No ano de 2013, quando ainda trabalhava como pesquisadora do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getulio Vargas, participei de pesquisa coordenada pelo professor Fernando Rezende sobre o ICMS no Brasil, publicada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, intitulada "Brazil’s ICMS Tax: origin, changes, current situation and paths to recovery"1.
Dentre as diversas e importantes conclusões do estudo, constatou-se que a expressiva desoneração tributária, levada a cabo por meio de incentivos fiscais para diversos setores da economia, sobrecarregava a tributação dos seguintes itens: combustíveis, energia e telecomunicações, que, sozinhos, representavam em alguns estados metade da arrecadação com o ICMS.
Mas por que isso ocorre?
Para responder a esse questionamento, precisamos entender um pouco sobre como funciona a cobrança do ICMS no Brasil (um tributo que incide sobre a circulação de mercadorias).
Todos os estados brasileiros buscam atrair empresas para o seu território, com o objetivo de aumentar a oferta de empregos e promover o seu desenvolvimento.
Mas de que maneira eles têm feito isso? Concedendo toda sorte de benefícios fiscais, cada vez mais generosos, para que as empresas optem por se instalar em seu território.
Resultado: guerra fiscal, perda generalizada de arrecadação (sem falar nas distorções para a competitividade).
Como os estados compensam essa perda de arrecadação? Tributando de maneira mais gravosa materialidades com as quais não se consegue fazer esse tipo de política tributária: combustíveis e energia elétrica.
Por que energia elétrica e combustíveis?
Porque, enquanto as demais mercadorias, via de regra, são tributadas pelo estado onde o bem é produzido (tributação na origem), a energia elétrica e os combustíveis são tributados pelo estado onde esses bens são consumidos (tributação no destino). Ou seja, quando a tributação se dá no local de destino da mercadoria, os estados perdem o poder de utilizar a tributação como um meio para atrair empresas para o seu território, uma vez que, independentemente de onde ela se instale, a tributação incorrerá no local de destino do bem3.
Haveria então um meio de evitar a sobrecarga tributária que recai sobre os combustíveis?
Sim. Esse efeito certamente seria minorado caso a tributação no destino fosse a regra para todas as mercadorias tributadas pelo ICMS no Brasil; caso a tributação no destino não fosse empregada unicamente para energia elétrica e combustíveis.
É claro que uma mudança como essa não pode ser feita de maneira abrupta. Eventuais perdas de arrecadação verificadas no curto prazo em um ou outro estado precisam ser pensadas e equalizadas. Tal afirmação, contudo, não invalida a necessidade de alteração do modelo, que, no médio prazo, tende a promover a melhoria do ambiente de negócios, crescimento econômico e, consequentemente, aumento da arrecadação em todos os níveis de governo.
Sou apenas eu quem diz isso? Não.
No Brasil, isso vem sendo repetido desde 1985, quando foi criada, no âmbito da então Secretaria de Planejamento da Presidência da República, a Comissão de Reforma Tributária e Descentralização Administrativa (Cretad), cujo objetivo era recolher e organizar subsídios para a reforma do sistema tributário que ocorreria ao longo do processo de elaboração da nova Constituição, a qual contou com a participação expressiva de técnicos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Naquela ocasião, a solução, acatada pela maioria dos especialistas na área, foi adotar o princípio do destino na aplicação do ICMS, de modo que ele incidisse sobre o consumo, e não sobre a produção, o que, além de corrigir sua ineficiência econômica, traria ganhos para o equilíbrio federativo, pois a repartição do consumo é menos concentrada do que a repartição da produção4. No entanto, tal solução findou por não ser adotada.
Se no passado havia razões de ordem prática para que a tributação se operasse na origem (dificuldade para fiscalizar os estabelecimentos de destino, que são mais numerosos), tal dificuldade já não se justifica no cenário atual, diante do desenvolvimento da tecnologia da informação.
Em toda a Europa, onde nasceu nossa sistemática de tributação sobre o valor agregado, já se adota a tributação no destino como regra.
