O Congresso Nacional acaba de aprovar o PLS-C 130/2014, que permite a “convalidação” dos incentivos e benefícios de ICMS concedidos unilateralmente pelos estados e o Distrito Federal, no âmbito da chamada “guerra fiscal”.
A regulação da matéria era necessária e veio em boa hora.
De outro lado, as empresas que foram induzidas a fazer investimentos em determinadas localidades mediante promessa de desoneração fiscal, inclusive para compensar os maiores custos logísticos de instalação e operação mais longe dos grandes centros consumidores, não podem ser surpreendidas pela mudança abrupta das regras, em face dos princípios da segurança jurídica e moralidade administrativa.
Nada obstante, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal caminhou no sentido de manter a validade dos incentivos e benefícios concedidos de forma unilateral somente até a data de julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade. Trata-se da chamada “morte súbita”, que, em certos casos, “geraria prejuízos substanciais para a economia e população dos estados e do país, bem como para os cofres públicos estaduais e federais”, como aponta a FGV-RJ[2].
Diante disso, restava ao Congresso Nacional editar normas de alcance geral destinadas a arbitrar o conflito (CF, artigo 146).
A solução foi criar lei complementar, de caráter excepcional e temporário, destinada a regular a forma como os Estados e o Distrito Federal poderiam deliberar especificamente sobre os incentivos e benefícios de ICMS concedidos sem a anuência do Confaz, com fundamento no artigo 155, §2º, XII, “g”, da Constituição Federal.
Isso porque, de um lado, o sistema de deliberação previsto na Lei Complementar 24/1975 não permitia avançar na questão. Primeiro, porque exige-se quórum unânime de deliberação, inviabilizando acordo razoável. Segundo, porque não há sanção para as unidades federadas que descumpram as suas disposições[3]; o único que “toma bala” na “guerra fiscal” é o contribuinte[4], que fica sujeito à exigência do tributo nos Estados de origem e de destino (bitributação). A despeito disso, há forte resistência em alterar-se o sistema da referida lei complementar.
Havia alguns projetos sobre o tema, entre os quais o PLS-C 130/2014, de autoria da senadora Lúcia Vânia, que pretendia “legalizar” os incentivos e benefícios de ICMS concedidos irregularmente. Diante da necessidade de assegurar aos Estados e ao Distrito Federal o poder de decidir em última instância sobre a matéria (CF, artigo 155, §2º, XII, “g”), o senador Ricardo Ferraço apresentou emenda para fixar o quórum de deliberação em 2/3, seguindo a fórmula do artigo 12, §3º, da Lei Complementar 24/1975. Exigiu-se, adicionalmente, a anuência de 1/3 das unidades federadas de cada região, de modo a garantir-se o equilíbrio regional. Coube, então, ao saudoso senador Luiz Henrique construir um texto de consenso, que foi aprovado, com alguns ajustes, em Plenário, por expressiva maioria (52 votos a 6).
Remetido o projeto à Câmara dos Deputados, onde tramitou como PLP 54/2015, foi apresentado substitutivo pelo deputado Alexandre Baldy, também aprovado em Plenário por ampla maioria (386 votos a 25).
Em razão das modificações havidas, o projeto retornou ao Senado, como SCD 5/2017, o qual foi relatado pelo senador Ricardo Ferraço, cujo parecer foi aprovado em Plenário por unanimidade (53 votos, incluída 1 abstenção), acrescido de destaque (43 votos a 3).
O texto final remetido à sanção presidencial, em síntese, permite ao Confaz autorizar a remissão (perdão) dos créditos tributários relacionados aos incentivos e benefícios concedidos unilateralmente até a data da publicação da lei complementar, bem como a reinstituição daqueles ainda vigentes. Trata-se de procedimentos que equivalem à “convalidação” dos incentivos e benefícios concedidos de forma irregular no passado.
São passíveis de convalidação os incentivos e benefícios publicados nos diários oficiais dos entes que os tenham concedido e cujos atos concessivos tenham sido registrados e depositados junto à Secretaria Executiva do Confaz, para posterior disponibilização no respectivo site.
Para tanto, será necessário o voto de, pelo menos, 18 unidades federadas (2/3), dentre as quais deve constar, no mínimo, uma da Região Sul, duas da Região Sudeste, duas da Região Centro-Oeste, três da Região Nordeste e três da Região Norte (1/3). A questão deverá ser decidida em até 180 dias.
O prazo máximo de vigência dos incentivos e benefícios que venham a ser reinstituídos será contado da publicação do convênio e não poderá ultrapassar o final do: (a) 15º ano, em relação aos destinados ao fomento das atividades agropecuária e industrial, inclusive agroindustrial, e ao investimento em infraestrutura rodoviária, aquaviária, ferroviária, portuária, aeroportuária e de transporte urbano; (b) 8º ano, em relação aos destinados à manutenção ou ao incremento das atividades portuária e aeroportuária vinculadas ao comércio internacional, incluída a operação subsequente à da importação, praticada pelo contribuinte importador; (c) 5º ano, em relação aos destinados à manutenção ou ao incremento das atividades comerciais, desde que o beneficiário seja o real remetente da mercadoria; (d) 3º ano, em relação aos destinados às operações e prestações interestaduais com produtos agropecuários e extrativos vegetais in natura; (e) 1º ano, em relação aos demais.
