Em coluna anterior, demonstramos a inconstitucionalidade da sub-rogação da empresa adquirente no Funrural devido pelo empregador rural pessoa física que lhe fornece produtos agropecuários.
Hoje discutiremos novamente a sub-rogação no agronegócio, mas focando a responsabilidade do adquirente (pessoa física ou jurídica) pela contribuição para o Senar devida pelo produtor rural pessoa física, com ou sem empregados, com quem negocia.
O Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) foi criado pela Lei 8.315/91, em obediência ao artigo 62 do ADCT. O artigo 3º da lei instituiu contribuição destinada ao custeio da entidade, correspondente a 2,5% da remuneração paga aos empregados pelas pessoas jurídicas de direito privado (ou equiparadas) que exercem atividades agroindustriais, agropecuárias, extrativistas vegetais e animais, cooperativistas rurais e sindicais patronais rurais.
Pouco depois, a Lei 8.540/92 (artigo 2º) instituiu contribuição específica para os empregadores rurais pessoas físicas, consistente em 0,1% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção.
Em seguida, o Decreto 790/93 modificou o Decreto 566/92 (Regulamento do Senar) para nele incluir, sem respaldo legal, a previsão de que o tributo devido pelo produtor seja pago pelo adquirente, consignatário ou cooperativa a quem forneça os seus produtos (artigo 11, parágrafo 5º, alínea “a”).
A Lei 9.528/97 reiterou o Senar dos empregadores rurais pessoas físicas, estendendo-o agora aos chamados segurados especiais (produtores rurais pessoas físicas sem empregados), mas sem nada dizer sobre sub-rogação (artigo 6º).
Mais tarde, a Lei 10.256/2001, também silente em matéria de sub-rogação, modificou o dispositivo acima referido, dobrando a alíquota do Senar das pessoas físicas em geral, que então passou a ser de 0,2%.
Foi só em 2018, com o advento da Lei 13.606, que finalmente se instituiu de forma válida a sub-rogação dos adquirentes no pagamento do Senar dos produtores rurais pessoas físicas, empregadores ou não (parágrafo único inserido no artigo 6º da Lei 9.528/97).
Para o período anterior, a ilegalidade é patente, sendo quase desnecessário lembrar que o artigo 150, inciso I, da Constituição veda ao poder público exigir tributo sem lei, e que o artigo 84, inciso IV, da Carta limita os decretos à fiel execução das leis, não lhes permitindo criar deveres fora dos desses esquadros.
Já em 1966, o CTN dava a mais ampla extensão ao princípio da legalidade, estendendo-o a todos os aspectos relevantes da obrigação tributária, inclusive — é evidente — à sujeição passiva. De fato, o artigo 97 dispõe que somente a lei pode estabelecer “a definição do fato gerador da obrigação tributária principal (...) e do seu sujeito passivo”; o artigo 121 reza que o sujeito passivo se diz responsável quando, sem ter relação pessoal e direta com o fato gerador, “sua obrigação decorra de disposição expressa de lei”; o artigo 128 prevê que “a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador”; e o artigo 99 veda os regulamentos autônomos, ao consignar que “o conteúdo e o alcance dos decretos restringem-se aos das leis em função das quais sejam expedidos”.
Claro, portanto, que até a entrada em vigor do parágrafo único do artigo 6º da Lei 9.528/97, inserido pela Lei 13.606/2018, a contribuição para o Senar não podia ser exigida do adquirente que negocia com produtor rural pessoa física.
Aliás, essa própria inovação legislativa confirma a inexistência de fundamento legal até então. De fato, qual seria a utilidade de instituir novamente hipótese de sub-rogação que já constasse do ordenamento? Bem por isso, a jurisprudência de nossos tribunais regionais federais tem rechaçado a exigência aqui discutida (3ª Região, 1ª Turma, Ag. 0006502-71.2016.4.03.0000, relator desembargador federal Wilson Zauhy, DJ 6/10/2016; 4ª Região, 1ª Turma, Apelação 5024583- 30.2015.404.7100, relator des. federal Jorge Antonio Maurique, juntada em 16/6/2016; 4ª Região, 2ª Turma, Apelação 5006667-80.2015.404.7100, relator desembargador federal Otávio Roberto Pamplona, juntada em 13/4/2016; 5ª Região, 2ª Turma, Apelação/Reexame Necessário 00055743520104058000, relator desembargador federal Francisco Wildo, DJe 29/3/2012; 5ª Região, 2ª Turma, Apelação/Reexame Necessário 00069261220124058500, relator desembargador federal Paulo Machado Cordeiro – Convocado, DJe 27/3/2014).
A sub-rogação em exame também mereceu censura no Carf (3ª Turma Especial da 2ª Seção de Julgamento, PTA 13603.723862/2012-17, relator conselheiro Eduardo de Oliveira, sessão de 14/5/2014).
Nem se alegue que a pretensão estaria baseada no artigo 30, inciso IV, da Lei 8.212/91, segundo o qual “a arrecadação e o recolhimento das contribuições ou de outras importâncias devidas à Seguridade Social” devidas pelo produtor rural pessoa física, com ou sem empregados, ficam sub-rogadas na empresa adquirente, consumidora ou consignatária.
A uma porque o inciso IV remete de forma expressa ao artigo 25 da Lei 8.212/91, que trata apenas do Funrural e do adicional ao SAT[1], e não da contribuição ao Senar.
A duas porque o caput do artigo 30 alude a contribuições e outros pagamentos devidos à seguridade social, enquanto a contribuição ao Senar tem natureza de contribuição corporativa, tanto que não é afastada pela imunidade do artigo 149, parágrafo 2º, inciso I, da Constituição[2]. Nesse sentido: STJ, 2ª Turma, REsp. 375.847/PR, relator ministro João Otávio de Noronha, DJ 31/5/2007; 1ª Turma, AgRg. no REsp. 1.225.787/RS, relator ministro Teori Albino Zavascki, DJe 11/3/2011; 2ª Turma, AgRg. no REsp. 1.224.968/AL, relator ministro Herman Benjamin, DJe 10/6/2011.
O próprio Senar, em cartilha de divulgação, apresenta o tributo como tendo “caráter corporativo, de interesse de categoria profissional e econômica”, acrescentando ainda que “a natureza jurídica da contribuição para o Senar é distinta da contribuição previdenciária (Funrural)”.
Isso sem falar que o artigo 30, inciso IV, da Lei 8.212/91 (i) foi por duas vezes declarado inconstitucional pelo STF (RREE 363.852/MG e 596.177-RG/RS) e (ii) teve a execução suspensa pela Resolução 15/2017 do Senado Federal.
Em conclusão, independentemente da controvérsia a respeito da constitucionalidade da própria contribuição para o Senar (tema 801 da repercussão geral do STF), o fato é que, até 9 de janeiro deste ano, não havia norma válida impondo a sub-rogação dos adquirentes no dever dos produtores rurais pessoas físicas com ou sem empregados.
[1] “Art. 25. A contribuição do empregador rural pessoa física, em substituição à contribuição de que tratam os incisos I e II do art. 22, e a do segurado especial, referidos, respectivamente, na alínea a do inciso V e no inciso VII do art. 12 desta Lei, destinada à Seguridade Social, é de:
I – 1,2% (um inteiro e dois décimos por cento) da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção;
II – 0,1% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção para financiamento das prestações por acidente do trabalho (...)”
[2] “Art. 149, § 2º. As contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico de que trata o caput deste artigo:
I – não incidirão sobre as receitas decorrentes de exportação (...)”
Igor Mauler Santiago é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.
Fonte: Conjur
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