Os
escândalos contabilísticos e financeiros têm vindo a mostrar que, cada vez
mais, «quem se mete em atalhos, mete-se em trabalhos.» Em ética, os “atalhos”
pagam-se quase sempre muito caro, com custos e perdas, tangíveis e intangíveis.
A Contabilidade,
como sistema de informação que é, está ao serviço de diversos interessados – os
stakeholders – a o preparar e comunicar
informação financeira e não financeira. De acordo com a estrutura conceptual do
SNC, «o objetivo das demonstrações financeiras é o de proporcionar informação
financeira acerca da posição financeira, do desempenho e das alterações na
posição financeira de uma entidade, que seja útil a um vasto leque de utentes
na tomada de decisões económicas.» Por esta razão, o trabalho do profissional
da Contabilidade – o vulgarmente designado contabilista – é crucial para apoiar
a tomada de decisões.
Os contabilistas
aparecem, perante muitos, como profissionais dotados de princípios e
capacidades técnicas especiais que lhes permitem desempenhar a sua função com qualidade
inegável e profissionalismo intocável. Há outros, porém, que partindo do mesmo
ponto, os consideram «engenheiros contabilísticos», capazes de transformar qualquer
informação financeira e moldá-la à imagem do que o seu empregador ou cliente
desejam. Gozam, por isso, de uma fama que se divide muitas vezes entre o
«mágico das contas» e o «profissional dedicado e competente.»
É também
vulgar uma certa antipatia pela figura do contabilista, partilhada por economistas
e auditores, granjeada, em grande parte, pela obrigação de relatar a verdade
dos factos, «doa a quem doer.» Mas esta exigência, necessária e fundamental, é
uma obrigação profissional: um dever moral.
Sabemos bem
que a necessidade de elaborar demonstrações financeiras pressupõe a adoção de
procedimentos e critérios alternativos, originando valores que bem poderiam ser
outros, mais apropriados eventualmente, caso o critério utilizado variasse. As
ilações, retiradas da informação financeira apresentada, podem enganar os menos
informados e beneficiar quem detém informação mais “completa”. Poderemos pensar
que a verdade em contabilidade pode ser difícil de alcançar mas não é tanto
assim. Há, todavia, que ter cuidado com os «abusos contabilísticos» na interpretação
das normas (Ferreira, 2002, pp. 207-209).
Contudo,
são conhecidos casos nos quais, por mais que custe admitir, os contabilistas
tiveram alguma (falta de) intervenção, proporcionando que o objetivo enunciado acima
não fosse, completa ou parcialmente, atingido. Noutros casos, porém, a atuação
do prevaricador não terá envolvido o contabilista.
Realçamos,
desde já, que estamos plenamente convencidos que o sentido mais forte é outro e
que a esmagadora maioria dos contabilistas prossegue outros caminhos.
Interminável
lista de escândalos
Mas a história
é, infelizmente, profícua e são vários os exemplos de escândalos
contabilísticos e financeiros, formando uma lista lamentavelmente quase
infindável e que não é específica de uma dada região ou de um dado momento no
tempo. Um pouco por todo o mundo, surgiram notícias que confirmam a ocorrência
destes casos, de onde se destacam: Enron (EUA), WorldCom (EUA), Royal Ahold
(Holanda), Vivendi (França), Bristol-Myers Squibb (EUA), Tyco International
(Suíça), Satyam Computer Services Ltd. (India), Global Crossing Ltd. (EUA),
Parmalat (Itália), Afinsa (Espanha), Skandia (Suécia), Polly Peck (Inglaterra),
Enterasys Networks, Inc. (EUA), HIH Insurance (Austrália), Livedoor (Japão),
HealthSouth (EUA), Zhengzhou Baiwen (China), ComRoad AG (Alemanha), Bank of
Crete (Grécia), Adelphia Communications Corporation (EUA), Samsung (Coreia do
Sul), Northern Rock (Inglaterra), Banestado (Brasil), Fannie Mae (EUA), Freddie
Mac (EUA), Clearstream Banking S.A. (Luxemburgo), AIG (EUA), Lehman Brothers
(EUA), Urban Bank (Filipinas), Gowex (Espanha), e Amir-Mansour Aria (Irão), entre
muitos outros. Destacam-se ainda casos envolvendo pessoas individuais: Bernard
Madoff, Robert Allen Stanford, Dennis Kozlowski, Byrraju Ramalinga Raju, Lee
Bentley Farkas, Martha Stewart, Lance Armstrong, Annette Schavan, Jérôme Kerviel,
Jordan Belfort, Asil Nadir…
Portugal
