O início da
colaboração do ISCAC começa com uma viagem pelos tempos: a contabilidade é tão
antiga quanto o homem que pensa. Sem deixar de ser a escrita, ou sem deixar de
ser linguagem é, antes de mais, pensamento, raciocínio.
O exercício da prática contabilística impõe ao técnico oficial de contas,
não só o conhecimento da técnica contabilística, mas também o domínio das teorias
da contabilidade.1
Falar de
doutrinas ou de teorias da contabilidade remete-nos para o campo do pensamento
especulativo e reflexivo do conhecimento contabilístico, isto é, para a
Filosofia da Contabilidade, onde se procura indagar das causas do objeto, do método
e do fim da Contabilidade. A Filosofia da Contabilidade, na sua vertente
epistemológica, é o produto do estudo, da pesquisa, da reflexão e da
interpretação de muitos autores no decurso da história da humanidade, que se
preocuparam em saber, não só «o que é» a contabilidade (sentido positivo), mas também
«o que deve ser» a contabilidade (sentido normativo), de modo a que ela possa
atingir os seus desideratos, que são o controlo da riqueza e a prestação de
informação de natureza económica, financeira e patrimonial. Quer num caso quer
noutro, impõe-se que se conheça também «o que foi» a contabilidade, como nasceu
e como se desenvolveu, ou seja, importa ter um conhecimento da História da
Contabilidade e, consequentemente, da história da profissão contabilística.
Porém, não
há técnica, ou tecnologia, que não tenha por detrás a ciência e não há ciência
que não tenha a sua história. Referia August Comte: «Não se conhece bem uma ciência
enquanto não se conhecer a sua história»2 ou, como defende, atualmente, Amorim
da Costa: «A História da Ciência é a História da evolução da humanidade onde o homem
melhor transparece e melhor se afirma em toda a sua grandeza, onde cada
indivíduo é o elo de uma cadeia ininterrupta começada há muito tempo antes de
nós e que continuará depois de nós.»3
Perde-se na
noite dos tempos a data a partir da qual o homem passou a ter conhecimento
contabilístico. Mesmo antes da existência da escrita, e da existência de moeda,
era possível encontrar por aí o homo ratiocinator
(o homem
contabilista) de mãos dadas, ora com o homo economicus, ora com o homo sapiens. O nosso amigo e saudoso Professor Lopes
de Sá ensinou-nos que a Contabilidade existe desde o Paleolítico Superior, ou
seja, há cerca de 20 mil anos4, ou até antes dessa data (nas eras Pré-líticas), segundo Masi.5
A escrita,
que apareceu com os povos da Suméria, na Baixa Mesopotâmia, no IV milénio antes
de Cristo (a.C.), marcou a entrada da humanidade na História e na civilização6 e permite localizar os primeiros exemplos
de contabilidade escrita, pese embora em data anterior, no VI milénio a.C.,
seja provável que o homem primitivo tivesse procedido a formas rudimentares de
contagem de bens, praticando a contabilidade, quando inventariava os seus instrumentos
de caça ou de pesca, ou quando procedia à contagem dos animais que aprendeu a
domesticar. Seja como for, a contabilidade é tão antiga quanto o homem que
pensa, visto que a Contabilidade, sem deixar de ser a escrita, ou sem deixar de
ser linguagem é, antes de mais, pensamento, raciocínio. Nas palavras de Melis:
«Desde que o homem se preocupou com o amanhã, preocupou-se, também, em “fazer
contas”, mas, na verdade, nem sempre soube, racionalmente, o que fazer com as
informações que guardou.»7
Havia,
portanto, como defendeu Lopes de Amorim, uma «contabilidade de memória», que
teria antecedido a «contabilidade escrita.»8 Mas, se quisermos ser prudentes, poder-se-á
dizer, como afirma Iudícibus, que a Contabilidade «é tão antiga quanto o homem
que conta e é capaz de simbolizar os objetos e seres do mundo por meio da
escrita, que nas línguas primitivas tomava, em muitos casos, feição pictórica.»9
A Contabilidade
é, então, anterior à escrita10. A escrita apareceu por causa da Contabilidade11. A Contabilidade desenvolveu-se com
a escrita. A Contabilidade também é escrita ou escrituração, enquanto sistema
de linguagem multissecular.
