Julgando o HC 399.109, o Superior Tribunal de Justiça terminou por acolher tese na qual o Ministério Público de alguns estados insiste há muito tempo, e que até então era corretamente repelida pela jurisprudência: a de que o não pagamento de tributos tidos por “indiretos”, como o ICMS, quando devidamente declarados ao Fisco, configuraria o crime tipificado no artigo 2º, II, da Lei 8.137/90. Nos termos de citado artigo, sujeita-se à pena de detenção de 6 meses a 2 anos e multa aquele que “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.
Não é o objetivo deste artigo, porém, dedicar-se às particularidades da tributação indireta (para isso, leia aqui), tampouco explorar as inúmeras implicações de uma prisão dessa natureza em relação aos direitos humanos e fundamentais, consagrados na Constituição e nos tratados internacionais de que o Brasil é signatário. Elas existem, por certo, e são importantes, mas se almeja aqui tratar de algo mais singelo, mas não por isso menos impactante: a incoerência que tal “prisão por dívida” está a gerar na jurisprudência e na ordem jurídica brasileira por ela aplicada.
A coerência jurisprudencial deve ser buscada, pois representa um dos instrumentos de controle e de contenção do arbítrio dos julgadores, fazendo com que se vinculem à ordem jurídica que dizem aplicar, e não às suas preferências pessoais. Por isso é exigida dos tribunais, como didaticamente esclarece o artigo 926 do CPC. E, no caso, o Supremo Tribunal Federal considera inadmissível a apreensão de mercadorias como forma coercitiva para a cobrança de tributos (Súmula 323/STF). Se não é possível apreender as mercadorias, para assim compelir o contribuinte ao pagamento do ICMS, é contraditório que se possa prender a própria pessoa do contribuinte com essa mesma finalidade. Recorde-se que a ameaça de prisão pelo mero inadimplemento, somada à possibilidade de se extinguir a punibilidade pelo pagamento da dívida, a qualquer tempo, funciona como um forte instrumento oblíquo de cobrança, no todo análogo, conquanto muito mais poderoso, a todos aqueles que a jurisprudência do STF sempre repeliu.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, considera que a dívida declarada e não paga, no contexto de uma execução fiscal, não autoriza, por si, que se atribua responsabilidade aos sócios e administradores de uma pessoa jurídica, pelos débitos tributários desta (Súmula 430/STJ). Por outros termos, se, no âmbito de uma pessoa jurídica, uma dívida tributária for declarada e não paga, considera-se que não há infração pessoalmente praticada pelo sócio-gerente, de sorte a se lhe imputar a responsabilidade pelo respectivo pagamento. É contraditório, diante do mesmo cenário, dizer-se que não há infração de lei, mas há crime, praticado por essa mesma pessoa natural que está à frente da pessoa jurídica.
Poder-se-ia dizer, em oposição a esse contraste, que o “crime de não pagar ICMS” seria uma consequência coerente da jurisprudência que determina a exclusão do valor desse imposto do âmbito da base de cálculo do PIS e da Cofins. Mas uma coisa não decorre necessariamente da outra, pois a definição do conceito de receita, ou de faturamento, pode excluir valores como os representados pelo ICMS sem que isso faça do mero inadimplemento desse imposto, por parte de seu contribuinte, um crime. Notadamente quando se trata de débito declarado pelo próprio sujeito passivo, a afastar, por completo, a ideia de dolo, ou o propósito de apropriar-se do que seria alheio. A dívida é própria, do contribuinte, ainda que este eventualmente tenha condições de repercuti-la (o que é discutível e nem sempre ocorre, mas essa é uma outra questão) a terceiros.
Outra objeção possível consistiria em dizer que errados são esses outros posicionamentos, ligados às sanções políticas e à responsabilidade tributária de terceiros, que deveriam, também eles, ser revistos. Isso tornaria a jurisprudência coerente, compatibilizando-a, nesse particular, com o artigo 926 do CPC. A questão é que referido artigo exige — ou didaticamente explicita a exigência — que a jurisprudência seja também íntegra, adjetivo que não se amolda a um corpo de julgados que permita a cobrança de tributos sem o respeito ao devido processo legal, como se faz com a aplicação de sanções políticas; tampouco à responsabilização indiscriminada de membros de pessoas jurídicas pelos débitos destas, algo que o STF já afirmou contrário ao princípio da livre-iniciativa (RE 562.276), quando se discutiu a constitucionalidade do artigo 13 da Lei 8.620/93. Vale dizer: uma desconsideração geral e incondicionada da personalidade jurídica, que implique a inexistência desta figura no Direito brasileiro (pelo menos para fins tributários), seria, de acordo com o STF, inconstitucional. E seria essa a consequência de se revogar a Súmula 430 do STJ. Assim, a retificação deve ocorrer no entendimento do HC 399.109, e não em tudo o que com ele se está mostrando contraditório.
Mas as incoerências criadas não se verificam apenas no âmbito da jurisprudência, a partir do contraste de decisões e súmulas diferentes. Bem mais grave é a incongruência que se implanta no âmbito da própria ordem jurídica que os tribunais estão a aplicar, compreendida como a punir condutas de forma desigual, além de desproporcional à gravidade dos danos que causam a bens juridicamente protegidos.
