Um dos temas mais recorrentes no âmbito dos julgamentos proferidos pelo Carf é a cobrança de IRPJ e CSLL em razão da aplicação das presunções de omissão de receitas estabelecidas pela legislação e consolidadas entre os artigos 293 e 300 do RIR/2018. A omissão de receita nada mais é do que deixar de registrar contabilmente ganhos tributáveis no resultado do período, gerando uma redução indevida no lucro líquido do exercício ou no montante de receitas declarado e, por consequência, diminuindo o montante a ser recolhido a título de tributos no exercício[1].
O artigo 293, III do RIR/2018 traz como hipótese de omissão de receitas a manutenção no passivo de obrigações já pagas ou cuja exigibilidade não seja comprovada, usualmente denominada de passivo fictício.
Cabe um esclarecimento: os casos de passivo fictício, apesar de estarem enunciados em um único inciso, compreendem duas hipóteses distintas e inconfundíveis, com fundamentos legais distintos. Enquanto a manutenção, no passivo, de obrigações já pagas foi introduzida pelo Decreto-lei 1.598/1977, em seu artigo 12, parágrafo 2º, a hipótese de passivo com exigibilidade não comprovada foi positivada apenas com a Lei 9.430/1996.
No primeiro caso (obrigações já pagas), a empresa registra contabilmente passivos reais e exigíveis, mas os quita com recursos de caixa dois e, por isso, deixa de baixá-los, apesar de não serem mais exigíveis. A razão dessa presunção se baseia no fato de que as empresas que possuem caixa dois podem se utilizar de receitas não escrituradas para pagamento de duplicatas, fornecedores etc. Assim, elas deixam de dar baixa nos passivos, mesmo após o pagamento, para evitar o “estouro de caixa” e o respectivo registro de saldo credor na conta caixa, mantendo esse passivo até que a empresa tenha recursos escriturados suficientes para a sua baixa, e ocultando o ingresso de receitas não contabilizadas. No segundo (exigibilidade não comprovada), a empresa constituiu uma conta no passivo para dar lastro a um ativo não contabilizado, criando obrigação inexistente.
A presunção da omissão de receitas com base no artigo 293, III do RIR traz a reboque a discussão do momento em que se considera ocorrido o fato gerador dos tributos sobre a renda, com impacto também no dies a quo do prazo decadencial do direito do Fisco de lançar os tributos devidos sobre a receita omitida.
O artigo 173, I do CTN estabelece que o prazo decadencial de cinco anos será contado do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado, ou seja, no exercício seguinte à ocorrência do fato gerador do tributo. Entretanto, nos casos de passivo fictício, é comum que o passivo inexigível ou não comprovado permaneça registrado no balanço patrimonial por diversos exercícios, havendo posições divergentes no âmbito do Carf acerca de quando o prazo de cinco anos deverá ser contado.
O Acórdão 1401-001.777[2], de forma unânime, rejeitou a preliminar de decadência sob o argumento de que o dever de comprovar as obrigações registradas no passivo se dá no tempo presente (da fiscalização), e não na data em que as obrigações foram registradas na contabilidade, mesmo que o registro tenha se dado em exercício já decaído. Argumenta que pensar o contrário seria supor que a presunção legal não seria aplicável ao passivo de longo prazo, estabelecendo uma distinção onde a lei não excepcionou expressamente.
Esse mesmo colegiado, em composição pouco distinta, também prolatou o Acórdão 1401-001.586[3], não há nada na norma que permita inferir que a presunção remeta a omissão de receita para períodos de apuração pretéritos ao da constatação do passivo fictício, pois a lei não teria fixado o momento em que o passivo em questão torna-se “fictício” ou “insubsistente”, referindo-se apenas à “manutenção” no passivo de obrigações naquelas condições. Ademais, o registro do passivo fictício não necessariamente implicará que nesse momento ocorrerá a omissão de receitas, pois a manutenção dele permite que a utilização de receitas transitando pelo caixa dois seja feita em qualquer período a partir daí[4]. Esses mesmos argumentos foram utilizados no Acórdão 1201-001.801[5], onde se pontuou, complementarmente, que caberia ao contribuinte comprovar que estaria sendo tributado múltiplas vezes por um mesmo passivo fictício mantido por mais de um exercício.
Nessa mesma linha, o Acórdão 1302-002.771[6], também de forma unânime, afirmando que se a fiscalização se ateve à análise das demonstrações contábeis apenas em determinado ano-calendário, identificando o passivo fictício nesse ano, então a partir daquele ano que se deve contar o prazo decadencial, independentemente de o registro contábil ter se dado em exercício pretérito.