também não é exceção e realçam-se casos como Associação Portuguesa das
Indústrias de Mobiliário e Afins (APIMA), Clínica Dentária de Santo Ildefonso,
Banco Comercial Português, Banco Português de Negócios, Banco Privado Português,
“Freeport”, “Operação Furação”, “Operação Monte Branco”, processo “Face
Oculta”, Grupo Conforlimpa e o mais recente caso do Grupo Espírito Santo, de
onde sobressaem muitas acusações e, cada vez mais, condenações.1
A comunicação
social e a literatura mais científica vão dando conta de casos destes e
demonstram, na maior parte dos casos, as falhas dos profissionais ao não
servirem o interesse público. É um facto indesmentível e que abrange outros
profissionais, como sejam os auditores. Por razões diversas, falham em fornecer
informação relevante e verdadeira sobre o “que se passa” dentro das entidades,
violando normas e regulamentações diversas, com intenção deliberada de enganar,
publicando e validando uma imagem que nada tem de «verdadeiro e apropriado.»
Todos
sabemos que os últimos anos não foram particularmente favoráveis aos
investidores. Muitos perderam dinheiro e, pior ainda, perderam a confiança nos
mercados financeiros. Continuam a existir dúvidas acerca da integridade de
algumas organizações públicas. Continuam a aparecer notícias sobre escândalos
financeiros, manipulações ou até falsificações contabilísticas. Estes
escândalos financeiros provocaram uma “chamada às armas” das comissões
reguladoras de diversos governos. Organismos reguladores na área da
contabilidade no Canadá, Estados Unidos e de outros países começaram a trabalhar
nos relatórios de contabilidade e o que se tem que exigir às organizações para
que eles sejam mais transparentes (um termo muito em voga atualmente). Fruto
desses trabalhos é o tão famoso Sarbanes-Oxley Act, de 2002.
Foram
criadas novas normas, novas práticas negociais e entidades reguladoras que não
eram sequer concebíveis no começo deste século. A ênfase na ética transformou o
mundo da contabilidade e tornou-o mais dinâmico para os seus profissionais e
recolocou o acento tónico na importância da integridade da informação
financeira. Os impactos também se fizeram sentir, obviamente, ao nível da
formação académica dos atuais e futuros profissionais da contabilidade.
O
roteiro dos crimes económicos
Apesar de
todas as alterações introduzidas a nível regulador e de supervisão, é
inevitável colocar-se a questão: está a sociedade destinada a sofrer
continuamente casos destes? Mais simplesmente: será que a história se continuará
a repetir? Ironicamente, a resposta parece mais fácil do que presumivelmente
deveria ser: sim! A confirmá-lo veja-se, como exemplo, o Global Economic Crime Survey 20142 que comprova, ao longo das suas 60 páginas, a existência de crimes
económicos, em níveis que, em subidas e descidas, passaram de 43 por cento
(2001), para 30 por cento (2009). Entretanto, voltaram a subir até 2013 (37 por
cento).Este relatório apresenta ainda o tipo de crime económico mais frequente,
relatado pelas mais de cinco mil pessoas que contribuíram com dados de 95 países
em todo o mundo: 69 por cento das pessoas aponta a «apropriação indevida de
ativos» como o tipo de crime económico que ocorre com mais frequência, seguido
dos crimes de «fraude com contratos», «suborno e corrupção», «cibercrime» e
«fraudes contabilísticas», com 29, 27, 24 e 22 por cento, respetivamente. O
caso do «cibercrime» é particularmente preocupante, pois tem vindo a subir
substancialmente de ano para ano. O relatório adianta ainda que é no continente
africano que ocorre a maior parte dos casos de fraude, a nível mundial e, com base
em todos os dados e respostas recolhidos, apresenta o perfil típico de um
prevaricador/perpetrador de fraudes a nível interno, numa empresa: homem (77
por cento dos casos), entre os 31 e 40 anos (39 por cento dos casos), há três a
cinco anos na empresa (29 por cento) e com licenciatura concluída ou em
conclusão (35 por cento). Em contraponto, as pessoas que apresentam menores
percentagens são aquelas cujas características são (não cumulativamente): mulheres
(17 por cento), maiores de 50 anos (8 por cento), há menos de dois anos na
empresa (13 por cento) e com mestrado ou doutoramento (19 por cento).
