quarta-feira, 20 de maio de 2015

20/05 Os contabilistas e o combate pela verdade

Os escândalos contabilísticos e financeiros têm vindo a mostrar que, cada vez mais, «quem se mete em atalhos, mete-se em trabalhos.» Em ética, os “atalhos” pagam-se quase sempre muito caro, com custos e perdas, tangíveis e intangíveis.

A Contabilidade, como sistema de informação que é, está ao serviço de diversos interessados – os stakeholders – a o preparar e comunicar informação financeira e não financeira. De acordo com a estrutura conceptual do SNC, «o objetivo das demonstrações financeiras é o de proporcionar informação financeira acerca da posição financeira, do desempenho e das alterações na posição financeira de uma entidade, que seja útil a um vasto leque de utentes na tomada de decisões económicas.» Por esta razão, o trabalho do profissional da Contabilidade – o vulgarmente designado contabilista – é crucial para apoiar a tomada de decisões.

Os contabilistas aparecem, perante muitos, como profissionais dotados de princípios e capacidades técnicas especiais que lhes permitem desempenhar a sua função com qualidade inegável e profissionalismo intocável. Há outros, porém, que partindo do mesmo ponto, os consideram «engenheiros contabilísticos», capazes de transformar qualquer informação financeira e moldá-la à imagem do que o seu empregador ou cliente desejam. Gozam, por isso, de uma fama que se divide muitas vezes entre o «mágico das contas» e o «profissional dedicado e competente.»

É também vulgar uma certa antipatia pela figura do contabilista, partilhada por economistas e auditores, granjeada, em grande parte, pela obrigação de relatar a verdade dos factos, «doa a quem doer.» Mas esta exigência, necessária e fundamental, é uma obrigação profissional: um dever moral.

Sabemos bem que a necessidade de elaborar demonstrações financeiras pressupõe a adoção de procedimentos e critérios alternativos, originando valores que bem poderiam ser outros, mais apropriados eventualmente, caso o critério utilizado variasse. As ilações, retiradas da informação financeira apresentada, podem enganar os menos informados e beneficiar quem detém informação mais “completa”. Poderemos pensar que a verdade em contabilidade pode ser difícil de alcançar mas não é tanto assim. Há, todavia, que ter cuidado com os «abusos contabilísticos» na interpretação das normas (Ferreira, 2002, pp. 207-209).

Contudo, são conhecidos casos nos quais, por mais que custe admitir, os contabilistas tiveram alguma (falta de) intervenção, proporcionando que o objetivo enunciado acima não fosse, completa ou parcialmente, atingido. Noutros casos, porém, a atuação do prevaricador não terá envolvido o contabilista.

Realçamos, desde já, que estamos plenamente convencidos que o sentido mais forte é outro e que a esmagadora maioria dos contabilistas prossegue outros caminhos.

Interminável lista de escândalos

Mas a história é, infelizmente, profícua e são vários os exemplos de escândalos contabilísticos e financeiros, formando uma lista lamentavelmente quase infindável e que não é específica de uma dada região ou de um dado momento no tempo. Um pouco por todo o mundo, surgiram notícias que confirmam a ocorrência destes casos, de onde se destacam: Enron (EUA), WorldCom (EUA), Royal Ahold (Holanda), Vivendi (França), Bristol-Myers Squibb (EUA), Tyco International (Suíça), Satyam Computer Services Ltd. (India), Global Crossing Ltd. (EUA), Parmalat (Itália), Afinsa (Espanha), Skandia (Suécia), Polly Peck (Inglaterra), Enterasys Networks, Inc. (EUA), HIH Insurance (Austrália), Livedoor (Japão), HealthSouth (EUA), Zhengzhou Baiwen (China), ComRoad AG (Alemanha), Bank of Crete (Grécia), Adelphia Communications Corporation (EUA), Samsung (Coreia do Sul), Northern Rock (Inglaterra), Banestado (Brasil), Fannie Mae (EUA), Freddie Mac (EUA), Clearstream Banking S.A. (Luxemburgo), AIG (EUA), Lehman Brothers (EUA), Urban Bank (Filipinas), Gowex (Espanha), e Amir-Mansour Aria (Irão), entre muitos outros. Destacam-se ainda casos envolvendo pessoas individuais: Bernard Madoff, Robert Allen Stanford, Dennis Kozlowski, Byrraju Ramalinga Raju, Lee Bentley Farkas, Martha Stewart, Lance Armstrong, Annette Schavan, Jérôme Kerviel, Jordan Belfort, Asil Nadir…

