quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Base dupla do diferencial de alíquotas do ICMS contraria a Constituição

Segundo a redação primitiva da Constituição de 1988 (artigo 155, parágrafo 2º, incisos IV, VII, alíneas “a” e “b”, e VIII):

a) nas saídas interestaduais de mercadorias ou serviços destinados à revenda, à industrialização ou à prestação de serviços sujeitos ao ICMS, incidia a alíquota interestadual. O Estado de destino capturava a diferença de alíquotas na posterior saída interna dos mesmos produtos ou serviços (ou daqueles para cuja fabricação ou prestação eles contribuíssem), pela lógica da não cumulatividade: débito pela alíquota interna e crédito pela interestadual, que onerara a entrada;

b) nas saídas interestaduais destinadas a consumidor final contribuinte do ICMS, incidia a alíquota interestadual, cabendo ao adquirente (ou ao remente, por substituição) pagar o diferencial de alíquotas na entrada dos produtos ou serviços;

c) nas saídas interestaduais voltadas a consumidor final não contribuinte do ICMS, incidia a alíquota interna do Estado de origem, nada sendo devido ao Estado de destino.

Observe-se que o ICMS interestadual e o diferencial de alíquotas sempre foram calculados sobre a mesma base: o preço constante da nota fiscal de venda (o valor da operação ou o preço do serviço, na terminologia do artigo 13 da Lei Complementar 87/96). Esse valor inclui o montante do ICMS interestadual, tendo em vista a obrigatoriedade do cálculo por dentro do imposto (idem, artigo 13, parágrafo 1º).

A Emenda Constitucional 87/2015:

i) manteve a regra descrita na letra a da enumeração supra;

ii) fundiu as hipóteses referidas nas letras b e c, que passaram a receber o seguinte tratamento: incidência da alíquota interestadual em todas as saídas para consumidor final — contribuinte ou não do ICMS — situado em outro Estado, cabendo a este último o diferencial de alíquotas, a ser recolhido pelo adquirente ou, por substituição, pelo remetente.

A emenda foi uma adaptação legítima do sistema tributário — após o malfadado Protocolo ICMS 21/2011 — ao crescimento das vendas a distância. Para evitar uma queda abrupta na arrecadação dos estados onde se concentram as empresas de vendas on-line, introduziu-se o artigo 99 ao ADCT, fixando um cronograma de rateio do diferencial de alíquotas relativo às saídas cuja tributação foi alterada (vendas interestaduais para consumidor final não contribuinte), nos seguintes termos:

Percentual de apropriação do Difal, por unidade federada
AnoUF origemUF destino
201660%40%
201740%60%
201820%80%
A partir de 20190%100%
Seguiu-se o Convênio ICMS 93/2015, dispondo que a base de cálculo do imposto interestadual e do diferencial de alíquotas é a mesma: o valor da operação ou o preço do serviço, observado o parágrafo 1º do artigo 13 da Lei Complementar 87/96 (cláusula segunda, parágrafo 1º). Trata-se decerto do preço da saída interestadual, o único praticado e documentado na situação em exame. A menção ao artigo 13, parágrafo 1º apenas alerta que tal valor deve contemplar o ICMS por dentro, como aliás prevê a própria Constituição (artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, alínea i).

Não obstante a clara redação do convênio, num primeiro momento a Cotepe (Nota Técnica 2015.003, versão 1.40) manifestou-se pela adoção de uma base dupla para o cálculo do ICMS devido nas operações em tela: seguiu-se o Convênio ICMS 93/2015, dispondo que a base de cálculo do imposto interestadual e do diferencial de alíquotas é a mesma: o valor da operação ou o preço do serviço, observado o parágrafo 1º do artigo 13 da Lei Complementar 87/96 (cláusula segunda, parágrafo 1º). Trata-se decerto do preço da saída interestadual, o único praticado e documentado na situação em exame. A menção ao artigo 13, parágrafo 1º apenas alerta que tal valor deve contemplar o ICMS por dentro, como aliás prevê a própria Constituição (artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, alínea i).

1) o preço efetivo da saída interestadual, no qual naturalmente se embute o ICMS interestadual, para o imposto devido pelo remetente;

2) e uma base artificial para o cálculo do diferencial de alíquotas, a ser assim apurada: exclusão do ICMS interestadual embutido no preço da saída interestadual e inclusão, sobre o valor líquido assim apurado, do ICMS interno do Estado de destino, considerada a sua incidência por dentro.

