1. Introdução
Como sabido e ressabido, o Governo Federal majorou as contribuições Pis/Pasep e Cofins incidentes sobre a importação e a comercialização de gasolina, óleo diesel, gás liquefeito de petróleo, querosene de aviação e álcool.
Fê-lo por meio do Decreto nº 9.101, de 20 de julho de 2017 que, a seu turno, alterou o Decreto nº 5.059 de 30 de abril de 2004 e o Decreto nº 6.573, de 19 de setembro de 2008. Ademais, o referido diploma normativo foi editado com fundamento no art. 23, § 5º, da Lei nº 10.865, de 30 de abril de 2004 e no art.5º, § 8º, da Lei nº 9.718, de 27 de novembro de 1998.
- 5° Fica o Poder Executivo autorizado a fixar coeficientes para redução das alíquotas previstas neste artigo, os quais poderão ser alterados, para mais ou para menos, ou extintos, em relação aos produtos ou sua utilização, a qualquer tempo.
O presente Estudo bordará o assunto por dois prismas, quais sejam, o primeiro sob a óptica da legalidade, na medida em que o Poder Executivo alterou as alíquotas do tributo sub examen, já o segundo no sentido de aquilatar a utilização de contribuição de seguridade social como instrumento de geração de recursos financeiros para cobrir rombo orçamentário, afora a questão da anterioridade consubstanciada na noventena.
2. “DE MERITIS”
O Decreto e a Lei ante o princípio da estrita legalidade
Conforme sói acontecer, obviamente, o Decreto do Executivo reporta-se ao seu fundamento de validade que é a legislação, no caso a Lei nº 10.865/2004 e a Lei nº 9.718/1998, as quais, como visto, instrumentam o Presidente da República a expedir decretos com o fito de regulamentar o diploma normativo da lavra do parlamento.
Por certo, o disciplinamento de matéria de qualquer natureza, inclusive tributária, segue essa diretriz, pois, em regra, o Executivo dispõe de poderes para implementar a legislação, em obséquio, aliás, ao comando inserto no art. 84, inciso IV, da Constituição Federal, igualmente retratado nas linhas mestras das Constituições dos Estados e nas Leis Orgânicas dos Municípios.
Todavia, cumpre obtemperar que na seara tributária há uma fronteira intransponível e estreita, pela qual somente à Lei incumbe versar sobre os componentes essenciais da norma de tributação, desde o fato jurídico tributário – fato gerador – até a quantificação do tributo, ressalvada a atenuação da legalidade prevista no art. 153, § 1º, do Texto Supremo.
Aliás, o punctum dolens deste tópico repousa exatamente no primado da estrita legalidade cristalizado na apontada flexibilização do referido princípio constitucional, segundo a qual o Executivo pode alterar as alíquotas dos impostos sobre a importação, exportação, IOF e IPI, dentro dos limites previamente firmados em lei.
Por outro lado, verdade seja, a Emenda Constitucional nº 33, de 11 de novembro de 2001 criou uma nova atenuação que foi incluída no art. 177, § 4º, letra b, a qual diz respeito tão somente às contribuições de intervenção no domínio econômico/CIDE, nada autorizando sua aplicação em relação às contribuições de seguridade.
Além de tudo, mesmo no campo das CIDES, a referida disposição é decididamente inconstitucional, máxime porque o sistema tributário no plano excelso é insusceptível de ampliação ou restrição, mesmo por Emendas. Em estreita síntese, impende sublinhar que a única modificação autorizada se limita aos impostos e contribuições residuais, conforme quer o art. 154, I, razão pela qual fora é admitir que nenhuma outra modificação pode ser efetuada a qualquer título seja.
Por todas as veras, ressalta à evidência que as hipóteses de atenuação do postulado da estrita legalidade se circunscrevem aos impostos enumerados no art. 153, § 1º, da CF, simpliciter et de plano. Logo, é inevitável reconhecer que as contribuições ora contendidas, objeto da majoração por decreto, não se encontram situadas no âmbito da referida legalidade mitigada.
De conseguinte, afigura-se evidente a existência de um desconcerto lógico pelo qual as disposições legislativas jamais poderiam delegar poderes para o Executivo alterar as alíquotas das contribuições de seguridade Pis/Pasep e Cofins, sob pena de incorrerem em flagrante inconstitucionalidade, o que efetivamente se verificou.
Distorção do regime jurídico constitucional
Consoante noção cediça, o art. 145, I, II e III, da Constituição Federal, cataloga os tributos dos subgêneros denominados impostos, taxas de polícia e taxas de serviço, bem como as contribuições de melhoria, fazendo-o no Capítulo I dedicado ao Sistema Tributário Nacional, imerso no Título VI que versa sobre Tributação e Orçamento.
O referido comando assim dispõe:
“Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:
I – impostos;
II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;
III – contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas”.
O art. sob comento reproduz as espécies tributarias contempladas na Emenda n. 18, de 1º de dezembro de 1965, integrando, assim, a Constituição de 1946. Tal classificação foi encampada pela Carta de 1967 e mantida na ordem constitucional de 1969 que manteve as mencionadas modalidades, as quais estabeleceram que a composição do Sistema Tributário Nacional compreendia os impostos, as taxas e as contribuições de melhoria.
O Código Tributário Nacional, a seu turno, contido na Lei n. 5.172 de 25 de outubro de 1966, encampou as categorias tributárias enumeradas na Emenda n. 18/65, na dimensão em que em seu art. 5º qualificou como espécies tributárias os impostos, as taxas e as contribuições de melhoria, senão vejamos:
“Art. 5º Os tributos são impostos, taxas e contribuições de melhoria.”
