Na madrugada do dia 5 de abril, consumou-se o tão falado julgamento do Habeas Corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Supremo Tribunal Federal, aqui denominado de “caso Lula”.
Nessa ocasião, como amplamente divulgado, a corte suprema manteve seu posicionamento firmado em 17 de fevereiro de 2016, no HC 126.292, da relatoria do saudoso ministro Teori Zavascki, possibilitando, assim, a prisão do ex-presidente quando esgotada a jurisdição do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (segunda instância).
O julgamento polarizou a sociedade. De um lado, ao que aparenta, encontram-se pessoas com ideais sociais e/ou favoráveis ao ex-presidente, contrários à prisão em segunda instância, visando à libertação do seu líder político. Do outro, pessoas com ideais de direita, supostamente combatentes da impunidade, favoráveis à prisão em segunda instância, no afã de verem o ex-presidente da República atrás das grades, cumprindo pena provisória pelos crimes, em tese, cometidos.
No denominado “caso Lula”, os ministros do STF também tiveram seus posicionamentos polarizados, resultando o apartado placar de 6 votos a 5 favorável à prisão após o esgotamento da segunda instância. Nesse julgamento, os argumentos metajurídicos, de índole política e social, em relação ao tema “execução provisória da pena”, foram de fácil percepção.
Alegou-se que a vedação da “execução provisória da pena” significaria a liberdade de assassinos e estupradores. Com todo o respeito, essa afirmação não pode ser considerada verdadeira. Referida alegação, replicada inclusive por diversos juristas, não procede, pois a prisão após julgamento de recurso de apelação não tem qualquer relação com supostos assassinos, traficantes, estupradores (que, se assim são denominados, é porque já há um grau de culpabilidade evidente), que já estão presos preventivamente.
Hoje, no Brasil, quase 50% da população carcerária está presa cautelarmente, é dizer: presos aguardando julgamento. Por quê? Porque, no entender dos julgadores, eles representam perigo à ordem pública, à ordem econômica, ameaçam fugir ou obstruir o desenvolvimento da investigação ou do processo penal. Vale dizer: essas pessoas permanecerão presas, sim, independentemente do entendimento do Supremo.
A bem da verdade, este novo tipo de prisão, inexistente no ordenamento jurídico penal, não resolverá o problema do país. Trata-se de um paliativo, que visa transferir a responsabilidade da impunidade, do sistema processual penal brasileiro e da demora dos julgamentos pelos tribunais superiores para aquelas pessoas que estão soltas e processadas criminalmente. Talvez discutir voto, modificações legislativas, inclusive constitucional, tal qual a prerrogativa de foro por função, alterando-a legislativamente (e não através do Judiciário — como erroneamente tem acontecido), diminua, desta vez com justiça, a impunidade.
Contudo, buscando dar uma resposta para a sociedade — que clama por justiça e menos impunidade —, às custas do sistema constitucional/legal, vem-se preferindo violar garantias constitucionais e direitos fundamentais do cidadão, utilizando-se de perigosas manobras, pautada em argumentos metajurídicos, de índole política e social, a fim de permitir uma satisfação popular, por assim dizer, “inconstitucional”.
Semelhante a esse debate, no dia 15 de março de 2017, foi travado no STF discussão sobre a tese jurídico-tributária da exclusão do ICMS da base de cálculo da contribuição ao PIS e à Cofins, no RE 574.706/PR, julgado sob o rito da repercussão geral.
Nessa ocasião, em vez do fator político e social, foi alegado o fator econômico, por parte da Procuradoria da Fazenda Nacional, tese encampada por alguns dos ministros do STF para justificar a constitucionalidade da referida incidência tributária.
A União previra no anexo V (“riscos fiscais”) da Lei de Diretrizes Orçamentárias do ano de 2017 (Lei 13.408/2016) que o julgamento favorável aos contribuintes ensejaria “rombo” de R$ 250,3 bilhões aos cofres públicos. Em resumo, utilizou-se de estratégia argumentativa, muito comum no Direito Tributário, da diminuição da arrecadação do ente público para justificar cobrança inconstitucional de tributo.
Ocorre que não deve, em nenhuma hipótese, o fator econômico justificar a cobrança inconstitucional de um tributo, conduta típica de um Estado de exceção. Embora o debate econômico do Direito Tributário travado nessa ocasião tenha sido alarmante, do ponto de vista jurídico-tributário, felizmente, a maioria do STF (6 votos a 4) foi favorável aos contribuintes, excluindo a parcela de ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins[1].
Os fatores políticos, sociais e econômicos das discussões jurídicas, do ponto de vista pragmático, devem, necessariamente, ser debatidos pelos cidadãos. Acontece que os aplicadores do Direito, por outro lado, devem pautar, cada vez menos, suas discussões nesses aspectos por se tratarem de argumentos metajurídicos. Devem, sim, a nosso ver, basearem-se, fundamentalmente, na norma jurídica, sob o prisma da Constituição Federal de 1988 e demais leis infraconstitucionais, independentemente do efeito prático de cada decisão, sob pena de provocar abusos e arbitrariedades.
Ocorre que, na contramão de tudo o que foi defendido neste texto, a União publicou, em 26 de abril, a Lei 13.655/2018, que incluiu os artigos 20 ao 30 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). Em tese, os referidos dispositivos vieram elevar a “segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público”, notadamente, ao que aparenta, veio para pretensamente tornar eficiente o Direito Penal, o Tributário e os demais ramos púbicos do Direito.
Nesse intuito, o artigo 20 dessa lei previu que, “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. No mesmo sentido, o artigo 21 da mesma lei previu “a decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas”.
Em outras palavras, esses dispositivos positivaram o jeito mais fácil de se efetivar políticas públicas, por meio de decisões judiciais. Nesse sentido, ao que aparenta, poderá uma decisão judicial justificar que um direito fundamental (por exemplo, presunção de inocência ou vedação da tributação confiscatória) não foi violado em razão prática da medida realizada no caso concreto (caráter prático das decisões, porque não dizer metajurídico), sob pena inclusive de ser taxada de ineficiente e despida de segurança jurídica. O que nos parece, no entanto, é o inverso. O sentimento que prevalece, após essa inovação legislativa, é de completa insegurança jurídica.
Não se pode preterir um texto constitucional - cuja luta para sua materialização foi árdua, mas conquistada com orgulho – com a finalidade de atenuar crise políticas, decorrente de fatores sociais e econômicos, tampouco para se fazer justiça contra quem quer que seja (investigado ou contribuinte). A discussão no âmbito da Ciência Política desses aspectos, que é louvável e necessária, sobretudo nas urnas, não deve nortear a aplicação do Direito. É preciso ter responsabilidade com o rumo que as coisas estão tomando, não só no âmbito penal, mas, também, como aqui aventado, no campo tributário. Os argumentos metajurídicos são abomináveis e, se continuarem sendo utilizados no Direito, sobretudo após a Lei 13.655/2018 (que alterou a LINDB), gerará um anacronismo sem volta, podendo afetar, inclusive, o nosso Estado Democrático de Direito.
[1] Tema 69 da repercussão geral, fixou a seguinte tese: "O ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins".
Pedro Cavalcanti Amarante é advogado tributarista, sócio do Almeida e Barros Advogados.
José Luiz Galvão é advogado criminalista, sócio do Da Fonte Advogados e membro da Comissão de Direito Penal da OAB-PE.
Fonte: Conjur
Nenhum comentário:
Postar um comentário