A Lei 13.655, publicada em 25 de abril de 2018, que incluiu novos enunciados na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), já está sendo chamada informalmente de “lei da segurança jurídica”. O documento traz expressamente no seu preâmbulo e artigos o referido princípio, até então abstraído implicitamente do ordenamento jurídico na forma de norma estruturante do Estado de Direito.
O artigo 23 da Lei 13.655/18, especificamente, pode ganhar relevância em matéria tributária. Diz o dispositivo:
A segurança jurídica é tema que toca ao assunto do ágio, que representa um dos maiores pontos de contencioso tributário — tanto administrativo quanto judicial. A sistemática de dedutibilidade instituída pela Lei 9.532/97 foi implementada sob o argumento de estímulo fiscal à atração de capital estrangeiro para as privatizações da década de 1990, mas não deixou clara a delimitação dos requisitos do aproveitamento. Recentemente, a Lei 12.973/14 trouxe nova regulamentação a respeito do ágio e reacendeu discussões sobre o assunto.
Com vistas a debater o tema, o Núcleo de Estudos Fiscais da FGV Direito SP realizou, no último dia 23, seminário com a presença de vários especialistas em ágio. Abriram o evento os diretores do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), Bernard Appy e Vanessa Rahal Canado, que apresentaram as perspectivas do assunto em seus estudos de Imposto de Renda e reforma tributária[1].
1. Segurança jurídica tributária: nova LINDB e ágio
A segurança jurídica é norma sobre-principiológica extraída de diversos enunciados constitucionais veiculadores tanto de regras quanto de princípios, como: coisa julgada, devido processo legal, direito adquirido, irretroatividade de leis etc. É norma imbricada com o conceito de Estado de Direito e prega coerência sistêmica em seus aspectos: i) estático, por meio da cognoscibilidade do Direito; e ii) dinâmico, por meio da confiabilidade do passado para o presente e da calculabilidade do presente para o futuro dos atos jurídicos[2].
Apesar da abstração lógico-sistêmica da segurança jurídica ser feita há muito tempo pela doutrina brasileira, muitos tomadores de decisão (judicial e administrativa) alegavam que não existia norma expressa que os obrigasse a julgar com coerência relativamente a posicionamentos anteriores do próprio tribunal ou da administração pública. Agora, com a edição da Lei 13.655/18, esse tipo de argumentação submerge[3].
O novo diploma obriga que as autoridades dotadas de poder de julgamento (judicial e administrativo), quando estiverem diante de normas de conteúdo indeterminado, primeiro, considerem as decisões passadas do Poder Judiciário e da administração pública antes de decretarem suas conclusões. Segundo, caso seja impossível manter o posicionamento sedimentado, que façam a passagem ao novo resultado de forma suave, necessariamente adotando um regime de transição.
A debatedora do seminário Daniela Amadio (Ibet) sustenta que esse dispositivo pode representar risco de engessamento da jurisprudência, impedindo avanços necessários. No entanto, conforme contra-argumentou Julio de Oliveira (advogado), com o novo texto da LINDB “não há vinculação absoluta do julgador com determinado posicionamento, mas há vinculação absoluta no sentido de regulação de uma mudança de posicionamento, na medida em que a liberdade do julgador ou administrador não pode afetar a segurança do administrado”[4].
O tratamento tributário do ágio é alvo de discussão incessante no Carf e no Poder Judiciário, que constantemente adotam posturas opostas às suas próprias decisões anteriores, a depender de características do caso concreto. Assim, não existe segurança jurídica que resguarde o contribuinte, seja em relação ao passado (planejamentos tributários já ocorridos), seja relativamente ao futuro (planejamentos juridicamente informados de atos negociais a serem consumados).
2. Outros aspectos do ágio abordados no evento do NEF/FGV Direito SP
A figura do ágio também foi debatida com base em outras questões.
Primeiro, Bernard Appy (CCiF) sustentou que, do ponto de vista econômico, deveriam ser irrelevantes as formas de organização societária dos grupos econômicos (se implementam fusão, cisão etc.). O economista defende que o regime de tributação do ágio não deve gerar impactos na estruturação de negócios, pois isso retira a neutralidade sistêmica e acaba produzindo anacronismos indesejáveis.
