Na coluna desta semana, trataremos da tributação do fenômeno da pejotização pela contribuição previdenciária.
O termo pejotização é usado de forma indiscriminada tanto para descrever situação fraudulenta na qual um empregador coage um indivíduo a constituir uma pessoa jurídica para lhe prestar serviço (ou ainda lhe demite e o coage a constituir uma pessoa jurídica) quanto para descrever a situação na qual há a contratação de uma pessoa jurídica para a prestação de serviços, sejam estes enquadrados como atividades-meio ou atividade-fim da contratante, sendo esta última situação denominada também como “terceirização”.
A contribuição previdenciária sobre a folha de salários está prevista no artigo 22, I, da Lei 8.212/91[1], incidindo sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços, destinadas a retribuir o trabalho.
O conceito de empregado é obtido no artigo 3º da CLT[2], que o define como toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.
A partir de tal definição, a doutrina[3] tem elencado os requisitos da relação de emprego: (i) pessoalidade; (ii) não eventualidade; (iii) subordinação; e (iv) onerosidade.
No que tange especificamente aos serviços de natureza científica, artística ou cultural, o artigo 129 da Lei 11.196/05[4] possibilitou que eles fossem prestados por pessoas jurídicas, em caráter personalíssimo ou não, para fiscais e previdenciários. Assim, criou-se legalmente uma possibilidade de prestação de serviços personalíssimos por pessoa jurídica desde que tais serviços fossem de natureza científica, artística ou cultural.
Em 2017, como parte da Reforma Trabalhista, a Lei 13.467/17 trouxe diversas alterações à CLT e outras leis trabalhistas. Dentre tais alterações, houve uma ampliação do conceito de terceirização.
Assim, a redação atual do artigo 4º-A da Lei 6.019/74[5] determina que se considera prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução.
A principal alteração relativa à terceirização de serviços foi a previsão expressa de que a prestação da atividade-fim poderá ser transferida a outra pessoa jurídica, uma vez que até tal alteração somente era permitida a terceirização de atividades-meio.
Nessa linha, o artigo 4º-A, §2º, da Lei 6.019/74 estabeleceu que não se configura vínculo empregatício entre os trabalhadores, ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo, e a empresa contratante.
Além da Reforma Trabalhista, vale citar que, em 30/8/2018, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar conjuntamente a ADPF 324 e o RE 958.252 (repercussão geral), nos quais se discutia a licitude da terceirização de atividades precípuas da empresa tomadora de serviços, fixou a seguinte tese jurídica: "é lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante (tema 725 da repercussão geral)".
Feita as principais considerações acerca do contexto do fenômeno da pejotização no Brasil, passaremos à análise dos precedentes do Carf em que tal tema foi discutido.
Nos Acórdãos 2301-004.732, 2301-004.733, 2301-004.734 e 2301-004.735, julgados em 15/6/2016, decidiu-se, por maioria de votos, pela incidência de contribuição previdenciária sobre os valores pagos por um clube de futebol às pessoas jurídicas constituídas por seus jogadores e técnico.
Nos referidos casos, entendeu-se que a prestação de serviços ao clube de futebol se deu unicamente pelos sócios administradores das pessoas jurídicas contratadas, de forma pessoal em período integral e com subordinação, de forma que restaria caracterizada a relação de emprego. Destaque-se que ainda que os serviços de atletas e técnicos pudessem ser enquadrados como serviços artísticos e culturais, não houve menção ao artigo 129 da Lei 11.196/05.
Nos Acórdãos 2301-005.233 e 2301-005.234, julgados em 3/4/2018, decidiu-se pela incidência de contribuição previdenciária sobre valores pagos por uma indústria de calçados às pessoas jurídicas que lhe prestavam serviços de confecção de calçados. No caso em tela, verificou-se que muitas das pessoas jurídicas contratadas foram constituídas no mesmo endereço da contratante por seus ex-empregados, bem como a contratante era o tomador exclusivo do serviço.
No Acórdão 2301-005.271, julgado em 9/5/2018, decidiu-se pela incidência da contribuição previdenciária sobre os valores pagos por emissora de televisão às pessoas jurídicas constituídas por apresentadores de televisão e outros profissionais do ramo. Cumpre ressaltar que os fatos geradores analisados no referido acórdão eram anteriores à edição do artigo 129 da Lei 11.196/05.