Nesse ínterim, poderão as unidades federadas revogar ou reduzir (jamais aumentar) o volume dos incentivos e benefícios, bem como estendê-los a outros contribuintes localizados em seu território, inclusive reproduzindo desonerações em vigor em outras unidades da mesma região.
Importante observar que o perdão de créditos tributários concedido por lei da unidade de origem repercutirá na unidade de destino, implicando o cancelamento de autos de infração que tenham sido lavrados no passado, bem como dos processos administrativos ou judiciais decorrentes. Isso porque a base normativa de tais autuações é o artigo 8º da Lei Complementar 24/1975, cujas sanções restarão automaticamente afastadas no caso de “convalidação” dos respectivos incentivos e benefícios, tendo em vista a autorização superveniente do Confaz.
Vale destacar, ainda, que a persistência na prática denominada “guerra fiscal” implicará, para a unidade infratora, as sanções financeiras previstas no §3º do artigo 23 da Lei de Responsabilidade Fiscal, ficando vedados, enquanto perdurar a infração: (a) o recebimento de transferências voluntárias; (b) a obtenção de garantia, direta ou indireta, de outro ente; (c) a contratação de operações de crédito, ressalvadas as destinadas ao refinanciamento da dívida mobiliária e as que visem à redução das despesas com pessoal. A aplicação das sanções será feita de forma célere, mediante provocação de unidade federada interessada ao Ministro da Fazenda, o qual, em constatando a inobservância das regras aplicáveis à concessão de desonerações do ICMS, deverá declarar tal fato no prazo de até 90 dias, com o que incidirão as vedações legais. Ainda, a imposição da pena deverá ser fiscalizada pelo Tribunal de Contas da União. O fim da impunidade, por si só, terá papel decisivo na eliminação da guerra fiscal.
Além disso, o relator da matéria na Câmara dos Deputados havia proposto a redução gradativa dos incentivos e benefícios, ao longo do respectivo prazo de vigência. A ideia era arrefecer a guerra fiscal, aliviar os cofres estaduais combalidos pela crise econômica, viabilizar uma transição ordenada para um cenário sem incentivos, e criar uma alternativa à redução das alíquotas interestaduais do ICMS, objeto do PRS 1/13.
Entretanto, houve impasse e, após negociações, concordou-se em retirar da regra os incentivos industriais e demais sujeitos ao prazo de vigência de 15 anos, o que viabilizou a aprovação da matéria na Câmara. Devolvido o projeto ao Senado, alguns estados acenaram com perdas significativas no comércio interestadual e, considerando que parte substancial dos incentivos e benefícios havia sido excluída da regra, e que os produtos importados estão submetidos à menor alíquota interestadual (4%) para mitigar os efeitos da “guerra fiscal”[5], optou-se por afastar linearmente a redução para conferir isonomia às unidades federadas e aos contribuintes.
Por fim, o texto aprovado contém normas interpretativas para explicitar que os incentivos e benefícios de ICMS, ainda que concedidos sem autorização do Confaz, caracterizam subvenção para investimento, sempre que atendidas as disposições do artigo 30 da Lei 12.973/2014.
Interessante notar que a redação do artigo 9º do substitutivo da Câmara dos Deputados foi alterada pelo Senado Federal, para maior precisão. A redação original previa que os incentivos e benefícios de ICMS “são considerados subvenções para investimento, nos termos do caput” do artigo 30 da Lei 12.973/2014.
A intenção do legislador, declarada no relatório apresentado pelo deputado Alexandre Baldy, foi incluir “artigos que deixam claro que os incentivos e benefícios fiscais de ICMS recebidos pelas pessoas jurídicas, desde que esses valores sejam mantidos em conta de reserva no Patrimônio Líquido, são subvenções para investimentos, sobre eles não incidindo, por consequência, IRPJ e CSLL. Impede-se, com isso, que a Secretaria da Receita Federal do Brasil continue e autuar as empresas beneficiárias de incentivos do ICMS com base em interpretações jurídicas equivocadas, reforçando a segurança jurídica e garantindo a viabilidade econômica dos empreendimentos realizados”.
Ocorre que a Receita Federal poderia continuar exigindo o atendimento de condições não previstas no artigo 30 da Lei 12.973/2014 (por exemplo, investimento imediato em ativo permanente) para, com isso, prolongar as discussões sobre o tema, frustrando o objetivo buscado pela Câmara dos Deputados.
