"Propósito” é uma palavra recorrente no atual universo empreendedor. Tem a ver com a ideia de que a startup é movida não somente por aspirações de riqueza, mas por um ideal de mudança que é resultado de uma inquietação do ser humano por trás daquela empresa ao ser posto diante de um problema cotidiano.
Diante desta realidade, aquela famosa tríade – missão, visão e valores – no caso das startups acaba transformada; é necessário entender que, nas atividades destas empresas, há uma ideia de que antes de auferir qualquer tipo de lucro, é primordial buscar um motivo para empreender. Via de regra, atualmente quem começa um negócio inovador o faz pensando em algo que vai muito além do “ficar rico”.
Primeiramente, é importante lembrarmos que o direito regula relações sociais. Assim, quando a sociedade é impactada pelo surgimento – e crescimento exponencial – de empresas que possuem objetivos totalmente diferentes dos antes vistos, deve haver uma mudança considerável na forma como o direito enxerga estes agentes. Se antes empresas eram tidas como meras “máquinas de fazer dinheiro” e associadas a objetivos de lucro, o cenário atual pode não ser bem assim. A origem das normas e o tratamento jurídico dado às startups deve levar em conta, em todos os sentidos, que ali há pessoas que podem não colocar rendimentos financeiros como principais metas. Neste sentido, não podemos mais tratar “empreendedor” e “empresário” como sinônimo de milionários: grande parte destas pessoas enfrentam dificuldades como qualquer assalariado.
Num segundo momento, os próprios operadores do direito precisam aprender a dialogar com as startups, e esta deficiência aparece em várias situações reais. É inegável, assim, que estudar ao contexto destas empresas é fundamental para que o direito não signifique um peso para startups, e sim algo desejável para contribuir com seu crescimento. Não queremos um mundo em que empreendedores tenham “medo” do direito, e sim que tenham as ferramentas jurídicas como poderosas aliadas para o desenvolvimento de seu negócio e cumprimento de seus objetivos.
Nada disso significa, porém, que o direito não vale – ou deve valer – para startups. A questão aqui é aplicar o mais puro bom senso e justeza. A segurança jurídica deve ser sempre buscada, desde que adequada à realidade. Desta forma, é preciso entender o mercado, seus agentes e sopesar em que, quanto, quando e como o direito incide nessas relações. Não por acaso, a ideia de uma formação específica de direito para startups tem aparecido nos projetos de grandes organizações de ensino – podemos citar, só pra começar, as escolas de direito de Stanford e Berkeley, na Califórnia; no Brasil, FGV e Insper são exemplos de instituições de ensino e pesquisa que já oferecem preparações específicas em direito para startups.
Não podemos negar que a relação das empresas com pessoas tem sido afetada cada vez mais pelas mudanças tecnológicas e propulsionada por complexos problemas sociais. Se os bancos congelam o desenvolvimento de suas tecnologias, as fintechs surgem para forçar uma atualização; se o sistema de saúde apresenta problemas, as health techs podem mostrar soluções; se o acesso à educação é difícil, EdTechs ajudam a democratizar o ensino. Estes são apenas exemplos de como a inovação tem revolucionado, mais uma vez, a sociedade – e mudado a forma como serviços são prestados, como as empresas se relacionam com os clientes e seu grau de satisfação, bem-estar e qualidade de vida.
Se o empreendedor atual surge com o diferencial de colocar o cumprimento de seu propósito em um mesmo (ou até mais alto) patamar que sua renda, o direito, como balizador social que é, não pode ignorá-lo; deve, enfim, acompanhar as transformações da realidade.
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Decidi escrever este texto em homenagem a Raulo Ferraz. Em 30 de julho de 2017, faleceu em um acidente de automóvel na Rodovia MG-050, viajando a trabalho. Sua startup, a Hippo Drs., atua no setor de saúde oferecendo consultas médicas rápidas e acessíveis, bem como acompanhamentos em exames, remédios e outras necessidades dos pacientes. Foi destaque em inúmeros veículos de mídia pouco antes do acidente. Raulo foi um empreendedor movido totalmente por propósito, assim como sua empresa. Raulo foi, antes disso tudo, um amigo de infância, insubstituível.
por Victor Cabral Fonseca - Advogado na área de Startups, Inovação e Corporate Venture; graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (FDRP-USP); Mestrando pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (SP) em Direito dos Negócios e Desenvolvimento Econômico e Social. Realiza pesquisa em Direito, Inovação, Startups e Empreendedorismo.
Fonte: Jota.info/
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