Estão para ser julgadas no Supremo Tribunal Federal duas ADIs (5.576 SP e 5.659 MG), em que se questiona a incidência do ICMS sobre o download de software [1],[2].
Traremos aqui argumentos que abordam os dois julgados paradigmáticos sobre a matéria — RE 176.626 SP e ADI-MC 1945 MT — e demonstraremos que, se dado razão aos Estados pela possibilidade de um conceito constitucional de mercadoria virtual — em prejuízo do conceito constitucional de serviço como bem imaterial, decidido pelo STF no RE-RG 651.703 PR, em 2016 — chegar-se-ia ao absurdo de poder incidir ICMS no Software as a Service (SaaS).
O atual contexto desse mercado merece um olhar cauteloso e célere pelo STF, inclusive para não acompanhar o entendimento proferido pela AGU e pela PGR nas referidas ADIs, sobre a tributação do software. Cauteloso porque os pressupostos atuais não são os mesmos da época da ADI-MC 1945 MT, que inclusive não foi julgada em definitivo, tendo sua cautelar levado incríveis doze anos para ser julgada; e muito menos os pressupostos da época do RE 176.626 SP, onde o licenciamento de software demandava um suporte físico. Célere porque a demora no seu julgamento pode ter efeitos devastadores para um mercado cuja velocidade de evolução demanda, e muito, neutralidade fiscal e segurança jurídica.
O problema
Os estados, equivocadamente, por intermédio do Convênio ICMS 106/2017, previram a possibilidade de cobrança do ICMS nas “operações com bens e mercadorias digitais, tais como softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, que sejam padronizados, ainda que tenham sido ou possam ser adaptados, comercializadas por meio de transferência eletrônica de dados”[3].
O equívoco não para por aí. Previram também exigência de ICMS quando o site ou plataforma eletrônica efetuar “a venda ou a disponibilização, ainda que por intermédio de pagamento periódico, de bens e mercadorias digitais mediante transferência eletrônica de dados”[4].
Além do fato de o licenciamento de software estar previsto na lista de serviços anexa à LC 116/2003, demonstraremos a seguir que esse licenciamento se subsome à incidência do ISS, e não do ICMS, seja o software padronizado ou por encomenda.
Não há transferência de titularidade do software na operação com software
No conceito constitucional de “operação de circulação de mercadoria”, a “operação de circulação” demanda a necessidade de haver a transferência de titularidade do bem, não só juridicamente, por contratos de compra e venda, por exemplo; mas faticamente, com a efetiva circulação, representativa da tradição.
No mercado de software, este nunca foi objeto de compra e venda, e sim de licença de uso, conforme o artigo 9º da Lei 9.609/1998, que prevê que “o uso de programa de computador no País será objeto de contrato de licença”. E se não há transferência de titularidade, já falta um dos requisitos para que o software possa ser considerado mercadoria. E nem há que se afirmar que, na prática, o software que se “compra” fica com o usuário para sempre. Esse modelo, denominado licença perpétua, da época do disquete e do CD, e ainda do download, onde o usuário paga uma só vez para poder usar “para sempre” o software, não faz desse usuário dono do software.
O cada vez mais dominante modelo de negócio dos softwares, por assinatura, em que a empresa proprietária licencia o software por tempo determinado, escancara o fato de que o software não pode ser considerado uma mercadoria, pois senão teríamos de admitir o absurdo de o usuário — e não adquirente — da mercadoria tê-la por tempo determinado. É possível haver um serviço por tempo determinado, mas nunca uma mercadoria por tempo determinado.
Não é possível mercadoria digital
Aqui, fundamental transcrevermos o trecho da ementa do Acórdão da ADI-MC 1945, que tem sido utilizado por todos que entendem ser possível a existência de um conceito constitucional de mercadoria virtual, inclusive a PGR e a AGU:
“8. ICMS. Incidência sobre softwares adquiridos por meio de transferência eletrônica de dados (...). Possibilidade. Inexistência de bem corpóreo ou mercadoria em sentido estrito. Irrelevância. O Tribunal não pode se furtar a abarcar situações novas, consequências concretas do mundo real, com base em premissas jurídicas que não são mais totalmente corretas. O apego a tais diretrizes jurídicas acaba por enfraquecer o texto constitucional, pois não permite que a abertura dos dispositivos da Constituição possa se adaptar aos novos tempos, antes imprevisíveis.”