A perspectiva econômica do ágio deve servir de parâmetro para o legislador ao elaborar o desenho da política fiscal. De pouco adianta, por exemplo, diferenciar o tratamento do ágio entre as pontas do negócio: “A estrutura mais adequada para o ágio deveria considerar tanto o lado do comprador quanto o do vendedor. Um incentivo tributário ao comprador (dedutibilidade) aumenta o preço e beneficia o vendedor. Contudo, tributando-se de maneira certa o vendedor, não haveria problema em fornecer o benefício ao comprador”, afirma o economista[5].
Segundo, tanto Fernando Tonanni (advogado)[6] quanto Caio Quintella (Carf)[7] concordam que a Lei 12.973/14 apaziguou muitos debates do contencioso do ágio carregados desde a edição da Lei 9.532/97. No entanto, restaram discussões sobre termos não bem especificados pela lei (as chamadas normas de conteúdo indeterminado), principalmente no que concerne a questão da substância sobre a forma.
Sobre esse ponto, as advogadas Thaís Meira e Raquel Novais[8] firmaram posicionamento de que “substância e propósito negocial não foram positivados no Direito brasileiro”, o que, em tese, impossibilitaria que esse tipo de debate estivesse sendo travado no âmbito do Carf — órgão vinculado à legalidade. A autoridade administrativa, ao se deparar com a matéria, não nota que adjetivos econômicos e contábeis implicam na impossibilidade de subsunção da lei tributária na prática.
3. Conclusão
Ao contrário do pensamento corrente, o ágio não é uma exclusividade brasileira. Muitos outros países utilizam essa sistemática no escopo da tributação da renda[9], o que muda é a perspectiva de instrumentalização da ferramenta: nos EUA, por exemplo, lembra Marcos Neder[10], é possível se fazer a reavaliação a mercado antes da aquisição do investimento.
O que se busca no atual momento é a ressignificação do instituto do ágio para retirar valorações excessivas, feitas tanto pelo Fisco quanto pelos contribuintes, que acabaram contaminando o ambiente de discussão ao longo do tempo. A primeira mudança de concepção, sugere Vanessa Rahal Canado, pode ser encarar o ágio como sendo um efetivo direito ligado ao conceito de renda e dedutibilidade, em vez de mero benefício fiscal.
Nesse panorama, as alterações da LINDB ajudam a implementar espaço de maior segurança jurídica, pois impossibilita que os órgãos julgadores enderecem posicionamentos dissonantes sobre normas de conteúdo indeterminado, e os pontos de controvérsia do ágio estão justamente nas obscuridades da legislação.
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Neste link está o relatório de pesquisa completo elaborado pelos pesquisadores do NEF/FGV Direito SP, que tem como objetivo estruturar os principais pontos abordados pelos debatedores que compuseram a mesa do seminário, permitindo que as colocações e debates travados no âmbito do evento sirvam de material de pesquisa para aqueles que se interessam pela temática do ágio.
O relatório segue a seguinte lógica: discriminação de cada um dos convidados por ordem de fala, suas principais colocações e nota de rodapé que contém o caminho para o exato momento do vídeo do evento (publicado pela FGV Direito SP) em que a respectiva fala é encontrada.
[1] Relatório de Pesquisa do evento “Ágio e Ganho de Capital”, p. 3-4.
[2] ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
[3] Relatório de Pesquisa do evento “Ágio e Ganho de Capital”, fala de Júlio de Oliveira, p. 7.
[4] Relatório de Pesquisa do evento “Ágio e Ganho de Capital”, p. 8.
[5] Relatório de Pesquisa do evento “Ágio e Ganho de Capital”, p. 3.
[6] Relatório de Pesquisa do evento “Ágio e Ganho de Capital”, p. 5.
[7] Relatório de Pesquisa do evento “Ágio e Ganho de Capital”, p. 6.
[8] Relatório de Pesquisa do evento “Ágio e Ganho de Capital”, p. 6-7.
[9] Jorge Lopes Jr., advogado que participou como debatedor no seminário do NEF, cita estudo feito no Chile sobre o modelo de tributação do ágio em vários países: https://www.cepchile.cl/cep/site/artic/20180131/asocfile/20180131130127/pder476_parraup.pdf.
[10] Relatório de Pesquisa do evento “Ágio e Ganho de Capital”, p. 7.
Eurico Marcos Diniz de Santi é professor e coordenador do NEF/FGV Direito.
João Alho Neto é pesquisador do NEF/FGV Direito SP e mestrando em Direito Tributário na USP.
Gabriel Franchito Cypriano é estagiário de pesquisa do NEF/FGV Direito SP e graduando em Direito na PUC-SP.
Fonte: Conjur
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