O ministro Luiz Philippe Vieira de Mello talvez seja a voz mais estridente no Tribunal Superior do Trabalho contra o projeto de terceirização de mão de obra que tramita no Congresso. "É uma situação muito grave, em proporções universais", diz ele referindo-se às consequências da precarização das condições de trabalho que, a seu ver, virão com a aprovação do projeto. Vieira de Mello entende mexer nas garantias do trabalhador sem alterar antes a estrutura da organização sindical no país é uma deslealdade com os trabalhadores: "Antes de se reformar pelo prisma de uma relação individual do trabalho, seria preciso mudar no plano coletivo, para termos sindicatos representativos, federações representativas, confederações representativas e centrais representativas" diz ele. Para o ministro, o projeto de terceirização pulveriza a representação sindical dos trabalhadores, mas mantém forte e coesa a representação patronal.
Vieira de Mello conversou com o Anuário da Justiça do Trabalho e a revista eletrônica Consultor Jurídico sobre a matéria:
Como o senhor avalia o projeto de lei de terceirização que tramita no Congresso Nacional?
Temos hoje no Brasil 726 mil acidentes de trabalho por ano. Temos quase 2.700 mortes por ano, além de inúmeras mutilações. O projeto de lei prevê maior precarização das relações de trabalho, uma tentativa de se estabelecer uma competição mundial com parâmetros de aviltamento do trabalho humano. "É uma situação muito grave, em proporções universais", diz ele.
O senhor é contra a terceirização?
A CLT precisa de uma única alteração, em relação aos direitos coletivos. Isto sim está ultrapassado. E muito ultrapassado. O projeto de lei de terceirização deveria ter observado o caminho inverso do que está se fazendo. Quando se evitou ou não se chegou a um consenso com relação ao projeto, é porque ele parte de um juízo equivocado. A meu juízo, totalmente equivocado, um grande equívoco que vai ser cometido. Antes de se reformar pelo prisma de uma relação individual do trabalho, seria preciso mudar no plano coletivo, para termos sindicatos representativos, federações representativas, confederações representativas e centrais representativas.
Então, na sua opinião, a proposta enfraquece ainda mais os sindicatos nas negociações?
A relação sindical está sendo pulverizada de apenas um lado, que é o lado profissional. Se eu mudasse o conceito de “categoria” para “ramo de atividade por setor”, a terceirização poderia ser implementada com muito mais lealdade, justiça, equidade, isonomia e igualdade. A maneira como ela foi feita foi desleal. Foi um processo desleal de aprovação da terceirização, porque não mudaram onde tinham medo de mudar, que é mexendo nas representações sindicais. Com essa lei, iremos criar infinitos sindicados, em dízima periódica. Sindicatos, às vezes, travestidos de uma realidade em que representantes das empresas são colocados como dirigentes sindicais para que esses sindicatos representem os empregados que ele vai criar e que vai passar a ter, a partir daqueles que eram da empresa. O tabuleiro do jogo tem que ser igual. Para que eu tivesse uma lei da terceirização justa, é preciso acabar com o conceito que a CLT tem de categoria. Porque o lado econômico vai permanecer coeso. O lado profissional virou uma dízima periódica de sindicatos. Provavelmente vai ter muita gente beneficiada, porque continua o imposto sindical único e imperativo, com natureza de tributo. No plano coletivo, não poderíamos ter um sindicato obrigatório. Não poderíamos ter uma contribuição obrigatória, justamente para permitir que eu possa me livrar daquele que está falsamente me representando, para que eu possa escolher um que realmente me represente. E isso não está na lei de terceirização.
Por que o conceito de ramo de atividade seria melhor do que o de categoria?
Porque o empregador teria de negociar com todos aqueles que estão prestando serviço para ele. Senta com o sindicado de prestação de serviço disso, depois senta com o do sindicato de prestador de serviço daquilo. Enfraqueceu todo o segmento que presta serviços para a empresa. A razão de ser sindicato é agregar, unir, para criar um equilíbrio. O empregado sozinho é vulnerável perante o empregador. Que digam o que quiserem: nunca vai ser igual. Nunca. Em tempo algum, você terá condições de discutir com o seu empregador. Ainda mais porque no Brasil não existe a dispensa motivada, que é um mínimo de proteção. Está prevista na Constituição desde 1988 e ainda não foi regulamentada. Quer dizer, os parlamentares tiveram coração para, a toque de caixa, votar uma lei em fração de segundos, mas tudo o que poderia equilibrar a lei... Imagine se tivéssemos a dispensa motivada, imagine se tivéssemos liberdade sindical, mudança de categoria para ramo. Nesse caso, a terceirização não seria um problema, seria simplesmente adequada em termos legislativos. O que se deu é que ninguém queria mexer na parte sindical, porque os interesses econômicos e o dinheiro que está por trás disso é muito significativo. Essa é a grande verdade que está por trás desse processo.
Muitos dizem que a Justiça do Trabalho contribui para enfraquecer os sindicatos quando, por exemplo, anula cláusulas de acordo coletivo.