Nos Acórdãos 2201-004.538 e 2201-004.539, julgados em 05/06/2018, decidiu-se pela incidência da contribuição previdenciária sobre os valores pagos por uma pessoa jurídica às suas subcontratadas, visto que: (i) os sócios das subcontratadas já haviam sido empregados da contratante em um momento anterior; (ii) os serviços prestados pelos sócios das subcontratadas eram realizados nas dependências da contratante ; (iii) os sócios das subcontratas se utilizavam de facilidades (ex.: telefones, equipamentos de proteção) fornecidas pela contratante.
No Acórdão 2201-004.590, julgado em 3/7/2018, decidiu-se, por unanimidade, não conhecer do Recurso Voluntário, em razão de sua intempestividade. Embora a questão da suposta pejotização dos cargos de diretores e gerentes não tenha sido conhecida, o Recurso Voluntário apresentado pelo diretor foi conhecido e parcialmente provido, de forma que a sua suposta responsabilidade solidária foi afastada, uma vez que não restou comprovada que a suposta pejotização foi fruto de sua decisão exclusiva e pessoal.
Nos Acórdãos 2301005.368 e 2301005.369, julgados em 3/7/2018, decidiu-se, por unanimidade de votos, pela incidência de contribuição previdenciária sobre pagamentos feitos por pessoas jurídicas às pessoas jurídicas contratadas que eram optantes do Simples Nacional. Nos referidos casos, entendeu-se que as empresas contratadas foram constituídas com o objetivo de evitar a incidência da contribuição previdenciária, sendo que elas se constituíam muitas vezes no mesmo endereço da contratante, eram atendidas pela mesma empresa de contabilidade, possuindo o mesmo plano de contas, tinham a contratante como único cliente, dentre outras características.
Eis que surgem os primeiros acórdãos julgados após o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ADPF 324 e do RE 958.252.
No Acórdão 2201-004.763, julgado em 6/11/2018, decidiu-se, por maioria de votos, afastar a incidência de contribuição previdenciária sobre valores pagos por uma empresa de engenharia às pessoas jurídicas que lhe prestavam serviços de engenharia e consultoria.
O entendimento manifestado no voto vencedor do referido caso foi no sentido de que não houve demonstração inequívoca dos elementos caracterizadores da relação de emprego. O uso da estrutura fornecida pela contratante não foi considerado como fato suficiente para caracterização da subordinação.
Além disso, não houve comprovação de que os sócios das contratadas prestavam serviços no mesmo regime de trabalho dos empregados da contratante.
No Acórdão 2401-005.900, julgado em 5/12/2018, decidiu-se, por maioria de votos, afastar a incidência da contribuição previdenciária sobre os valores pagos um hospital às pessoas jurídicas constituídas por médicos e outros profissionais da saúde.
No referido caso, a maioria da turma entendeu que não houve comprovação dos requisitos da relação de emprego, isto é, a subordinação, remuneração, pessoalidade e não eventualidade. Com relação à subordinação, o voto vencedor destaca que o relatório da fiscalização utilizou erroneamente a determinação contratual do local da prestação de serviços como um dos principais elementos para presumir a subordinação, sendo que tal determinação é uma decorrência lógica de qualquer contrato de prestação de serviços.
No Acórdão 2301-005.788, julgado em 15/1/2019, decidiu-se, por maioria de votos, que seria lícita a terceirização, enquanto forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas.
No referido caso, uma empresa especializada em serviços de engenharia consultiva subcontratava outras pessoas jurídicas com objeto social semelhante para a prestação de serviços em obras ou projetos específicos ou para a prestação de serviços genéricos sem que houvesse indicação específica da obra. Dentre os sócios de tais pessoas jurídicas, havia tanto indivíduos que já tiveram relação de emprego com a contratante quanto indivíduos que nunca tiveram nenhuma relação com ela.
Em sua defesa, a Recorrente apresentou notas fiscais demonstrando que ela não era a única tomadora de serviço das pessoas jurídicas contratadas. Citou também que inexiste subordinação nos termos do artigo 3º da CLT, bem como trouxe aos autos sentença da Justiça do Trabalho, no qual não houve reconhecimento de relação de emprego com uma das contratadas.