Concordamos que os dispositivos, não só da Constituição, mas das leis em geral possuem abertura semântica, a qual permite a sua adaptação aos novos tempos, como expôs o julgado. Exemplo disso é o “conceito de livro e o papel destinado à sua impressão”, para fins da imunidade cultural, prevista no artigo 150, VI, ‘d’, da Constituição, que sofreu evolução conotativa que hoje abarca o e-book, apesar da expressa referência ao papel, dado que tal conceito não faz fronteira com outro conceito constitucional qualquer. Mas isso não é possível no caso do conceito constitucional de mercadoria, que é de bem material, pois sua evolução numa ideia de mercadoria virtual causaria uma inconstitucional involução do conceito constitucional de serviço de qualquer natureza, que é o de bem imaterial. E o critério que delimita a fronteira entre ambos é justamente a tangibilidade do bem objeto da atividade econômica de produção ou circulação, na qual só há duas espécies: bens materiais (mercadorias), e bens imateriais (serviços)[5], sendo a licença de uso do software justamente um bem imaterial.[6]
O Conceito de Serviço de Qualquer Natureza como Bem Imaterial Foi Incorporado pelo Constituinte
O exposto no tópico acima, de serviço como bem imaterial, prevaleceu no STF até o RE 116.121 SP, de 2000, onde, por seis a cinco, venceu a equivocada teoria da obrigação de fazer, passando pela Súmula Vinculante 31, de 2010, a qual foi perdendo força com a Rcl 8.623 AgRg RJ, de 2011, e com os RREE 547.245 e 592.905 SC, de 2009, voltando a prevalecer o conceito de serviço como bem imaterial no STF, com o RE 651.703 PR, de 2016, onde se afirmou:
20. A classificação (obrigação de dar e obrigação de fazer) escapa à ratio que o legislador constitucional pretendeu alcançar, ao elencar os serviços no texto constitucional tributáveis pelos impostos (v.g., serviços de comunicação – tributáveis pelo ICMS, art. 155, II, CRFB/88; serviços financeiros e securitários – tributáveis pelo IOF, art. 153, V, CRFB/88; e, residualmente, os demais serviços de qualquer natureza – tributáveis pelo ISSQN, art. 156. III, CRFB/88), qual seja, a de captar todas as atividades empresariais cujos produtos fossem serviços sujeitos a remuneração no mercado.
21. Sob este ângulo, o conceito de prestação de serviços não tem por premissa a configuração dada pelo Direito Civil, mas relacionado ao oferecimento de uma utilidade para outrem, a partir de um conjunto de atividades materiais ou imateriais, prestadas com habitualidade e intuito de lucro, podendo estar conjugada ou não com a entrega de bens ao tomador.
De fato, enquanto o Direito Civil, que sequer apresenta positivada a definição de serviço como obrigação de fazer, nunca se prestou a regular as atividades econômicas de circulação de bens e serviços, o Direito Comercial, depois Direito Empresarial, surgiu justamente para desempenhar esse papel. Assim, natural que a definição de empresário (núcleo do Direito Empresarial), consubstanciada no artigo 966 do Código Civil, tenha incorporado três conceitos econômicos, quais sejam, “empresário”, “atividade econômica” e “bens e serviços”. E esta última expressão dicotômica revela que como resultado da produção econômica, ou se circulam bens materiais (mercadorias) ou bens imateriais (serviços), neste último enquadrando-se o licenciamento de software, não havendo um tertiu genus, exatamente como é na Economia, e que a Constituição incorporou[7].
Não Cabe a Segregação, Para Fins de Delimitação entre ICMS e ISS, Entre Licenciamento de Software de Prateleira e o Licenciamento de Software por Encomenda
Hoje é possível comprar um carro pela internet de forma totalmente personalizada e por encomenda[8]. Ninguém questiona que um carro seja uma mercadoria (bem material); mas se for adquirido personalizado e por encomenda, estará sujeito à incidência do ISS? Obviamente não.
Isso demonstra que a personalização e encomenda não são critérios exclusivos ao conceito constitucional de serviço, mas sim aplicáveis tanto a bens materiais quanto imateriais, diferentemente da tangibilidade, essa sim, um critério constitucional que traça a fronteira entre os conceitos de mercadoria (bem material) e de serviços de qualquer natureza (bem imaterial).
Quando muito, personalização e encomenda apresentam-se como critérios de lei complementar, mas para tal deve estar expressamente prevista, e, na atual lista de serviços, isso só acontece para os serviços de prótese sob encomenda (4.14) e obras de arte sob encomenda (40.01), não havendo essa previsão para o serviço de licenciamento de software (1.05).
Não Cabe a Analogia Entre o Software e o Livro como Mercadorias, Apesar de Ambos Ensejarem Direito Autoral
Há uma grande diferença entre o software e o livro impresso no papel. No livro, o seu suporte físico, ao longo dos séculos, sempre foi fundamental para a sua consubstanciação, pois é no próprio suporte físico que o livro é lido. No software não. Nós não lemos ou utilizamos o software no disquete ou CD onde está gravado. O disquete ou CD só servem para transporte do software, da loja para a máquina do usuário.[9] Assim, o software não tem vida própria nessa “manifestação física” e sim fora dela, dado que não se manifesta, no sentido de se tornar útil, utilizável, no suporte físico, mas sim depois de instalado no computador. Tanto isso é verdade que o disquete ou CD hoje são desnecessários para esse transporte, sendo ele feito pela internet, quando há o download. Por isso, os dois bens não podem merecer o mesmo tratamento negocial.[10]
O Bem Imaterial no Licenciamento de Software Não É o Software, e Sim o Uso desse Software
Na verdade, é irrelevante se o software apresenta-se em suporte físico, por download ou mesmo se é usado na nuvem, porque o serviço como bem imaterial pelo qual se paga não é o software em si, mas sim o uso que dele se faz, ainda que ele não esteja instalado na máquina do usuário.