O 2014 ACFE3 Report to the Nations on Occupational Fraud and Abuse4, baseado em 1 483 casos de fraude reportados por mais de 1 700 Certified Fraud Examiners ( CFEs), f ornece estatísticas e lições valiosas sobre como a fraude é cometida, como é detetada e como é que as organizações podem reduzir a sua vulnerabilidade a esse risco. Entre muitos dados estatísticos relevantes, evidencia-se que a maioria dos perpetradores tem formação académica superior e que mais de 20 por cento dos casos de fraude têm lugar no departamento da contabilidade, assumindo-se como o departamento, na empresa, onde mais casos ocorrem.
Portugal também contribuiu para este relatório, com 4 dos 1 483 casos analisados.
O
porquê dos escândalos contabilísticos
No que respeita
aos chamados escândalos contabilísticos, podemos perguntar: como é que isto
acontece? Por que razão os profissionais da contabilidade não executam o seu trabalho
em obediência às normas, procedendo correta e responsavelmente, protegendo o
interesse público? Será incompetência, falta de carácter, falta de integridade,
ingenuidade ou ignorância sobre como atuar? Terão sido confundidos ou enganados
pela informação que lhes foi fornecida, originalmente errada? Terão falhado as
normas ao não conseguirem abranger a complexidade do mundo dos negócios? Precisarão
estes profissionais de mais formação científica e ética?
Estas (e
outras) questões e a resposta às mesmas ultrapassam os merosaspetos técnicos, a
simples necessidade de nos focarmos em normas, princípios ou regras instituídas
pela contabilidade. Forçam-nos a pensar sobre o objetivo da Contabilidade e sobre
o que motiva e influencia o comportamento dos profissionais.
A fraude
sempre esteve presente ao longo de toda a história do mundo empresarial (Jones,
2011). Podemos admitir até que, desde que existem registos contabilísticos,
terá havido a tentação para utilizar a informação e as normas de forma criativa
e flexível, ao ponto de um dado indivíduo, ou conjunto de indivíduos, se
envolverem num contexto de fraude. Quando um contabilista altera e manipula
deliberadamente a informação financeira de que dispõe, para produzir
demonstrações financeiras a pedido, é inevitável a presença de fraude. Caso
haja um procedimento não intencional, poderemos estar a falar de um simples erro,
muitas vezes facilmente corrigível. A fraude, contudo, carrega um fardo (não)
ético mais pesado do que o simples erro, uma vez que pela fraude, o
contabilista pretende benefício próprio ou de outros e pretende enganar, com
firme propósito, todos (ou quase todos) os utilizadores da informação
financeira.
Nunca o
mundo da contabilidade se viu num cerco tão apertado como aquele que se viveu
no início deste século, do qual se sentem ainda muitos reflexos e dos exemplos
infelizes que vão eclodindo um pouco por toda a parte. Os escândalos financeiros
ocorridos nos Estados Unidos, bem como em outros países, trouxeram para a linha
da frente a discussão à volta da forma como a contabilidade encara (ou não)
este tipo de situações.
Com estes
casos, tornou-se ainda mais claro que a informação financeira disponibilizada
pelas organizações deverá ser cada vez mais rigorosa, num sistema de mercado que
se baseia em informação «verdadeira e apropriada» para tomar decisões
acertadas.
Os
profissionais da contabilidade têm responsabilidades éticas para com eles próprios,
para com a sua família, a sua profissão e os seus clientes, bem como para a
entidade para a qual trabalhem. Mas a sua responsabilidade básica é simples:
fazer, por dever, o que se espera que façam. O exercício puro e simples da
profissão de contabilista implica um dever de verdade. No entanto, por vezes, fazer
o que se espera de um profissional da contabilidade pode tornar-se complicado,
devido a conflitos emergentes na esfera profissional e entre esta e a esfera
pessoal.
