sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Inovação ou retrocesso? O STJ e a criminalização do Direito Tributário

Tornou-se tema midiático, inclusive noticiado pelo JOTA e por artigo de nossa autoria1, o fato do simples inadimplemento do ICMS poder ser considerado pelo STJ como crime contra a ordem tributária, nos termos do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90.

A discussão teve início quando da apreciação do REsp 1598005/SC, mas foi na sessão do dia 22/08/2018, após mais de um ano de intensos debates, que o STJ finalizou o julgamento do HC 399109/SC com resultado surpreendente.

Dentre muitos aspectos que podem ser abordados em relação a essa decisão polêmica, dois em especial chamaram a nossa atenção.

O primeiro diz respeito ao entendimento do relator ministro Rogerio Schietti Cruz calcado na interpretação restritiva do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90. Considera que a prática de crime não exigiria, necessariamente, qualquer ato de “clandestinidade”. Em outros termos, o fato de o contribuinte declarar o imposto como devido já seria elemento suficiente para enquadrar a conduta do agente como prática criminosa.

O citado dispositivo define como crime “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”, não exigindo, expressamente, qualquer ato omissivo ou fraudulento. Diante da análise literal, o Relator desconsiderou a “clandestinidade” como elemento capaz de confirmar a materialidade delitiva. Basta não recolher o tributo declarado para que o elemento doloso subjacente ao tipo penal se verifique.

Contudo, consideramos ser imprescindível analisar os incisos do artigo 1o e 2o da Lei de forma conjunta, harmônica e convergente. Nestes casos, colocar à parte regras de hermenêutica pode gerar graves violações ao princípio da igualdade. Faz sentido ser crime situação em que o contribuinte informa expressamente ao Fisco o valor do imposto devido, mas deixa de realizar o pagamento? É razoável admitir que tal contribuinte tenha o mesmo tratamento daquele que omite e falsifica seus livros fiscais, deixa de emitir documentos, busca efetivamente enganar as autoridades fiscais para deixar de pagar tributos? Estamos tratando igualmente “os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades2”?

Para fins de enquadramento do tipo penal, não há como desconsiderar a ausência do que o STJ denominou como “clandestinidade”, isto é, a intenção dolosa por trás do ato de sonegação.

O art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90 visa penalizar hipótese em que o vendedor retém tributo de um contribuinte e deixa de repassá-lo ao Estado – o que sequer se verifica no caso do ICMS próprio. Vejam que o tipo penal apropriação indébita já é tratado como crime no próprio artigo do Código Penal. Não se exige a prática de qualquer ato omissivo ou fraudulento, pois, afinal, reter o tributo de um terceiro e não recolher aos cofres públicos pressupõe, evidentemente, a conduta de má-fé daquele obrigado à retenção.

A conclusão do STJ pela desnecessidade de “clandestinidade” na conduta poderia até ser adequada caso o Tribunal tivesse reconhecido que o crime previsto no artigo 2o, II, da Lei se refere a situação distinta (ICMS-ST), e não à hipótese fática tratada no referido HC 399.109, que envolvia caso de simples ausência de pagamento de ICMS próprio.

O segundo aspecto a ser ponderado é a premissa do Relator de que a criminalização de tal conduta pelo STJ desestimularia os contribuintes a optarem, deliberadamente, por deixar de pagar tributos.

É bem verdade que os indivíduos racionais ponderam custos e benefícios ao tomar decisões: pesam o risco de detecção (risco de efetiva condenação criminal) versus o benefício que pode ser alcançado (a economia de deixar de recolher o tributo). Logo, quanto maior o grau de enforcement da norma tributária/criminal (isto é, o grau de efetivo cumprimento da regra), menor a probabilidade de os contribuintes a descumprirem3.

No entanto, a decisão do STJ dificilmente terá o condão de garantir maior enforcement da lei e desestimular a prática de crimes contra a ordem tributária. Isso porque, há uma série de outros fatores que afetam a “decisão racional” dos contribuintes, dentre eles: a complexidade e a morosidade do litígio administrativo e em especial do judicial, o entendimento jurisprudencial de que o pagamento do tributo extingue a punibilidade, a frequência e as benesses concedidas pelos próprios governos nos programas de anistia/parcelamento de débitos tributários, etc.

No mais, apesar de não ter sido julgado na sistemática de recursos repetitivos, a 3a Seção do STJ tinha como propósito uniformizar a jurisprudência sobre o assunto. Tendo assim o feito, esse recente julgado tem o potencial de gerar as seguintes consequências práticas: (i) o Ministério Público dos demais Estados pode processar criminalmente contribuintes em situações parecidas, o que incrementará caos e instabilidade jurídica; e (ii) risco de efetiva consolidação desse entendimento, prejudicando a continuidade e qualificação do debate.

Diferente do que pretende o STJ, a decisão em questão tente, ao invés de estimular o adimplemento, a fomentar o contencioso tributário. É imprescindível levar o tema adiante e refletir sobre a necessidade de interpretar e aplicar a Lei 8.137/1990 de forma adequada e efetiva, cumprindo a sua função social de criminalizar condutas que mereçam ser criminalizadas e preservando os valores da igualdade e da razoabilidade.

A redução do chamado Brazilian Tax Gap – a diferença de tributos que deveria ser recolhido ao erário e o montante de fato recolhido – depende da reformulação do sistema tributário brasileiro, da imposição de contrapartidas mensuráveis quando da instituição de eventuais benefícios fiscais, bem como da adoção de medidas de transparência e de redução do gasto público capazes de estimular o adimplemento tributário.

O cooperative compliance é fruto da confiança entre administradores e administrados, a implementação de políticas claras de reversão dos valores arrecadados para o atendimento das necessidades básicas dos cidadãos é um bom caminho, seguramente mais salutar e efetivo do que a criminalização de condutas em tempos de crise.

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1 https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/criminalizacao-direito-tributario-corrupcao-31032018.

2 Artigo 5º, caput, da Constituição Federal.

3 A visão da economia do crime foi estudada por Gary S. Becker: Crime and Punishment: An Economic Approach, 1968.

GISELE BARRA BOSSA – Mestre e Doutoranda em Ciências Jurídicos-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Membro do Núcleo de Direito Tributário Aplicado do Mestrado Profissional da FGV Direito SP. Conselheira da 1ª Seção do CARF.

MARIANA MONTE ALEGRE DE PAIVA – Mestre em Direito Tributário pela FGV DIREITO SP. Membro do Núcleo de Direito Tributário Aplicado do Mestrado Profissional da FGV Direito SP. Advogada.

Fonte: Jota

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