Dois
sistemas de escrita
Com a
invenção da escrita tornou-se necessário, a partir dos sinais que ela se serve,
fixar, de forma material, a linguagem humana e, desse modo, conservá-la. Por
outro lado, importava, concomitantemente, difundir e transmitir essa linguagem
no percurso dos tempos. Eram dois os sistemas de escrita utilizados pelos povos
da antiguidade do Próximo Oriente12: O alfabético, quando um signo representava
cada articulação fónica da linguagem; e o não alfabético, quando um simples
caracter tanto podia traduzir uma palavra (a escrita ideográfrica), como
traduzir uma sílaba (a escrita silábica)13.
A escrita
ideográfica caracterizava-se pelo facto de coisas ou ideias serem representadas
por ideogramas, que são desenhos simplificados. A representação gráfica de
coisas, animais, plantas e de tudo o que rodeasse o ser humano era, no
princípio, mais desenho do que escrita, sendo através dessa pictografia que a
comunicação entre os homens teve origem. Com o passar dos tempos, os esquemas
pictográficos foram, paulatinamente, simplificados e acabaram por representar,
não só objetos, mas também ideias (ideogramas).
Uma das
mais antigas escritas ideográficas da Europa e da Ásia surgiu, por volta dos
anos 3.500 a.C., nas civilizações da Mesopotâmia e da Pérsia, constituída por
sinais em forma de cunha, designada de escrita cuneiforme. Durante esse IV
milénio a.C., os egípcios comunicavam as suas ideias através dos hieróglifos,
mais figurativos que os signos que os precederam e que perduraram até ao séc.
IV a.C., embora com formato mais simplificado.
A escrita
alfabética caracteriza-se pelo facto de cada palavra ser representada por um
número, preciso, de signos, isto é, um signo por cada fonema. O alfabeto mais antigo,
utilizado na escrita semítica, no séc. XIII a.C., foi encontrado em Ugarit (Ras
Shamra), na Fenícia (atualmente Líbano) e que foi a fonte de todos os outros.
O alfabeto
fenício foi, posteriormente, transmitido ao mundo do Próximo Oriente, do qual
resultou o alfabeto semita dos arameus e dos hebreus e, provavelmente, o da Índia,
e foi também adotado pelo Chipre (séc. IX a.C.) e adaptado pela Grécia: Creta e
Melos (séc. IX a. C.).
A escrita
do grego moderno continua a usar esse alfabeto adaptado de origem fenícia,
tendo sido a partir dele que surgiu o alfabeto latino, o qual foi acatado pela
maioria dos países modernos do Ocidente, entre os quais se encontra Portugal14.
Mas, afinal,
quem foram os inventores do alfabeto? A resposta é simples: foram os escribas,
ou seja, os contabilistas da Antiguidade. A Fenícia era um território com
atividade comercial bastante intensa, onde se cruzavam as rotas marítimas do
Oriente com as do Ocidente Mediterrânico. A escrita ou escrituração utilizada pelos
escribas fenícios na atividade comercial parece ter resultado da escrita
hierática egípcia, que era uma espécie de estenografia ou taquigrafia modernas,
que abreviava os hieróglifos. Os escribas fenícios não fizeram mais do que
transformar essas abreviaturas em carateres ou letras. Alicia Pérez e Marta
Vidal referem-se a esses escribas ou contabilistas, nos termos seguintes15:
«A
humanidade deveria mostrar-se reconhecida ao escrivão ou guarda-livros que
trabalhando na solidão de uma feitoria, talvez no deserto, para abreviar os
seus inventários começou a utilizar uns quantos sinais lineares [as letras do
alfabeto] que servem hoje para recolher e perpetuar sobre a terra as mais altas
manifestações do espírito, facilitando as relações entre os homens”. Parafraseando
o filósofo do Renascimento, Erasmo de Roterdão, esse «Elogio da Loucura»,
proclamado pelas autoras ora aludidas, já tinha sido feito por Goody, quando afirmou16:
«O facto de
a contabilização desempenhar um papel tão preeminente entre as utilizações da
escrita na economia política do Próximo Oriente Antigo, teve uma série de consequências
para o sistema cultural. Significava que se dava uma grande ênfase, não às
utilizações mais complicadas – narrativa, descritiva ou literária – da
linguagem, mas às de um tipo não-sintático que caracterizam a arte do guarda-livros
e o cálculo.»
