No momento em que a Constituição de 1988 foi promulgada já existia em nossa cultura a tradição de órgãos colegiados administrativos de composição paritária, cuja consequência é a imparcialidade pelo equilíbrio de forças. Diante da ausência das garantias típicas da magistratura, é da contraposição de argumentos, formações e origens que se garante a justiça fiscal. Isso permite afirmar que nenhuma possibilidade de extinção deste modelo pode ser constitucional. E no caso do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), os termos da proposta do novo regimento interno parecem demonstrar conhecimento sobre este relevante aspecto.
O ponto que merece destaque é que qualquer anomalia institucional pode tornar impossível a execução futura dos créditos tributários dali decorrentes. E a responsabilidade por estas consequências recai diretamente sobre o Ministério da Fazenda. Sendo o acesso ao devido processo legal na esfera administrativa cláusula pétrea (CF, art. 5º, LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes), inserida no rol de direitos e garantias individuais (Título II), e que na dicção do Supremo Tribunal Federal (Adin 939-DF) também se estende às questões tributárias, qualquer desarranjo no exame dos recursos interpostos pelos contribuintes corrói a liquidez e certeza das consequentes inscrições em dívida.
A garantia do devido processo surgiu no Reino Unido como forma de conter o arbítrio da monarquia. No solo americano evoluiu como forma de coibir violações do Legislativo. E no ordenamento pátrio é importante ferramenta para proteção dos contribuintes em face de abusos perpetrados pelas diversas esferas tributantes. Quem conhece nossa realidade normativa sabe a importância da independência dos órgãos de julgamento administrativo, efetivo contrapeso à possibilidade de uma autuação equivocada.
A decisão da OAB merece ser reexaminada por colocar em xeque variados órgãos administrativos
Existe um regime jurídico no momento da autuação (aplicação da lei de ofício – art. 37 da CF) e outro para a solução dos conflitos decorrentes desta aplicação, através de um órgão de natureza judicante (art. 5º, LV da CF). Nisso não há nada de surpreendente porque a tripartição de poderes prevista pela Constituição consagra uma divisão de natureza funcional, onde a prevalência das atividades legislativas, executivas e judiciárias não impede outras complementares. É assim que encontramos o vínculo dos tribunais de contas ao Poder Legislativo e as providências administrativas do Judiciário. Natural e integrado ao nosso ordenamento o fato dos conflitos decorrentes da aplicação da lei tributária serem solucionados dentro do próprio Executivo. É por isso que Rubens Gomes de Souza referia-se à "administração ativa" para a atuação concreta dos agentes fiscais e "administração judicante" a decorrente solução de controvérsias.
Os processos administrativos instaurados sob a estrutura anterior garantiam aos autuados solução equilibrada e imparcial, de modo que modificações bruscas podem implicar quebra de expectativas e ofender "direitos adquiridos", por ser inadmissível mutação conveniente e posterior das estruturas de julgamento. Merecem grande atenção os casos de julgamentos já iniciados. E mesmo a possibilidade de revisão judicial não pode afiançar excessos porque mesmo ela demanda ritualística sofisticada, custos e nem sempre chega no tempo adequado.
O interesse público pressupõe arrecadação dentro dos parâmetros constitucionais. Vale dizer, de acordo com o ordenamento, respeitando-se o "devido processo" e as peculiaridades de cada situação jurídica. E isso atrai para o rol de julgadores a única classe afeita a este tema: a dos advogados. Nesse cenário, limitação a advogados experientes – que continuamente se dedicam a sua atividade profissional e econômica – implica distorção a imparcialidade, uma vez que reduz a quantidade de proposições a serem consideradas, concorrendo para sobrecarregar ainda mais o Judiciário. E a lembrança de repercussões penais implica maior dramaticidade a este cenário.
Assim, a decisão do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/94, STF ADIN 1.127 DF) no dia 18 de maio merece ser reexaminada, não por estar de acordo com a lei, mas por colocar em xeque variados órgãos administrativos em que não há interesse patrimonial envolvido, sob pena de ser necessária mutação legislativa no âmbito destes órgãos ou na Lei nº 8.906, de 1994.
por Walter Carlos Cardoso Henrique é advogado, professor de direito tributário da PUC-SP, representante da OAB-SP no Codecon e presidente da comissão de assuntos tributários do Movimento de Defesa da Advocacia (MDA)
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Fonte: Valor | Por Walter Carlos Cardoso Henrique
Via Alfonsin.com.br
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