atividade da empresa gerassem créditos; e
c) na terceira e última fase, passou a prevalecer o entendimento de que deveriam ser considerados “insumos” para fins de apuração de créditos do PIS/Cofins os bens e serviços que fossem essenciais ao processo produtivo ou à prestação de serviços, assim entendidos todos aqueles sem os quais a atividade produtiva ou a prestação de serviços restaria inviabilizada ou substancialmente prejudicada, ainda que eles não fossem efetivamente consumidos/aplicados na referida atividade ou prestação.
Em decorrência dessa oscilação, o ministro Napoleão Nunes decidiu afetar o julgamento do Recurso Especial 1.221.170, para que ele fosse julgado sob o rito dos recursos repetitivos e, consequentemente, restasse unificado o entendimento dos tribunais federais sobre a matéria.
Esse REsp foi originário de um recurso em mandado de segurança no qual o contribuinte, empresa industrial do setor alimentício, pleiteava o direito ao creditamento incorrido nos seguintes gastos:
(a) “custos gerais de fabricação”, tais quais: água, combustíveis, gastos com veículos, materiais de exames laboratoriais, materiais de proteção de EPI, materiais de limpeza, ferramentas, seguros, viagens e conduções; e
(b) “despesas gerais comerciais”, como combustíveis, comissão de vendas a representantes, gastos com veículos, viagens e conduções, fretes, prestação de serviços, promoções e propagandas, seguros, telefone, comissões etc.
Apesar de a afetação desse recurso ter sido reconhecida em abril de 2014, o seu julgamento somente foi concluído em fevereiro deste ano.
Nele, a 1ª Seção do STJ, por maioria de votos, firmou o entendimento de que a caracterização de um bem ou serviço como “insumo”, para fins de aproveitamento de créditos de PIS/Cofins, deve ser feita com base nos critérios da essencialidade ou da relevância, considerando-se a imprescindibilidade ou a importância da sua participação no desenvolvimento da atividade econômica desempenhada pelo contribuinte.
Para tanto, o STJ definiu que o julgador deve avaliar, em cada caso, o preenchimento dos critérios de essencialidade e relevância descritos acima, sempre em consonância com as atividades que compõem o objeto social da empresa em exame, mediante a aplicação do “teste de subtração”, segundo o qual será considerado essencial ou relevante o bem ou serviço cuja subtração implique a impossibilidade da produção ou da prestação do serviço, ou, ainda, comprometa a sua qualidade.
Com essa decisão, foram julgadas ilegais, por serem demasiadamente restritivas, as instruções normativas 247/02 (artigo 65, parágrafo 5º) e 404/04 (artigo 8º, parágrafo 4º), que adotavam para o PIS/Cofins conceito de insumos próprio do IPI, daí resultando que o creditamento somente era possível nas hipóteses em que os bens fossem consumidos ou desgastados em contato direto com o produto em processo de fabricação.
O voto condutor foi proferido pela ministra Regina Helena Costa, que foi seguida pelos ministros Napoleão Nunes Maia Filho (relator), Mauro Campbell Marques, Asussete Magalhães e Gurgel de Faria. O ministro Og Fernandes inaugurou a vencida divergência, no que foi acompanhado pelos ministros Benedito Gonçalves e Sérgio Kukina.
Não houve, nesse julgamento, definição quanto ao momento em que o insumo deve ser empregado na produção para que seja considerado aplicado no processo produtivo. Esse tema ganha relevância quando se trata de insumos cujo emprego ocorre em fase preparatória à produção (dinamite na extração de minérios, higiene, fase agrícola da produção), ou em momento posterior (reflorestamento, remoção de resíduos).
Quanto à segunda espécie de gastos referida acima (“despesas gerais comerciais”), não se estabeleceu claramente a posição do tribunal sobre a possibilidade de aproveitamento dos créditos relativos aos custos de comercialização de bens, na medida em que a ementa do repetitivo da 1ª Seção do STJ, ao tratar da possibilidade do crédito, (i) emprega expressão bastante abrangente (“atividade econômica desempenhada pelo contribuinte”), em vez de fazer alusão restritiva ao processo produtivo e à prestação de serviços, e (ii) estabelece expressamente que o rol previsto no artigo 3º, II, das leis 10.637/02 e 10.833/03 é meramente exemplificativo.
Não obstante, a possibilidade da utilização desse crédito (relativo às despesas comerciais) me parece mandatória, tendo em vista que se trata de valores que serão agregados ao preço final da mercadoria (ainda que não empregados na fabricação do bem comercializado) e, consequentemente, onerados pela contribuição em exame.
De acordo com os parâmetros definidos no próprio julgado, a essencialidade e relevância do “insumo” devem ser analisadas de forma casuística, sempre a partir do cotejo com o objeto social da empresa. Assim, se os bens adquiridos forem essenciais e/ou relevantes à atividade comercial da empresa, devem gerar direito a crédito.
Ainda sobre esse aspecto, foi noticiado na imprensa, no início deste mês, que a 2ª Turma do STJ retomou a discussão sobre a possibilidade de creditamento de PIS/Cofins incidente na cobrança de taxas por empresas de cartão de crédito (REsp 1.642.014, relator ministro Og Fernandes), mas suspendeu o julgamento do caso em razão do pedido de vista regimental formulado pelo relator. Ele havia votado anteriormente pelo não conhecimento do recurso do contribuinte, mas teria mudado de ideia e afirmado que aplicaria ao caso o entendimento a que chegou o STJ no julgamento do REsp 1.221.170 (o recurso repetitivo a que me referi acima).
