quinta-feira, 20 de setembro de 2018

É mesmo crime destacar ICMS e não pagar?

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça firmou a tese de que seria crime de apropriação indébita tributária destacar o ICMS e não proceder ao devido pagamento. A decisão é da Terceira Seção do Tribunal, foi tomada no julgamento do HC 399.109 e afasta a premissa fundamental para a configuração de crime contra a ordem tributária: o mero inadimplemento não seria conduta típica; a ocorrência do crime dependeria da fraude, do falso, da omissão.

O fundamento jurídico adotado foi o artigo 2º, inciso II da Lei nº 8.137/1990, que enuncia ser crime contra a ordem tributária “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. Segundo a tese vencedora, capitaneada pelo ministro Rogério Schietti Cruz, o que distingue o mero inadimplemento de tributo (fato atípico) da apropriação indébita é o dolo do contribuinte de se apropriar dos valores do preço do produto que se referem ao ICMS devido ao Estado.

Além disso, ao interpretar a extensão do dispositivo, define que o termo “descontado”, constante do artigo 2º, inciso II da Lei nº 8.137/1990 limitar-se-ia aos casos de responsabilidade tributária por substituição. De outro lado, a expressão “cobrado” seria aplicável a todos os outros casos em que o ônus financeiro do tributo indireto, tal qual o ICMS, é repassado no preço do produto, mas deixa de ser recolhido ao Estado – nessa hipótese, é irrelevante o fato de tratar de ICMS próprio ou por substituição tributária. Ainda segundo a decisão, a configuração da conduta típica dependeria da existência do dolo de se apropriar dos valores referentes ao ICMS devido ao Estado; circunstância aferível em cada caso concreto.

Antes mesmo do julgamento pela Terceira Seção do STJ, não havia qualquer dúvida de que os casos de substituição tributária de fato se subsumiam ao inciso II do artigo 2º da Lei nº 8.137/1990. O que causou espanto foi a conclusão do Tribunal no sentido de que tal dispositivo também seria aplicável às hipóteses de ICMS devido em operações próprias. Ao que nos parece, a decisão revela profundo desconhecimento da sistemática do ICMS.

O ICMS está submetido ao denominado “cálculo por dentro”, de modo que o valor devido de imposto na operação é computado no preço do produto. Disso decorre que, na hipótese de operações de circulação de mercadorias, a base de cálculo é o valor da operação, acrescido do “montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle”, nos termos da dicção literal do artigo 13, parágrafo 1º, inciso I da Lei Complementar 87/96.

O resultado dessa sistemática é, como regra, a transferência do encargo financeiro do tributo ao próximo da cadeia, qualificado como “contribuinte de fato”. Em outras palavras, o vendedor, que faz parte da relação jurídico-tributária na condição de sujeito passivo do tributo (o chamado “contribuinte de direito”), não arca com o ônus financeiro da exação, mas o repassa na cadeia de consumo, por ocasião da inclusão do ICMS em sua própria base de cálculo.

A despeito disso de ser incontroverso que a repercussão econômica do tributo recai sobre o consumidor final ou o próximo da cadeia, a jurisprudência tem reconhecido há anos a irrelevância desse fato para definir diversas demandas tributárias. Dentre elas, cite-se a limitação da legitimidade passiva para a restituição do imposto ao contribuinte de direito1 e a ausência de imunidade tributária nos casos em que a entidade imune é compradora e, portanto, contribuinte de fato na operação2.

Essas decisões apenas corroboram o argumento de que o ICMS não pertence ao contribuinte de fato, mas o é repassado a ele em razão do método de apuração e recolhimento do imposto. No caso do ICMS devido nas operações próprias, o vendedor é o verdadeiro sujeito passivo da obrigação tributária – e não mero agente arrecadador do imposto. O consumidor apenas arca com o ônus financeiro do ICMS em razão da inclusão do imposto no preço da mercadoria, sem que, por isso, integre a relação jurídico-tributária.