Um exemplo numérico esclarece essa arcana sistemática. Tomem-se uma saída interestadual com preço de cem e alíquotas interestadual de 7% e interna de 18%. No regime ortodoxo de cálculo, ter-se-iam os seguintes valores:

  • ICMS interestadual: 7
  • diferencial de alíquotas: 11
No regime de base dupla, o ICMS interestadual continua sendo 7. Já o diferencial de alíquotas será calculado da seguinte maneira:

  • exclusão, do preço praticado na operação interestadual, do montante do ICMS interestadual nele embutido: 100 – 7 = 93;
  • gross up, sobre o valor líquido, da alíquota interna do Estado de destino, considerada a sua incidência por dentro: 93 + 21,95% = 113,41[1];
  • incidência da alíquota interna do Estado de destino sobre a base artificial arbitrada na linha anterior: 113,41 x 18% = 20,41;
  • abatimento, contra o débito de ICMS assim calculado, do crédito relativo à saída interestadual antecedente: 20,41 – 7 = 13,41.
Além da indevida inflação da base de cálculo da segunda parcela, há ainda outra invalidade nesse método: o cálculo da segunda parcela, não pela multiplicação direta da base (seja ela qual for) pela diferença entre as alíquotas interna e interestadual, como reza a Constituição, mas, sim, pela multiplicação da referida base pela alíquota interna do estado de destino, seguida do abatimento dos créditos pela prévia saída interestadual. Em suma:

  • no sistema ortodoxo, o diferencial de alíquotas seria de 11;
  • no sistema intermediário (inflação da base de cálculo e aplicação direta do diferencial de 11%), de 12,47;
  • e no sistema radical, acima resenhado, de 13,41.
Desautorizando a exótica interpretação da Cotepe, o Confaz editou o Convênio ICMS 152/2015, deixando claro, no parágrafo 1º da cláusula segunda do Convênio ICMS 93/2015, que a base de cálculo do ICMS interestadual e do diferencial “é única e corresponde ao valor da operação ou ao preço do serviço”. Ato contínuo, a Cotepe abandou a sua posição anterior (Nota Técnica 2015.003, versão 1.70).

Esse é o único tratamento compatível com a Constituição e a lei complementar, que preveem a incidência do ICMS sobre o valor efetivo da saída, e não sobre um montante fictício que não corresponde a operação ou prestação alguma e não está corporificado em nenhum documento fiscal. Ressalte-se ainda que não se trata de situação nova, a ensejar vácuo legislativo que pudesse ser livremente preenchido pelos Estados, na esteira do artigo 24, parágrafo 3º, da Constituição[2]. O que se tem é apenas a extensão, para as vendas a consumidor final não contribuinte, da sistemática de repartição interestadual do ICMS que já prevalecia quanto ao consumidor final contribuinte, não havendo nenhuma razão para o abandono dos critérios desde sempre adotados.

Em súbita reviravolta, o Confaz adotou a base dupla do diferencial de alíquotas — na versão radical acima resenhada — no Convênio ICMS 52/2017, que trata das operações interestaduais sujeitas a substituição tributária e tem vigência prevista para 1º/1/2018 (cláusula 14º, inciso I).

Não fosse duplamente inválido — por falta de apoio na Constituição e na lei complementar, no que toca à base de cálculo, e por ofensa direta à primeira, no que concerne à alíquota, como já demonstrado —, o Convênio ICMS 52/2017 careceria de autoaplicabilidade, dependendo da intermediação de lei estadual. De fato, a base de cálculo dos tributos é matéria reservada à lei, a teor dos artigos 146, inciso III, alínea “a”, da Constituição e 97, inciso IV, do CTN.

O STF exige lei até mesmo para a introdução de incentivos fiscais, medida que integra a competência do Confaz, na forma do artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, alínea “g”, da Constituição (1ª Turma, RE 630.705 AgR/MT, relator ministro Dias Toffoli, DJe 13/2/2013). O concurso do legislador estadual é ainda mais imperioso em temas a cuja disciplina o órgão não está constitucionalmente autorizado, caso da fixação da base de cálculo do ICMS. Referidas leis estaduais ficariam ainda sujeitas à anterioridade anual e nonagesimal, estando provado que acarretam inequívoco aumento de tributo.

Esta é a minha última coluna do ano. 2018 promete grandes desafios no campo tributário. Mas, antes disso, felizes festas e boas férias a todos!

[1] O índice de 21,95% (e não 18%) justifica-se pela diferença existente entre as operações aditivas e subtrativas com porcentuais. Assim, v.g., 100 – 10% = 90, mas 90 + 10% = 99 (e não 100).
O porcentual a ser somado a uma base qualquer para que, após a subtração de 18%, se retorne ao valor inicial é precisamente de 21,95%.
[2] “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;
(...)
§ 1º. No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§ 2º. A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
§ 3º. Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
§ 4º. A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.”

Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

Fonte: Conjur

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