Anula porque o trabalhador não tem como se insurgir contra elas. Não tem outro sindicato. Você tem que aceitar aquilo que eles resolveram por você. Ponto. Não tem alternativa. A meu juízo, este projeto de lei para o Brasil é um retrocesso social. É um retrocesso constitucional. Digam o que quiser, essa é a minha opinião como cidadão e como magistrado. Posso ter colegas que divirjam, mas ninguém vai me convencer do contrário. Eu quero ver o país daqui a dez anos, em que situação estaremos.
O senhor acredita que, de fato, as empresas vão terceirizar todos os seus funcionários? Bancos não terão mais bancários?
Todas as construções de anos dos sindicatos vão desaparecer. A situação é muito agressiva. A CLT nasce com a revogação da locação de mão de obra prevista no Código Civil. O projeto de lei da terceirização restabelece a locação de mão de obra. E mais: sucessiva. E se for definida que a responsabilidade é subsidiária, não vai proteger ninguém de nada. A lei só vai proteger a empresa de prestação de serviço. Ou seja, voltamos a uma forma moderna, muito moderna, de traficante de escravos. É isso que nós temos, ao meu juízo: traficantes de escravos. O que a CLT fez foi dizer que: se você presta trabalho, você presta trabalho diretamente para a empresa. Ou como autônomo, quando você é dono do seu próprio trabalho. Mas agora você tem alguém vendendo o seu trabalho. Muitos sindicalistas dizem que isso é uma proteção, uma formalização do trabalho. Isso é tráfico de mão de obra. Isso é merchandagem. Foi isso que o Direito do Trabalho resolveu combater.
Trabalhadores vão perder direitos?
O que conquistaram como categoria, eles vão perder. Vão ficar com o mínimo assegurado pela CLT, o mínimo. O mínimo do mínimo, com o menor salário possível. Se houver uma licitação de mão de obra de serviços de vigilância pelo menor preço, como se exige para o serviço público, talvez o vigilante daqui [TST] ganhe menos do que o do STJ, porque depende do preço. Agora, qual a garantia que se tem de uma empresa dessas? Quem vai garantir, no final das contas, se ela quebrar? Porque o que nós temos visto todos os dias dentro da Justiça do Trabalho é que quando a empresa perde o contrato, não tem mais dinheiro para pagar ninguém, nenhuma rescisão contratual. Nenhuma. E como eles não têm como pagar, dizem: “Então, os trabalhadores ficam com a empresa que vai assumir o serviço”. Essa não é uma solução para os empregados. Quem está na ponta da linha, na ponta do chicote, não vai receber nada. Talvez receba o salário, porque o governo diz que vai fiscalizar o FGTS, o INSS. O governo preocupou-se em receber o seu. A pergunta é: esses trabalhadores vão tirar férias, vão receber horas extras? Não é que vejo nos casos que julgo há 30 anos. Infelizmente, demos um passo grande pra trás. É uma situação contrária ao que se tem preconizado em relação a direitos sociais.
Se aprovada a lei, como ficará o mercado de trabalho?
O grande segmento do país vai ser: dono de empresa de prestação de serviço. Vai ser o melhor negócio do país. Não haverá mais riscos para o empresário, o empreendedor. Porque se eu terceirizo o serviço para você, você subcontrata para o C, para o D, para o E, F. Quem vai assumir o risco no final? Se eu quebrar, quem é que vai pagar? Acabou o risco do negócio, que está insito no princípio da livre iniciativa.
Haverá mais vagas de trabalho no mercado?
Pode até ser, mas vamos aumentar aviltando. O salário do terceirizado é 30% menor. O número de acidentes com os terceirizados é absurdamente maior. Eles não têm as mesmas garantias da categoria principal, que é aquelas que os sindicatos sérios conquistaram. Eles vão perder tudo isso. Vão ficar vinculados a um sindicato do qual eles não podem se desvencilhar. Quer dizer, eles vão ganhar, quando muito, um salário mínimo com descontos. Ou um pouquinho a mais que isso, o que permite criar muitas vagas, sob uma perspectiva estatística. Pode ser um boom de uma massa disforme, sem nenhuma perspectiva. Eu não sei qual é a carreira de um terceirizado. Eles não têm plano de carreira, de cargos e salários. Não sei que promoção eles podem receber. Ou ele fiscaliza os colegas ou é trabalhador. Não tem carreira. Acabou tudo. Desconstruíram tudo. Um sinônimo para terceirização: desigualdade. Tenho dito isso há muito tempo: terceirização significa desigualdade. Uma coisa que é da cultura do brasileiro.
A quem o trabalhador terceirizado deve se reportar?
Se ele se reportar ao contratante, pra mim, é fraude e vai ter reconhecimento do vínculo com o empregador. Esse vai ser o meu entendimento. Se tiver dentro da empresa e se reportar ao contratante, vai ter o vínculo reconhecido.
Fonte: Conjur
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