Por isso, o Senado Federal acolheu a proposta do senador Ricardo Ferraço e deixou claro que os incentivos e benefícios de ICMS “são considerados subvenções para investimento, vedada a exigência de outros requisitos ou condições não previstos neste artigo”. A mudança do texto realçou o caráter expletivo da norma criada pela Câmara dos Deputados, “de modo a ensejar a perfeita compreensão do objetivo da lei e a permitir que seu texto evidencie com clareza o conteúdo e o alcance que o legislador pretende dar à norma” (artigo 11, II, “a”, da Lei Complementar 95/1998)[6], como atesta o Parecer 49, de 2017-CAE[7].
Do exposto, verifica-se que, em função da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, houve notável esforço do Poder Legislativo para viabilizar uma saída organizada do ambiente de guerra fiscal, com o restabelecimento da segurança jurídica.
A publicação da lei complementar será o marco temporal para aferição dos incentivos e benefícios passíveis de convalidação, o que significa dizer que, a partir desse momento, nenhum outro poderá ser regularizado com base nela. E, com a publicação do convênio, terá início o prazo para extinção dos incentivos e benefícios cuja convalidação tenha sido autorizada pelo Confaz. Na sequência, deverão as unidades federativas produzir as normas necessárias à ratificação e posterior incorporação do convênio à legislação estadual, em conformidade com o artigo 150, §6º, da Constituição Federal combinado com a Lei Complementar 24/1975.
Nesse contexto, aguarda-se que o presidente da República sancione integralmente o texto final originado do PLS-C 130/2014, fruto de amplo debate parlamentar, com a participação ativa dos interessados, e que restou aprovado por esmagadora maioria, nas duas Casas do Congresso Nacional. Na sequência, poderá o Confaz reunir-se para deliberar sobre a matéria e, enfim, possibilitar que os estados e o Distrito Federal editem as normas necessárias para dar início ao fim da “guerra fiscal” do ICMS.
Completado o ciclo normativo, estima-se que haverá reflexos positivos para a economia nacional, pois as empresas poderão realizar investimentos que haviam bloqueado com receio de serem obrigadas a pagar por incentivos e benefícios já gozados ou que viessem a usufruir.
[1] http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias.html?view=noticia&id=1&idnoticia=1756&busca=1&t=contas-regionais-pib-piaui-cresce-8-maior-alta-2008, acessado em 18/07/2017.
[2] http://tetrasoft.com.br/adial/wp-content/uploads/2014/11/Estudo-FGV-Incentivos-Fiscais.pdf, acessado em 18/07/2017.
[3] As sanções previstas no par. único do art. 8º da Lei Complementar nº 24/1975 são: “a presunção de irregularidade das contas correspondentes ao exercício, a juízo do Tribunal de Contas da União, e a suspensão do pagamento das quotas referentes ao Fundo de Participação, ao Fundo Especial e aos impostos referidos nos itens VIII e IX do art. 21 da Constituição federal.” Ocorre não compete ao Tribunal de Contas da União fiscalizar os Estados e o Distrito Federal, sujeitos ao controle dos respectivos Tribunais de Contas, salvo quando se trate de repasse voluntário de verbas federais (CF, arts. 71, VI, e 75). Por outro lado, a suspensão das quotas do Fundo de Participação somente pode ocorrer nos casos previstos no parágrafo único do art. 60 da Constituição Federal em vigor. Por fim, os impostos únicos referidos nos itens VIII e IX do art. 21 da Constituição de 1967/69 foram revogados pela CF/88.
[4] Santi. Eurico Marcos Diniz de. A guerra fiscal do ICMS sob uma perspectiva comparada de competição tributária. São Paulo: Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – DIREITO GV, 2010, p. 12.
[5] Cf. Parecer nº 372, de 2012- CAE, de autoria do Senador Eduardo Braga.
[6] O retorno do projeto à outra Casa Legislativa não é cabível quando não há “mudança de fundo, mas redacional” (ADI 600-2/DF – Rel. Min. Marco Aurélio – DJ: 30/06/1995). Vide: ADI 2.182/DF e 2.238/MC-DF).
[7] “(...) É necessário eliminar a insegurança jurídica decorrente de cobranças fiscais, de forma que as empresas possam reverter provisionamentos e retomar os investimentos. Para que tal objetivo seja atingido, mantido o objeto aprovado pela Câmara dos Deputados, é necessário adequar a redação do § 4º do art. 30 da Lei nº 12.973, de 2014, na forma do SCD, para substituir a expressão “nos termos do caput deste artigo” por “vedada a exigência de outros requisitos ou condições não previstos neste artigo”. Com essa redação, a Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) não poderá alegar que devem ser feitas exigências não previstas no texto do art. 30 do referido Diploma Legal. Atinge-se, portanto, o escopo da Câmara dos Deputados, que é a observância estrita desse dispositivo e a consequente preservação da segurança jurídica.”
Hugo Funaro é advogado tributarista, mestre em Direito Econômico e Financeiro pela USP. Sócio do Dias de Souza Advogados Associados.
Hamilton Dias de Souza sócio fundador da Dias de Souza Advogados Associados, é mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Fonte: Conjur
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