Portugal também não é exceção e realçam-se casos como Associação Portuguesa das Indústrias de Mobiliário e Afins (APIMA), Clínica Dentária de Santo Ildefonso, Banco Comercial Português, Banco Português de Negócios, Banco Privado Português, “Freeport”, “Operação Furação”, “Operação Monte Branco”, processo “Face Oculta”, Grupo Conforlimpa e o mais recente caso do Grupo Espírito Santo, de onde sobressaem muitas acusações e, cada vez mais, condenações.1

A comunicação social e a literatura mais científica vão dando conta de casos destes e demonstram, na maior parte dos casos, as falhas dos profissionais ao não servirem o interesse público. É um facto indesmentível e que abrange outros profissionais, como sejam os auditores. Por razões diversas, falham em fornecer informação relevante e verdadeira sobre o “que se passa” dentro das entidades, violando normas e regulamentações diversas, com intenção deliberada de enganar, publicando e validando uma imagem que nada tem de «verdadeiro e apropriado.»

Todos sabemos que os últimos anos não foram particularmente favoráveis aos investidores. Muitos perderam dinheiro e, pior ainda, perderam a confiança nos mercados financeiros. Continuam a existir dúvidas acerca da integridade de algumas organizações públicas. Continuam a aparecer notícias sobre escândalos financeiros, manipulações ou até falsificações contabilísticas. Estes escândalos financeiros provocaram uma “chamada às armas” das comissões reguladoras de diversos governos. Organismos reguladores na área da contabilidade no Canadá, Estados Unidos e de outros países começaram a trabalhar nos relatórios de contabilidade e o que se tem que exigir às organizações para que eles sejam mais transparentes (um termo muito em voga atualmente). Fruto desses trabalhos é o tão famoso Sarbanes-Oxley Act, de 2002.

Foram criadas novas normas, novas práticas negociais e entidades reguladoras que não eram sequer concebíveis no começo deste século. A ênfase na ética transformou o mundo da contabilidade e tornou-o mais dinâmico para os seus profissionais e recolocou o acento tónico na importância da integridade da informação financeira. Os impactos também se fizeram sentir, obviamente, ao nível da formação académica dos atuais e futuros profissionais da contabilidade.

O roteiro dos crimes económicos

Apesar de todas as alterações introduzidas a nível regulador e de supervisão, é inevitável colocar-se a questão: está a sociedade destinada a sofrer continuamente casos destes? Mais simplesmente: será que a história se continuará a repetir? Ironicamente, a resposta parece mais fácil do que presumivelmente deveria ser: sim! A confirmá-lo veja-se, como exemplo, o Global Economic Crime Survey 20142 que comprova, ao longo das suas 60 páginas, a existência de crimes económicos, em níveis que, em subidas e descidas, passaram de 43 por cento (2001), para 30 por cento (2009). Entretanto, voltaram a subir até 2013 (37 por cento).Este relatório apresenta ainda o tipo de crime económico mais frequente, relatado pelas mais de cinco mil pessoas que contribuíram com dados de 95 países em todo o mundo: 69 por cento das pessoas aponta a «apropriação indevida de ativos» como o tipo de crime económico que ocorre com mais frequência, seguido dos crimes de «fraude com contratos», «suborno e corrupção», «cibercrime» e «fraudes contabilísticas», com 29, 27, 24 e 22 por cento, respetivamente. O caso do «cibercrime» é particularmente preocupante, pois tem vindo a subir substancialmente de ano para ano. O relatório adianta ainda que é no continente africano que ocorre a maior parte dos casos de fraude, a nível mundial e, com base em todos os dados e respostas recolhidos, apresenta o perfil típico de um prevaricador/perpetrador de fraudes a nível interno, numa empresa: homem (77 por cento dos casos), entre os 31 e 40 anos (39 por cento dos casos), há três a cinco anos na empresa (29 por cento) e com licenciatura concluída ou em conclusão (35 por cento). Em contraponto, as pessoas que apresentam menores percentagens são aquelas cujas características são (não cumulativamente): mulheres (17 por cento), maiores de 50 anos (8 por cento), há menos de dois anos na empresa (13 por cento) e com mestrado ou doutoramento (19 por cento).