Por outro lado, o Acórdão 1401-001.201[7] aduz a importância de se identificar qual a hipótese de passivo fictício, pois estão sujeitas a regras distintas de contagem de prazo decadencial: a) para o caso de passivo já pago, o fato gerador é a data do pagamento da dívida, momento em que se presume a omissão de receitas, cabendo à fiscalização comprovar o dispêndio feito pela empresa e ao contribuinte provar que a obrigação ainda é exigível; b) para o caso de passivo inexistente, o fato gerador da obrigação tributária seria a data do registro na contabilidade, pois a sua contabilização estaria vinculada à receita omitida, devendo o contribuinte comprovar a data em que esses valores foram lançados.
Nessa linha, o Acórdão 1402-002.197[8] aduz que a infração se dá no momento do registro do passivo inexistente, pois só faz sentido a sua criação para fazer frente a um ganho à margem da escrituração, equilibrando o saldo da conta caixa, ao debitar no caixa o valor necessário para o suprimento em contrapartida a um lançamento em conta de passivo, este sem lastro. Portanto, o fato gerador do tributo só poderia ser aquele momento do registro do passivo, pois naquele período ele estaria fazendo frente à receita omitida.
O Acórdão 1302-001.750[9] sustenta que a concretização da presunção de omissão de receita se dá no momento em que, juridicamente, ocorra o fim da exigibilidade. Assim, não basta ao Fisco verificar a existência de um passivo inexigível ou inexistente, demandando-se também que haja a comprovação do momento em que a exigibilidade deixou de existir ou que o passivo tenha sido registrado, para identificar a ocorrência do fato gerador relativo às receitas omitidas.
No Acórdão 1301-002.960[10], o relator pontuou que o fato gerador do tributo, no caso de passivo inexistente, seria a data do registro na contabilidade, sob pena de se permitir que a autoridade fiscal escolha livremente a data de ocorrência do mesmo, em clara ofensa à segurança jurídica e ao CTN.
Como se vê, há uma divergência bastante intensa entre os colegiados das Câmaras Baixas da 1ª Seção do Carf, com posicionamentos unânimes das turmas em sentidos diametralmente opostos, e com argumentos bastante relevantes em ambos os lados.
A matéria chegou à 1ª CSRF e foi julgada por meio do Acórdão 9101-002.340[11], no qual prevaleceu, de maneira unânime, a posição de que o fato indiciário que dá ensejo à aplicação da presunção de omissão de receitas é o registro do passivo inexistente, razão pela qual o fato gerador do tributo será considerado como ocorrido no momento do registro contábil do passivo.
Ao enfrentar a questão novamente no Acórdão 9101-003.258, a 1ª CSRF manteve a posição adotada preteritamente de que a manutenção de passivo fictício na contabilidade não tem o condão de deslocar o critério temporal do fato gerador para exercícios futuros. Nesse julgamento, entretanto, o resultado foi por maioria de votos, refletindo a mudança de entendimento de alguns dos membros, bem como a nova composição, em razão da alteração de quase todo aquele colegiado.
Na 1ª CSRF, diferentemente das Câmaras Baixas da 1ª Seção, a questão tem se mantido pacífica e consolidada, o que tem como efeito prático a divergência de entendimentos no julgamento de recursos voluntários, com sua posterior uniformização por meio do recurso especial. Parece-nos, portanto, que se trata de matéria madura, com suporte em decisões reiteradas e uniformes da CSRF e, portanto, apta a ser convertida em súmula, para fins de pacificação do entendimento nos julgamentos do Carf, nos termos do artigo 72 do Regimento Interno do Carf, e redução da litigiosidade na seara administrativa.
*Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas uma análise de precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos autores desta coluna.
[1] ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Imposto de Renda das Empresas, 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p.201.
[2] Relator cons. Antonio Bezerra Neto, julgado em 26/1/2017.
[3] Relator cons. Ricardo Marozzi Gregorio, julgado em 5/4/2016.
[4] Esse argumento foi desenvolvido com mais vagar no Acórdão 1102-001.075, relator cons. João Otávio Oppermann, julgado em 29/4/2014.
[5] Relatora cons. Eva Maria Los, julgado em 22/6/2017.
[6] Relator cons. Flávio Machado Vilhena Dias, julgado em 12/4/2018.
[7] Redator ad hoc Cons. André Mendes de Moura, julgado em 3/6/2014.
[8] Relator cons. Leonardo de Andrade Couto, julgado em 7/6/2016.
[9] Relatora cons. Edeli Bessa, julgado em 20/1/2016. No mesmo sentido, Acórdão 1101-000.991, julgado em 10/10/2013.
[10] Relator cons. José Eduardo Dornelas Souza, julgado em 11/4/2018.
[11] Relatora cons. Adriana Gomes Rêgo, julgado em 5/5/2016.
Carlos Augusto Daniel Neto é doutor em Direito Tributário pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, conselheiro titular da 1ª Seção do Carf, ex-conselheiro da 3ª Seção do Carf e professor do IBDT e Cedes.
Fonte: Conjur
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