Sabe-se, com efeito, que não é facultado ao legislador penal definir como ilícitas quaisquer condutas, de forma aleatória. Não basta, na definição de crimes, atender o requisito formal de fazê-lo por meio de lei: é preciso que as condutas definidas como ilícitas tragam prejuízos, danos ou ameaças a bens juridicamente protegidos (vida, liberdade, patrimônio, honra, meio ambiente etc.). E as penas ou sanções impostas a tais ilícitos devem ser proporcionais à gravidade, ou à intensidade, desses prejuízos, danos ou ameaças. Daí por que o furto, o roubo e o latrocínio têm penas diversas, menores para o primeiro e maiores para o último.
No caso do “crime de não pagar tributo”, tem-se que a conduta daquele que registra as operações que realiza, apura o tributo delas decorrente e tudo informa ao Fisco passa a ser sujeita a punição incrivelmente mais gravosa do que a de outro contribuinte, que sequer chega a levar tais operações ao conhecimento do Fisco, pois este último só terá praticado um crime contra a ordem tributária se houver fraude em sua conduta, a teor do artigo 1º da Lei 8.137/90. Do contrário, nem de crime se poderá cogitar.
No âmbito das sanções tributárias administrativas (multas administrativas), há clara distinção entre essas três situações, a saber, (1) declarar e não pagar uma dívida tributária; (2) incorrer em omissões quanto ao dever de declarar uma dívida tributária; (3) incorrer em conduta fraudulenta quanto ao dever de declarar uma dívida tributária. Contribuintes que simplesmente atrasam tributos já por eles próprios apurados e declarados submetem-se a uma multa de mora, que no plano federal chega, no máximo, a 20% do valor da dívida. Caso sejam detectados erros em uma apuração já entregue ao Fisco, a necessidade de realização de um lançamento de ofício faz com que tal multa seja mais elevada (no plano federal, 75% do valor da dívida). E, finalmente, caso, além de erros ou falhas nas declarações apresentadas, se constate a presença de dolo, fraude ou simulação, tal multa torna-se ainda mais elevada (no âmbito federal, 150%), sendo do Fisco o ônus de provar a presença de fatos que justifiquem esse agravamento, os quais não podem ser presumidos. E só nesse último caso, a rigor, se pode cogitar validamente da presença de crime contra a ordem tributária.
Nesse contexto, e desprezando a diferença entre as situações (1) e (2), o entendimento acolhido pelo STJ de considerar crime a situação acima descrita como (1) estimula contribuintes em dificuldades a não apresentarem suas declarações ao Fisco, situação que forçará a administração tributária a realizar o lançamento de ofício, havendo o risco de não se detectarem as omissões e tais lançamentos jamais ocorrerem. Quando, ao revés, o contribuinte declara uma dívida tributária, no âmbito do lançamento por homologação, mas não realiza o pagamento, o Fisco nem mais precisa realizar o lançamento, não corre o risco de não descobrir a ocorrência dos fatos geradores, ou de se consumar a decadência antes disso. Pode diretamente executar esse contribuinte, que ainda terá o ônus de demonstrar que suas próprias apurações estavam erradas, caso queira questionar a exigência. Criminalizar essa última conduta, portanto, implica punir não o inadimplemento em si, mas a entrega de uma declaração considerada correta pelo fisco. Sim, pois a mesma dívida, caso não seja declarada, em sendo igualmente inadimplida não ensejará a ocorrência de um crime: far-se-á o lançamento de ofício, simplesmente. Percebe-se, desse modo, que a prisão por dívida tributária representa uma punição a uma conduta que realiza (ainda que não inteiramente), em vez prejudicar, valores protegidos pela ordem jurídica. Se se insistir na sutileza de que a punição decorre do inadimplemento do valor declarado, ter-se-á pena desproporcional, porque maior que a aplicável (que é nenhuma) a esse mesmo inadimplemento quando não há declaração do valor devido, desde que tampouco haja fraude (que é, ela sim, elemento essencial aos crimes contra a ordem tributaria).
Espera-se, por tudo isso, que o Supremo Tribunal Federal corrija o equívoco em que incorreu o Superior Tribunal de Justiça, dando ao artigo 2º, II, da Lei 8.137/90 interpretação que o compatibilize não apenas com o inciso LXVII do artigo 5º da CF/88, mas com toda a jurisprudência tributária construída em torno de assuntos correlatos. Por certo que, em pleno século XXI e no âmbito de um Estado que se diz Democrático de Direito, depois de tantas revoluções causadas por excessos na cobrança de tributos, o Fisco conta com meios mais civilizados que a ameaça de prisão para fazê-lo. Pode dar mais trabalho, mas viver em uma democracia o exige, e certamente vale a pena.
Hugo de Brito Machado Segundo
Doutor e Mestre em Direito. Advogado. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Professor do Centro Universitário Christus (Graduação e Mestrado).
Fonte: Genjuridico.com.br/
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