A tributação na origem é vista atualmente pelos países-membros da OCDE como algo arcaico, ineficiente, que apenas se justificou no passado em virtude de entraves tecnológicos.
Reformas tributárias ocorridas mundo a fora, visando implementar um sistema tributário simples, economicamente eficiente e apto a combater evasões fiscais na tributação sobre o valor agregado, têm adotado, como mote, o princípio da tributação no destino.
A esse respeito, veja-se o que dispõe estudo coordenado pela European Comission, publicado em janeiro de 2018, intitulado "Reforma das regras de tributação sobre o valor agregado na União Europeia":
“As stated in its ‘Action Plan on VAT’, in 2017 the Commission aims to outline the key principles and design features for a simple, efficient and fraud-proof VAT regime based on the country-of-destination principle (European Commission, 2016a). […] In December 2011, with the 'Communication on the future of VAT – Towards a simpler, more robust and efficient VAT system tailored to the single market' (COM(2011) 851), the Commission signalled it was abandoning the previous policy objective of introducing a VAT system based on the origin principle, and instead proceeding towards full implementation of the destination principle.
The move towards a definitive VAT regime based on the destination principle means that suppliers can no longer benefit from relocating to a jurisdiction applying low rates as it is the country of the customer and not the country of establishment of the supplier that determines the tax rules for most supplies of goods and services”5.
Richard Bird, em artigo publicado em 2013, já exaltava o funcionamento eficiente da tributação sobre a circulação de mercadorias amparada no princípio do destino, levada a cabo pelos entes subnacionais no Canadá, na parcela que lhe corresponde nesse tributo6.
Vimos acima que não foi por falta de aviso que o Brasil tem preferido insistir no erro7. Continuamos a amparar o nosso principal imposto sobre o valor agregado em um ineficiente modelo de tributação na origem, na contramão do mundo. Se nada for feito a respeito, seguiremos como o país do combustível caro, da tributação complexa, ineficiente, que impede o crescimento econômico, que prejudica a competitividade. Continuaremos a ser o país mais custoso do mundo apenas para se pagar tributo, o país no qual uma empresa precisa gastar 2.600 horas8 para se adequar à legislação tributária. Isso sem falar no lado da despesa, dos privilégios... Mas isso é assunto para outro artigo.
Enfim, não é apenas combustível barato que nos falta para seguir em frente.
1 https://publications.iadb.org/handle/11319/5767
2 http://www.fecombustiveis.org.br/revendedor/tributacao
3 Isso significa o fim da política de atração de investimento pelos Estados? Não. Significa a necessidade de políticas mais racionais e articuladas de atração de investimentos e que efetivamente resultem em ganhos de longo prazo para a população.
4 https://publications.iadb.org/handle/11319/5767
5 https://publications.europa.eu/en/publication-detail/-/publication/047b9270-ff3b-11e7-b8f5-01aa75ed71a1/language-en/format-PDF/source-70796367
6 https://www.ibfd.org/sites/ibfd.org/files/content/marketing/Journal_Previews/BIFD_BIT/BITPreview2013_12.htm
7 Ressalte-se o esforço do Ipea que, em 1987, publicou uma coleção de textos visando divulgar as propostas formuladas no âmbito da Cretad. Posteriormente, já em 2007, Rezende, Oliveira e Araújo publicaram artigo com um resumo dessas propostas. REZENDE, Fernando; OLIVEIRA, Fabrício; ARAÚJO, Erika. O dilema fiscal: remendar ou reformar. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
8 https://www.conjur.com.br/2013-nov-07/andressa-torquato-empresa-gasta-2600-horar-pagar-tributos
Andressa G. Torquato Fernandes é professora de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal Fluminense (UFF), professora visitante do Institute for Law and Finance da Universidade de Frankfurt (Goethe University), pós-doutoranda em Economia pela FGV São Paulo; doutora em Direito Financeiro pela Universidade de São Paulo, com doutorado sanduíche pelo Center for Energy, Petroleum and Mineral Law and Policy da University of Dundee (Escócia).
Fonte: Conjur
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