Apenas para esclarecer, cumpre lembrar que o art. 15, do Código Tributário Nacional faz menção aos empréstimos compulsórios, o qual, embora não constando do elenco do art. 5º, reveste inegável feição tributária.
Outrossim, a Constituição de 1988 empreendeu significativas inovações na tributação e, nesse compasso, contemplou outras modalidades tributárias preexistentes na condição de conceitos lógicos jurídicos, no caso os empréstimos compulsórios – art. 148, I e II – as contribuições sociais, as contribuições interventivas econômicas e as contribuições profissionais – art. 149 – além do imposto de guerra – art. 154, II e da taxa de pedágio- art. 150, V.
Não obstante, o Código Tributário Nacional não foi atualizado e ainda se ressente de um censurável anacronismo, uma vez que não enumera todas as modalidades tributárias.
De todo o modo, numa visão constitucional, desponta evidente um divisor de águas entre os tributos do art. 145, I, II e III, em relação aos demais, na medida em que geram receitas genericamente orçamentárias, sendo vedada, inclusive, a sua afetação, nos termos do disposto no art. 167, IV, da Lei Magna.
De outra parte, os demais tributos produzem receitas destinadas ao custeio de uma atividade pontual, a exemplo dos empréstimos compulsórios que só podem ser instituídos para o atendimento de despesas extraordinárias decorrentes de calamidade pública ou guerra externa, ou o empréstimo de investimento público urgente e relevante, conforme quer o disposto no art. 148, I e II, do Códex Máximo.
Não é diferente o caso da taxa de pedágio que se preordena a obter receitas para a conservação de estradas já existentes. Igual sorte é aplicável às CIDES que devem custear a despesa da União na hipótese de intervenção no domínio econômico, assim como as contribuições profissionais que tem por desígnio tão somente fornecer recursos pecuniários aos cofres de entidades como a OAB, por exemplo, a qual incumbe representar e disciplinar a classe dos advogados, o mesmo ocorrendo com outras atividades regulamentadas.
Em estreita síntese, é lídimo depreender que o destino da arrecadação faz parte integrante do regime jurídico dos tributos, na medida em que, no tocante aos inscritos no art. 145, I, II e III, devem eles prover o orçamento em sentido genérico, enquanto, a contrario sensu, todos os demais criam recursos financeiros comprometidos com uma dada finalidade.
A propósito, torna-se de mister esclarecer que a destinação exógena à natureza do tributo não se confunde com aquela endógena consoante ora sustentado, tanto que, por exemplo, a partilha de receitas tributárias por meio dos Fundos de Participação de Estados e Municípios ou equivalentes nada dizem em relação ao regime jurídico tributário, máxime porque habitam o universo do direito financeiro.
Diante disso, força é admitir que a arrecadação advinda da cobrança das contribuições insculpidas no art. 148 e desdobradas no art. 195 e seguintes do Texto Magno, tem uma única finalidade, qual seja, financiar a seguridade social, vedado, pois, qualquer outra sorte, sob pena de manifesta invalidade.
É o caso da controversa majoração das contribuições PIS-PASEP-COFINS que, segundo o Governo, destinar-se-ia a suprir déficit orçamentário, o que transfigura sua natureza jurídica, transformando-as em impostos inominados, restando, assim, manifestamente inconstitucional.
Por sem dúvida, a natureza dos tributos ou quaisquer institutos na orbe do direito é determinada pelo regime jurídico e não pelo nomen juris ou pela intenção do legislador, daí estar-se diante de imposto inominado e não contribuição de seguridade social.
No entanto, se apenas por hipótese o tributo sob exame fosse considerado uma contribuição de seguridade, o produto de sua arrecadação deveria financiar a saúde, previdência ou assistência social e não reverter saldo devedor das contas públicas. Ao demais, não poderia tornar-se exigida desde logo, como quer a lei ora contestada, mas somente após noventa dias da publicação da respectiva lei, em consonância com o disposto no art. 195, § 6º, da Lei Magna, tornando-se forçoso dessumir o seu desconcerto com o figurino constitucional.
3. Conclusões
I- Nos termos do art. 153, § 1º, da Constituição Federal, as únicas hipóteses de atenuação da estrita legalidade se circunscrevem aos impostos sobre a importação, exportação, IOF e IPI, donde afigura-se induvidosamente inconstitucional a majoração por Decreto ora questionada.
II-Em que pese à denominação de contribuição de seguridade, os tributos in casu são verdadeiros impostos em virtude de sua vocação no sentido de gerar receitas genericamente orçamentárias, merecendo a categorização de impostos inominados destituídos de fundamento constitucional, daí sua induvidosa invalidez.
III-Se o tributo em debate for qualificado como contribuição de seguridade seria também inconstitucional, não só pela ausência de afetação do produto de sua arrecadação, senão também pela sua exigibilidade imediata que passa ao largo da anterioridade nonagesimal.
por Eduardo Marcial Ferreira Jardim é Professor Doutor na Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie e Conferencista no Instituto Brasileiro de Estudos Tributários/IBET. Autor de livros de Direito publicados pelas Editoras Intelecto, Mackenzie, Noeses e Saraiva. Sócio de Eduardo Jardim Advogados Associados e Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas, Cadeira n. 62.
Fonte: IBET
Nenhum comentário:
Postar um comentário