Essa afirmação é importante para se demonstrar o quão infeliz foi a decisão no RE 176.626 SP ao conferir relevância ao suporte físico, dado que não se paga por ele, e muito menos pelo software em si, mas sim pelo uso desse software. Tanto isso é verdade que hoje o modelo negocial de assinatura do licenciamento de software — presente no SaaS — deixa claro que se usa o software por tempo determinado (enquanto você pagar pela assinatura), e não se adquire o software.
Não confundamos o bem imaterial, que é uso, com o bem usado, este último podendo ser material ou imaterial. O quadro abaixo traz alguns exemplos da lista de serviços:
Aqui está o serviço | |
Bem imaterial (uso remunerado) | Bem material (subitem da lista) |
Cessão | de andaimes (3.05) |
Exploração | de salões de festa, stands, quadras esportivas, casas de espetáculos, parques de diversões (3.03) |
Bem imaterial (uso remunerado) | Bem imaterial |
Cessão de direito de uso | de marcas e sinais de propaganda (3.02) |
Licenciamento ou cessão de direito de uso | de software (1.05) |
1 Os entendimentos aqui defendidos pelo autor são feitos na qualidade de pesquisador e docente, e não necessariamente coincidem com entendimentos da Administração Tributária paulistana ou de qualquer entidade municipalista a respeito.
2 Os argumentos aqui apresentados estão expostos de forma mais detalhada no nosso MACEDO, Alberto. ISS versus ICMS-Mercadoria: Licenciamento de Software e a Impossibilidade do Avanço do Conceito Constitucional de Mercadoria Como Bem Imaterial. In: MACEDO, Alberto; AGUIRREZÁBAL, Rafael; PINTO, Sérgio Luiz de Moraes; ARAÚJO, Wilson José de (Coord.). Gestão Tributária Municipal e Tributos Municipais. Vol.6. São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2017, p.57-99.
3 Cláusula Primeira do Convênio ICMS 106/2017.
4 Cláusula Terceira do Convênio ICMS 106/2017.
5 RE-RG 651.703 PR, julgado em 29.09.2016.
6 MACEDO, Alberto. ISS versus ICMS-Mercadoria: Licenciamento de Software e a Impossibilidade do Avanço do Conceito Constitucional de Mercadoria Como Bem Imaterial. In: MACEDO, Alberto; AGUIRREZÁBAL, Rafael; PINTO, Sérgio Luiz de Moraes; ARAÚJO, Wilson José de (Coord.). Gestão Tributária Municipal e Tributos Municipais. Vol.6. São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2017, p.57-99.
7 Cf. MACEDO, Alberto. ISS – O conceito econômico de serviços já foi juridicizado há tempos também pelo direito privado. In: XII CNET - Direito Tributário e os Novos Horizontes do Processo. MACEDO, Alberto [et all]. São Paulo: Editora Noeses, 2015, p.1-79.
8 “(...), o Range Rover Velar é um exemplo desse caminho rumo à maior interatividade digital com os compradores da Land Rover. O SUV conta com um configurador que permite montar um veículo totalmente exclusivo, sendo possível combinar equipamentos, motores (são três disponíveis) e padrões de acabamento de forma livre, ao gosto do cliente.” Disponível em <https://carros.uol.com.br/noticias/redacao/2017/08/06/da-para-comprar-carro-pela-internet-marcas-comecam-a-entrar-na-onda.htm>. Acesso em 01.09.2017.
9 MACEDO, Alberto. ISS versus ICMS-Mercadoria: Licenciamento de Software e a Impossibilidade do Avanço do Conceito Constitucional de Mercadoria Como Bem Imaterial. In: MACEDO, Alberto; AGUIRREZÁBAL, Rafael; PINTO, Sérgio Luiz de Moraes; ARAÚJO, Wilson José de (Coord.). Gestão Tributária Municipal e Tributos Municipais. Vol.6. São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2017, p.57-99.
10 Idem, ibidem.
Alberto Macedo é mestre e doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP; MBA em Gestão Pública Tributária pela Fundação Dom Cabral – FDC. Professor de Direito Tributário no Insper, FGV, IBDT e IBET; Auditor Fiscal, Representante de São Paulo na Câmara Técnica Permanente da ABRASF; Assessor Especial da Secretaria Municipal da Fazenda de São Paulo; Ex-Subsecretário da Receita Municipal; Ex-Presidente do Conselho Municipal de Tributos.
Fonte: Conjur
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