O 2014 ACFE3 Report to the Nations on Occupational Fraud and Abuse4, baseado em 1 483 casos de fraude reportados por mais de 1 700 Certified Fraud Examiners ( CFEs), f ornece estatísticas e lições valiosas sobre como a fraude é cometida, como é detetada e como é que as organizações podem reduzir a sua vulnerabilidade a esse risco. Entre muitos dados estatísticos relevantes, evidencia-se que a maioria dos perpetradores tem formação académica superior e que mais de 20 por cento dos casos de fraude têm lugar no departamento da contabilidade, assumindo-se como o departamento, na empresa, onde mais casos ocorrem. Portugal também contribuiu para este relatório, com 4 dos 1 483 casos analisados.

O porquê dos escândalos contabilísticos

No que respeita aos chamados escândalos contabilísticos, podemos perguntar: como é que isto acontece? Por que razão os profissionais da contabilidade não executam o seu trabalho em obediência às normas, procedendo correta e responsavelmente, protegendo o interesse público? Será incompetência, falta de carácter, falta de integridade, ingenuidade ou ignorância sobre como atuar? Terão sido confundidos ou enganados pela informação que lhes foi fornecida, originalmente errada? Terão falhado as normas ao não conseguirem abranger a complexidade do mundo dos negócios? Precisarão estes profissionais de mais formação científica e ética?

Estas (e outras) questões e a resposta às mesmas ultrapassam os merosaspetos técnicos, a simples necessidade de nos focarmos em normas, princípios ou regras instituídas pela contabilidade. Forçam-nos a pensar sobre o objetivo da Contabilidade e sobre o que motiva e influencia o comportamento dos profissionais.

A fraude sempre esteve presente ao longo de toda a história do mundo empresarial (Jones, 2011). Podemos admitir até que, desde que existem registos contabilísticos, terá havido a tentação para utilizar a informação e as normas de forma criativa e flexível, ao ponto de um dado indivíduo, ou conjunto de indivíduos, se envolverem num contexto de fraude. Quando um contabilista altera e manipula deliberadamente a informação financeira de que dispõe, para produzir demonstrações financeiras a pedido, é inevitável a presença de fraude. Caso haja um procedimento não intencional, poderemos estar a falar de um simples erro, muitas vezes facilmente corrigível. A fraude, contudo, carrega um fardo (não) ético mais pesado do que o simples erro, uma vez que pela fraude, o contabilista pretende benefício próprio ou de outros e pretende enganar, com firme propósito, todos (ou quase todos) os utilizadores da informação financeira.

Nunca o mundo da contabilidade se viu num cerco tão apertado como aquele que se viveu no início deste século, do qual se sentem ainda muitos reflexos e dos exemplos infelizes que vão eclodindo um pouco por toda a parte. Os escândalos financeiros ocorridos nos Estados Unidos, bem como em outros países, trouxeram para a linha da frente a discussão à volta da forma como a contabilidade encara (ou não) este tipo de situações.

Com estes casos, tornou-se ainda mais claro que a informação financeira disponibilizada pelas organizações deverá ser cada vez mais rigorosa, num sistema de mercado que se baseia em informação «verdadeira e apropriada» para tomar decisões acertadas.

Os profissionais da contabilidade têm responsabilidades éticas para com eles próprios, para com a sua família, a sua profissão e os seus clientes, bem como para a entidade para a qual trabalhem. Mas a sua responsabilidade básica é simples: fazer, por dever, o que se espera que façam. O exercício puro e simples da profissão de contabilista implica um dever de verdade. No entanto, por vezes, fazer o que se espera de um profissional da contabilidade pode tornar-se complicado, devido a conflitos emergentes na esfera profissional e entre esta e a esfera pessoal.