Por fim, no caso, ainda há uma responsabilidade técnica e pessoal dos sócios das pessoas jurídicas subcontratadas em virtude da Anotação de Responsabilidade Técnica (ART) dos engenheiros, o que denota a independência e falta de subordinação dos sócios das contratadas.
No Acórdão 2401-005.952, julgado em 17/1/2019, decidiu-se, por maioria de votos, pelo afastamento da contribuição previdenciária sobre os valores pagos por pessoa jurídica que atua no setor distribuição atacadista às pessoas jurídicas que lhe prestam serviços de representação comercial. O entendimento manifestado no voto vencedor é no sentido de que não houve comprovação da relação empregatícia, sobretudo com relação à subordinação do trabalhador.
Nos Acórdãos 2402-006.975 e 2402-006.977, julgados em 13/2/2019, decidiu-se pelo cancelamento dos autos de infração decorrentes do lançamento de contribuição previdenciária sobre valores pagos por emissora de televisão às pessoas jurídicas constituídas por artistas em virtude do exaurimento do prazo decadencial para que tal lançamento fosse efetuado.
No Acórdão 2402-007.30, julgado em 12/3/2019, decidiu-se, por voto de qualidade, pela decadência de parte das competências autuadas, com a devolução dos autos para a DRJ para apreciação das questões de mérito referentes aos períodos não atingidos pela decadência.
No Acórdão 2402-007.31, julgado em 12/3/2019, decidiu-se, por maioria de votos, pela incidência de contribuição previdenciária sobre valores pagos por emissora de televisão às pessoas jurídicas constituídas por artistas, apresentadores e outros profissionais da televisão. Os autos de infração se referiam a períodos anteriores à edição do artigo 129 da Lei 11.196/05, de forma que ainda que tal dispositivo tenha sido alegado como de caráter interpretativo e que deveria ser aplicado retroativamente, tal entendimento não prevaleceu.
Cabe salientar que, no referido caso, havia ocorrido uma fiscalização da autuada por parte do Ministério Público do Trabalho, na qual concluiu-se pela existência de fraudes em contratos de trabalho, de forma que o entendimento manifestado no voto vencedor foi no sentido de que houve dissimulação de contratos de emprego por meio de simulação de contratos com pessoas jurídicas.
Diante de todo o exposto, como se nota, o tema da pejotização vem sofrendo diversas alterações nos últimos anos, incialmente com a edição do artigo 129 da Lei 11.196/05 e sobretudo com o advento da Reforma Trabalhista e com o julgamento da ADPF 324 e do RE 958.252 pelo STF.
Nesse sentido, é possível observar uma tendência de que a incidência da contribuição previdenciária somente será admissível quando houver efetiva comprovação de que há uma relação de emprego entre o contratante do serviço e os sócios que constituíram a pessoa jurídica contratada.
1 Lei n. 8.212/91: “Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no art. 23, é de:
I - vinte por cento sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços, destinadas a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços, nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa”.
2 Consolidação das Leis do Trabalho: “Art. 3º - Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.”.
3 Vide: CESARINO JR., Antônio Ferreira. Direito Social Brasileiro. 2º Volume. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1963. pp. 72-74; MARANHÃO, Délio. Sujeitos do Contrato de Trabalho. In: SUSSEKIND, Arnaldo, MARANHÃO, Délio, Vianna, Segadas. Instituições de Direito do Trabalho. Vol. 1. 6ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1974. pp. 222-223; NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996. pp. 326-327; MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 26ª ed. São Paulo: Atlas, 2010. pp. 137-141; BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 9ª ed. São Paulo: LTr, 2013. pp. 207-208.
4 Lei n. 11.196/05: “Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil”.
5 Lei n. 6.019/74: “Art. 4o-A. Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução.
§ 1º A empresa prestadora de serviços contrata, remunera e dirige o trabalho realizado por seus trabalhadores, ou subcontrata outras empresas para realização desses serviços.
§ 2º Não se configura vínculo empregatício entre os trabalhadores, ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo, e a empresa contratante”.
Alexandre Evaristo Pinto é conselheiro titular da 2ª Seção do Carf, doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Comercial pela USP e bacharel em Direito pelo Mackenzie e em Contabilidade pela USP. Professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e coordenador do MBA IFRS da Fipecafi.
Fonte: Conjur
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