Os escândalos
financeiros e as situações que os provocam e que deles emanam, totalmente
indesejáveis, estão a originar novos comportamentos a todos os níveis, bem como
reflexões mais exaustivas, com o objetivo de por fim à prática do «vale tudo» e
do «não adianta porque no fim fica tudo na mesma.» De certa forma, estes
escândalos têm o seu lado positivo, pois realçam a importância da ética.
Não é possível,
depois disto, continuar a considerar que a ética é tema de conversa e análise
para filósofos e/ou apenas no meio académico.
Portanto,
ao contabilista não lhe basta conhecer, interpretar e saber aplicar, ainda que
com muita profundidade, as normas contabilísticas em vigor. Há que juntar a
isso aquilo que podemos designar como sensibilidade ética, ou seja, a
capacidade para reconhecer questões morais e éticas relacionadas com o seu dia-a-dia,
decidir e julgar com verdade e integridade, resultando em decisões éticas,
porque racionais. É assim que se constrói um contabilista virtuoso, pelo
equilíbrio de ambas as partes: o conhecimento científico e a sensibilidade para
atuar de forma ética (Stuart et al., 2014)
Facilmente
se percebe que a consideração destes dois vetores obriga a uma mais cuidada
ponderação da decisão, ao implicar um sempre difícil balanço, um bom equilíbrio
na decisão e também vontade de a levar por diante, o que obriga ao bom cultivo
de virtudes éticas.
Mas é de um
ser humano que falamos; um ser humano livre e responsável todavia. «Um ser
humano que, por ser livre, pode fazer o mal mas também pode, e deve, fazer o bem;
pode ser mentiroso, mas também pode, e deve, ser sincero; pode ser egoísta, mas
precisamente por ser livre, pode, e deve, usar essa liberdade responsável para
fazer coisas que redundem em benefício de outras pessoas; um ser humano que sabe
que pode, mas não deve, fazer cálculos exatos a partir de dados falsos» (Moreira,
1999, p. 63).
Torna-se
imperioso que haja força de vontade para pugnar pela verdade e pelo
profissionalismo, mesmo quando outros não o fazem e precisamente porque outros
não o fazem. Sem vontade firme e esclarecida, não conseguiremos nunca vingar nesta
senda pela construção de uma profissão reconhecida por todos.
E cada um
de nós desempenha um papel único e imprescindível.
Bibliografia
disponível em («A Ordem - Publicações – Revista TOC – Bibliografia»)
Notas
1 Como exemplo, em Portugal o p residente da Conforlimpa, Armando Cardoso,
foi condenado (maio 2014) a 11 anos e dois meses de prisão por associação
criminosa e fraude fiscal; o odontologista e a mulher, donos da Clínica
Dentária de Santo Ildefonso, foram condenados (julho 2013) pelos crimes de burla
e falsificação de documentos, a penas iguais de quatro anos e seis meses de
prisão suspensas e ao pagamento solidário de uma indemnização de 53 083 euros
aos SMAS (atual empresa municipal Águas do Porto); o ex-diretor da APIMA, Rui
Ramos, foi condenado a sete anos de cadeia, em 2011, por burla qualificada,
falsificação, ofensa e difamação (foi preso em fevereiro de 2014 para cumprir a
pena); no processo “Face Oculta”, todos os 34 arguidos foram condenados
(setembro 2014), por centenas de crimes de burla, branqueamento de capitais,
corrupção e tráfico de influências.
2 Disponível em: http://www.pwc.com/gx/en/economic-crime-survey/downloads.jhtml;
último acesso em 25 de setembro de 2014
3 Fundada em 1988, a ACFE (Association of Certified Fraud Examiners) conta com mais de 70 mil membros em mais de 150 países e é a maior organização mundial na luta contra a fraude e pioneira na formação e educação de diversos públicos nestas matérias.
4 Disponível e m: http://www.acfe.com/rttn/docs/2014-report-to-nations.pdf;
último acesso em 25 de setembro de 2014.
Por Alberto
Costa Prof. adjunto
(equip.) do ISCA-UA
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