Situação diversa, porém, é o caso da substituição tributária. Aqui, há dois contribuintes “de direito” interagindo, o substituto e o substituído, daí porque, nesse caso apenas, seria viável concluir que o substituto age como verdadeiro agente arrecadador do ICMS devido pelo substituído. E, na qualidade de agente arrecadador em nome do substituído, seria possível a caracterização do crime de apropriação de indébito tributário nos casos em que o substituto não repassa os valores de ICMS ao Estado.

Parece-nos claro, portanto, o total desalinhamento da decisão do STJ com a doutrina e jurisprudência atuais. Há, no entanto, um outro argumento que precisa ser enfrentado.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) analisou a constitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS e fixou o conceito de receita. Com base na distinção feita entre meros “ingressos financeiros” e “receitas efetivamente auferidas”, os contribuintes passaram a alegar que o ICMS destacado na nota fiscal não seria receita própria, e sim receita do Estado. Por essa razão, tais valores deveriam ser excluídos da base de cálculo das contribuições mencionadas.

Esta questão foi pacificada após o julgamento do RE nº 574.706 (pendente de trânsito em julgado), oportunidade em que o STF reconheceu a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo da contribuição ao PIS e da COFINS e firmou posição no sentido de que “não se pode considerar como ingresso tributável uma verba que é recebida pelo contribuinte apenas com o propósito de pronto repasse a terceiro, ou seja, ao Estado”. Sendo assim, o ICMS seria “um simples trânsito contábil, não ingressa no patrimônio da empresa, do contribuinte”. Equiparável, portanto, a uma receita de terceiro.

Considerando que a contribuição ao PIS e a COFINS incidem sobre o faturamento ou a receita da pessoa jurídica, é necessário, para fins de incidência de tais tributos, que os valores incluídos em suas bases de cálculo refiram-se, no entendimento do STF, à “‘riqueza própria’ para que se entendam como adequados à dicção constitucional”. Nessa linha, conclui que qualquer “ingresso que não seja nem resultado dessas atividades nem se agregue de modo definitivo ao referido patrimônio jamais poderá ser incluído no conceito de receita ou faturamento”.

De outro lado, no julgamento do RE nº 606.107/RS, em que foi reconhecida a inconstitucionalidade da inclusão na base de cálculo das contribuições PIS e COFINS não-cumulativas dos valores correspondentes à transferência de créditos de ICMS decorrentes de exportação a terceiros, o STF firmou entendimento de que o conceito de “receita”, do ponto de vista jurídico e constitucional, é aquele referente ao “ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições”.

A interpretação conjunta dos RE nºs 606.107 574.706 parecem fortalecer orientação no sentido de que, também nos casos de ICMS devido em operações próprias, o destaque do tributo, com o consequente repasse de seu ônus financeiro ao consumidor, sem o respectivo recolhimento, traduzir-se-ia em apropriação indébita tributária.

Isso porque, de acordo com já mencionada jurisprudência do STF, a parcela do preço referente ao ICMS-próprio não seria receita do contribuinte de direito, mas um mero ingresso contábil que deveria ser repassado ao Estado. Em caso de não repasse, a intersecção entre a orientação do STF e do STJ levaria à conclusão de que haveria apropriação indébita também nos casos do imposto estadual devido em operações próprias.

Assim, vantagem obtida pelos contribuintes perante o STF e consistente em excluir da base de cálculo da contribuição ao PIS e da COFINS os valores relativos ao ICMS devido em operações próprias, sob a alegação de que a parcela do preço relativa ao ICMS não é receita própria do vendedor, mas “mero trânsito contábil”, seria resultante, pois, na ruína dos contribuintes, do ponto de vista penal.

A conclusão, contudo, não se sustenta. Em primeiro lugar porque a descaracterização do ICMS como receita própria parte da premissa de que ela seria repassada ao Estado, titular do tributo. Não se cogita, em nenhum dos julgados, que tenha havido cobrança ou desconto de imposto de terceiro por aquele que realizou a venda da mercadoria. Cogita-se, sim, que o ICMS ingressa na contabilidade provisoriamente, pois o destino dele é ser entregue do Estado. E o dever de pagar é do contribuinte (de direito) e o ICMS da operação é, igualmente, seu; devido em razão da realização de um dos fatos passíveis de incidência do imposto.