Ou seja, agora o caso será analisado à luz da definição de o uso de cartões de crédito ser, ou não, essencial e/ou relevante à atividade do contribuinte. Se a resposta for positiva, tornar-se-á possível o aproveitamento de créditos de PIS/Cofins incidentes sobre as referidas taxas de cartão de crédito.
O que me causa perplexidade é, repito, a restrição que sempre se busca oferecer ao aproveitamento de créditos por empresas que se dedicam exclusivamente ao comércio. Se se reconhece a possibilidade de creditamento de valores correspondentes aos custos essenciais ou relevantes para as empresas cujo objeto seja a industrialização de bens, por que razão essa mesma essencialidade não existiria para os comerciantes, que exercem atividade cuja receita é igualmente tributada por aquelas contribuições?
O mesmo se diga, ainda com mais ênfase, relativamente aos créditos referentes a gastos incorridos com a aquisição de insumos e bens destinados ao ativo imobilizado dessas empresas, para as quais o Carf vem negando o direito ao crédito por não haver expressa previsão legal nesse sentido.
Note-se que, se não se estender essa possibilidade de creditamento ao comércio (e não só à indústria e ao setor terciário), estaremos em um cenário em que se farão presentes todos aqueles malefícios a que me referi no início desta coluna, cuja ocorrência tornou necessária a criação da técnica da não cumulatividade.
Haverá completa ausência do que se espera de um “sistema”, na medida em que haverá um princípio da não cumulatividade diverso para cada tributo a que ele é aplicável (IPI, ICMS e PIS/Cofins), apesar de, como disse acima, essas três exações onerarem bases de mesma natureza (receita ou faturamento).
Quanto a essa afirmação, poder-se-ia argumentar que as bases de cálculo dessas três exações até poderiam ter natureza similar (na medida em que o somatório do valor das operações realizadas — base de cálculo do IPI e do ICMS — equivaleria ao valor da receita ou do faturamento — base de cálculo do PIS/Cofins), mas que o campo de incidência das contribuições não possuiria conexão direta com a circulação de produtos ou mercadorias, como ocorre no IPI e no ICMS, o que propiciaria a diferença de tratamento.
Se assim fosse, contudo, o que admito apenas para argumentar, forçosa seria a conclusão de que a amplitude do direito de crédito do PIS/Cofins deveria ser muito maior do que a daqueles impostos, já que deveria abranger todas e quaisquer despesas incorridas para a obtenção das receitas tributadas por essas contribuições.
Realmente, nada justifica a discrepância de regras relativas ao princípio da não cumulatividade existente no nosso ordenamento.
Abre-se, contudo, uma luz ao final do túnel.
Noticiou-se recentemente que o ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, encaminhará ao Congresso Nacional, ainda neste semestre, proposta cujo objetivo é reformular as regras relativas à incidência do PIS.
Por hora, a reforma abrangerá somente a incidência do PIS, a fim de que seja feita a avaliação das alíquotas que deverão ser adotadas para que o volume de arrecadação não seja reduzido. Uma vez feito esse cálculo, será encaminhada proposta de lei para unificar o PIS e a Cofins em uma contribuição para a seguridade social única.
A última versão do projeto de que se tem notícia propõe que seja adotada a sistemática de crédito financeiro, pela qual todos os custos relacionados à operação de aquisição do bem serão passíveis de creditamento. Transcrevo, abaixo, o artigo 26 da proposta, que institui essa regra:
“Art. 26 A pessoa jurídica poderá apropriar créditos da contribuição para PIS/PASEP em relação à contribuição que onerou a operação de aquisição do bem, inclusive intangíveis, serviços e direitos de qualquer natureza cujos dispêndios relativos à aquisição, nos termos da legislação do IRPJ, sejam admitidos como: (...) II – despesas dedutíveis (...)”.
Sensível melhora, se comparado com o quadro atual!
Surge com esse projeto, contudo, um aspecto preocupante para o setor terciário. É que, em contrapartida à medida acima, a alíquota da contribuição será majorada, passando, em regra, ao patamar de 2,1% (serão também criadas duas alíquotas de 1,5% e de 1,65%, aplicáveis a alguns poucos serviços, elencados nos anexos I e II do projeto).
Com isso, para a grande maioria das sociedades prestadoras de serviços, haverá relevante aumento da carga tributária, visto que as hipóteses de crédito previstas na legislação do PIS/Cofins não atendem o setor terciário, que, via de regra, não se utiliza de insumos e possui concentração de gastos majoritariamente na contratação de mão de obra (não geradora de créditos de PIS/Cofins, como sabido).
Enfim, que o legislador implemente a ampliação das hipóteses em que se admite o creditamento de PIS/Cofins (que representa sensível evolução em comparação às regras atualmente em vigor), mas que esteja sensível à consequência a que me referi no parágrafo anterior e evite majorar as alíquotas incidentes no setor terciário.
Tudo em prol de um “sistema tributário nacional” que, há mais de meio século, alegamos existir.
Gustavo Brigagão é sócio do escritório Ulhôa Canto, Rezende e Guerra Advogados; presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF); membro do Comitê Executivo da International Fiscal Association (IFA); presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro (BRITCHAM-RJ); conselheiro da OAB-RJ; diretor de Relações Internacionais do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa); diretor da Federação das Câmaras de Comércio do Exterior (FCCE); e professor em cursos de pós-graduação na Fundação Getulio Vargas.
Fonte: Conjur
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