Bibliografia
disponível para consulta em («A Ordem – Publicações – Revista TOC - Bibliografia»)
1 A importância da teoria preceder a prática profissional era reconhecida,
no Renascimento, por Leonardo da Vinci (1542-1519), quando afirmava: «Aqueles
que se enamoram da prática, sem a ciência, são como o navegador que entra no
navio sem timão ou bússola, que jamais tem a certeza para onde vai. A prática
deve ser sempre edificada sobre a teoria.»
2 August Comte (1825): Considétations Philosophiques sur les Sciences et
les Savants.
3 Amorim da Costa, A. M. (2002): Introdução à História e Filosofia das
Ciências, p. 21.
4 Lopes de Sá, A. (1998): História Geral e das Doutrinas da Contabilidade,
p. 25.
5 Masi, V. (1964): La Ragioneria nella Preistoria e Nell’Antichitá, pp 49
e ss..
6 Cabanes, P. (2009): Introdução à História da Antiguidade, p. 125.
7 Melis, F. (1950): Storia della Ragionera, p. 3.
8 Citado por Noel Monteiro, M. (1979): Ob. cit, p. 16.
9 Iudícibus, S. (1980): Teoria da Contabilidade p. 30.
10 Conhecem-se pinturas líticas ou gravações em ossos de rena em que os
desenhos e os traços aí existentes traduzem registos contabilísticos de
quantidades, por regra, de animais, que registava em “conta”.
11 De facto, a escrita contabilística nasceu em data anterior à escrita
comum, como comprovam estudos arqueológicos encontrados na Suméria. A
prioridade dos registos patrimoniais, com objetivos de conhecimento da riqueza,
prevaleceu sobre os restantes registos, segundo Goody, J. (1987): A Lógica da Escrita
e a Organização da Sociedade, p. 67. Nesse sentido, também escreveu Vaz Freixo,
M. J. (2011): Teorias e Modelos de Comunicação, p. 40, nos termos seguintes: «A
argila, seca ao sol ou cozida no forno, desempenhou um papel decisivo na origem
da escrita, tendo-se chegado à escrita por razões essencialmente económicas. Os
produtos da terra eram postos em circulação e uma grande parte deles acabava como
tributo ao deus da cidade. Portanto, face à necessidade de os sacerdotes
disporem de um registo da diversidade de dádivas dos fiéis, surgiu a
necessidade de um sistema de controlo e de contabilidade criado pela poderosa
casta dos sacerdotes.» Sobre o assunto vide Lopes de Sá, A. (1998): Ob. cit.,
pp. 15 e 16.
12 Editorial Verbo (2004): A Enciclopédia, Vol. 8, Dir. Ed. de João Miguel
Guedes, p. 3 246.
13 As únicas escritas ideográficas que sobreviveram até à era contemporânea
foram a chinesa e a japonesa, e a escrita silábica é representada pela que
atualmente se encontra em vigor no Japão.
14 A escrita cirílica, utilizada na Rússia e na Bulgária resultou da
adaptação do alfabeto grego pelo apóstolo dos eslavos, Cirilo de Salónica, por
necessidade de liturgia.
15 Pérez, A.; Vidal, M. (Cood. Ed.) (2005): História Universal, Vol. 2 –
Antiguidade: Egito e Médio Oriente, p. 459.
16 Goody,
J. (1987): Ob. cit., p. 115.
Por Telmo Pascoal - Professor adjunto no Instituto
Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra (ISCAC)
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