Ademais, o repasse do ICMS no preço decorre não de uma escolha deliberada do vendedor, mas da técnica de apuração desse imposto: conforme dito acima, ele é calculado por dentro e o preço do bem inclui o imposto incidente na operação. Isso não implica dizer que o imposto é do terceiro; o dever jurídico de pagamento segue sendo do vendedor, contribuinte (de direito) do tributo.

Ao lado desse, há um outro argumento: em última análise, todos os tributos, diretos ou indiretos, são embutidos no preço do produto praticado pelo vendedor. O ônus financeiro do tributo, seja do ICMS-próprio, do Imposto de Renda, da CSLL, etc, é sempre suportado pelo “contribuinte de fato”, pela simples razão de que o vendedor repassa esse seu ônus tributário no valor do preço do seu produto ou serviço – é lição antiga de economia que preço é custo mais lucro.

Por fim, recorde-se que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do ARE 999.425, submetido à sistemática da repercussão geral, reconheceu que os crimes previstos na Lei nº 8.137/1990 não se aplicam aos casos de mero inadimplemento de tributo. Nessa ocasião, consignou, expressamente, que “as condutas tipificadas na Lei 8.137/1991 não se referem simplesmente ao não pagamento de tributos, mas aos atos praticados pelo contribuinte com o fim de sonegar o tributo devido, consubstanciados em fraude, omissão, prestação de informações falsas às autoridades fazendárias e outros ardis. Não se trata de punir a inadimplência do contribuinte, ou seja, apenas a dívida com o Fisco”.

É evidente, portanto, que criminalização do destaque e não recolhimento do ICMS devido em operações próprias como apropriação indébita tributária, da forma como posta pelo STJ, traduz-se em verdadeiro meio indireto de cobrança do tributo. A impropriedade do julgado fica ainda mais escancarada se considerarmos que a persecução penal, nesse caso, seria realizada mesmo nos casos em que o crédito tributário não se encontra definitivamente constituído e, assim, independente do encerramento da discussão em âmbito administrativo.

Esses e outros pontos polêmicos envolvendo o ICMS-próprio destacado e não recolhido, serão discutidos no evento “É mesmo crime destacar ICMS e não pagar? Erros e acertos dos Tribunais Superiores”, a ser realizado dia 21/09, das 8:30 às 11hs, na Praça São Lourenço, São Paulo, com a participação dos autores deste texto. As inscrições são gratuitas e limitadas e podem ser feitas no e-mail eventos@dtsc.com.br

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1 Com exceção do caso em que o contribuinte de direito é concessionária de energia elétrica. Nessas situações, o STJ entendeu que a concessionária seria uma longa manus do Estado e, por isso, não teria interesse em litigar pela devolução do ICMS eventualmente recolhido a maior. Em todos os outros casos, apenas o contribuinte de direito teria legitimidade passiva para requerer a restituição do imposto. Cf. REsp 1299303/SC, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 08/08/2012, DJe 14/08/2012

2 RE 608872, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 23/02/2017, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-219 DIVULG 26-09-2017 PUBLIC 27-09-2017

TATHIANE PISCITELLI – Professora da FGV Direito SP. Coordenadora do Núcleo de Direito Tributário do Mestrado Profissional da mesma instituição. Doutora e mestre em direito pela USP.
DAVI TANGERINO – Sócio de Davi Tangerino & Salo de Carvalho Advogados. Professor da FGV Direito SP e da UERJ.
DANIEL DE PAIVA GOMES – Mestrando em Direito Tributário pela FGV Direito SP. Sócio da área de Contencioso Tributário em Vieira, Drigo e Vasconcellos Advogados.

Fonte: Jota.info/

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