Os escândalos financeiros e as situações que os provocam e que deles emanam, totalmente indesejáveis, estão a originar novos comportamentos a todos os níveis, bem como reflexões mais exaustivas, com o objetivo de por fim à prática do «vale tudo» e do «não adianta porque no fim fica tudo na mesma.» De certa forma, estes escândalos têm o seu lado positivo, pois realçam a importância da ética.

Não é possível, depois disto, continuar a considerar que a ética é tema de conversa e análise para filósofos e/ou apenas no meio académico.

Portanto, ao contabilista não lhe basta conhecer, interpretar e saber aplicar, ainda que com muita profundidade, as normas contabilísticas em vigor. Há que juntar a isso aquilo que podemos designar como sensibilidade ética, ou seja, a capacidade para reconhecer questões morais e éticas relacionadas com o seu dia-a-dia, decidir e julgar com verdade e integridade, resultando em decisões éticas, porque racionais. É assim que se constrói um contabilista virtuoso, pelo equilíbrio de ambas as partes: o conhecimento científico e a sensibilidade para atuar de forma ética (Stuart et al., 2014)

Facilmente se percebe que a consideração destes dois vetores obriga a uma mais cuidada ponderação da decisão, ao implicar um sempre difícil balanço, um bom equilíbrio na decisão e também vontade de a levar por diante, o que obriga ao bom cultivo de virtudes éticas.

Mas é de um ser humano que falamos; um ser humano livre e responsável todavia. «Um ser humano que, por ser livre, pode fazer o mal mas também pode, e deve, fazer o bem; pode ser mentiroso, mas também pode, e deve, ser sincero; pode ser egoísta, mas precisamente por ser livre, pode, e deve, usar essa liberdade responsável para fazer coisas que redundem em benefício de outras pessoas; um ser humano que sabe que pode, mas não deve, fazer cálculos exatos a partir de dados falsos» (Moreira, 1999, p. 63).

Torna-se imperioso que haja força de vontade para pugnar pela verdade e pelo profissionalismo, mesmo quando outros não o fazem e precisamente porque outros não o fazem. Sem vontade firme e esclarecida, não conseguiremos nunca vingar nesta senda pela construção de uma profissão reconhecida por todos.

E cada um de nós desempenha um papel único e imprescindível.

Bibliografia disponível em («A Ordem - Publicações – Revista TOC – Bibliografia»)

Notas

1 Como exemplo, em Portugal o p residente da Conforlimpa, Armando Cardoso, foi condenado (maio 2014) a 11 anos e dois meses de prisão por associação criminosa e fraude fiscal; o odontologista e a mulher, donos da Clínica Dentária de Santo Ildefonso, foram condenados (julho 2013) pelos crimes de burla e falsificação de documentos, a penas iguais de quatro anos e seis meses de prisão suspensas e ao pagamento solidário de uma indemnização de 53 083 euros aos SMAS (atual empresa municipal Águas do Porto); o ex-diretor da APIMA, Rui Ramos, foi condenado a sete anos de cadeia, em 2011, por burla qualificada, falsificação, ofensa e difamação (foi preso em fevereiro de 2014 para cumprir a pena); no processo “Face Oculta”, todos os 34 arguidos foram condenados (setembro 2014), por centenas de crimes de burla, branqueamento de capitais, corrupção e tráfico de influências.

2 Disponível em: http://www.pwc.com/gx/en/economic-crime-survey/downloads.jhtml; último acesso em 25 de setembro de 2014

3 Fundada em 1988, a ACFE (Association of Certified Fraud Examiners) conta com mais de 70 mil membros em mais de 150 países e é a maior organização mundial na luta contra a fraude e pioneira na formação e educação de diversos públicos nestas matérias.

4 Disponível e m: http://www.acfe.com/rttn/docs/2014-report-to-nations.pdf; último acesso em 25 de setembro de 2014.

Por Alberto Costa Prof. adjunto (equip.) do ISCA-UA


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