1. Introdução
Durante décadas, os contribuintes do Imposto sobre Serviços viveram sob imensa insegurança jurídica a respeito do local de incidência deste imposto, já que, ainda à luz do Decreto-Lei 406, de 31 de dezembro de 1968, a legislação determinava, como regra, que isto se daria onde estivesse estabelecido o prestador e a jurisprudência do STJ[1], em interpretação equivocada, que o fenômeno em causa se operaria no município onde a atividade fosse efetivamente desempenhada.
Nada obstante a elogiável decisão tomada no caso Potenza Leasing, o mesmo STJ vem agora aplicando equivocadamente os critérios definidos em tal julgado, como se observa dos julgamentos do Recurso Especial 1.439.753/PE[2] e da admissibilidade do respectivo recurso de Embargos de Divergência e do Agravo Interno no Recurso Especial 1.634.445/MG[3], que tiveram como objeto a localização do fato gerador do ISS sobre análises clínicas.
Em tais casos, tinha-se a atividade de análise clínica desempenhada por estabelecimento situado num dado município e a coleta do material biológico em outro, tendo restado decidido que neste último incidiria o ISS, sob o argumento de que a unidade econômica ou profissional estaria lá localizada, pois lá restaria perfectibilizada a contratação, com a entrega do laudo ao cliente.
2. A localização do fato gerador do ISS no espaço
Não há mandamento constitucional que impeça a norma de incidência tributária, ao identificar um fato relacionado com seu território, qualificá-lo como fato gerador e atribuir-lhe como consequência o nascimento de uma obrigação tributária.
Caso haja possibilidade de mais de uma pessoa política tributar o mesmo fato, não se trata de mero concurso de imposições, mas sim potencial conflito de competências homogêneas. Contra esse mal, previu a Constituição seja editada norma geral de Direito Tributário, mediante lei complementar, de modo a dar cumprimento aos princípios do federativo e do republicano.
Como um dado fato pode guardar relação com o território de mais de uma pessoa política, cumpre à lei complementar determinar que atributo do fato o tornará passível de tributação por esta ou aquela[4].
Pois muito bem, no caso do ISS, o seu fato gerador, sob o ponto de vista de arquétipo, moldura constitucional, pode ser atraído para este ou aquele território municipal, quer por um dito elemento de conexão objetivo, quer subjetivo. Sob o aspecto objetivo, a localização do fato gerador poder dar-se em função de onde uma dada atividade seja efetivamente desempenhada, enquanto que na conexão subjetiva isto pode se referir a onde se situe a pessoa ou unidade econômica ou profissional que realize os serviços, a onde o prestador esteja domiciliado ou até a onde o cliente se encontre etc.
Desta forma, entendemos que as previsões, tanto do Decreto-Lei 406/68, artigo 12, “a”, quanto da Lei Complementar 116/03, artigo 3º, I, no sentido de que o serviço tributável pelo ISS tem-se por realizado no Município onde esteja localizado o estabelecimento prestador estão em absoluto acordo com a Constituição e caracterizam-se como típicas normas gerais de direito tributário, na forma do artigo 146, I, da Constituição[5].
As lições[6] a respeito do que constitua estabelecimento, isto é, o complexo de bens, materiais e imateriais que serve de instrumento para o desempenho de atividade empresarial, são de longa data, por isso não havia motivos para o STJ ter firmado, no passado, jurisprudência contrária a tal definição[7].
No caso de atividades complexas, o que caracteriza o estabelecimento como sendo o prestador são os bens voltados ao desempenho do núcleo do serviço contratado. Desta sorte, temos que bens relativos a atividades acessórias, meio, não têm o condão de constituir unidade econômica ou profissional autônoma. Assim, por exemplo, no caso de serviço de consultoria, se o prestador possuir uma equipe de pesquisas (atividade-meio) situada em local diverso de onde sejam processadas as informações e produzido o conteúdo contratado (atividade-fim), o estabelecimento prestador, a unidade econômica, considerar-se-á situada onde se localizem os bens afeitos a estas 02 últimas atividades.
A negativa de vigência do artigo 12, I, Decreto-Lei 406/68 por parte do STJ, em que pese a farta doutrina a respeito do tema e até a construção jurisprudencial quanto a outras searas que não a do ISS, terminou fazendo necessária a definição expressa de estabelecimento pela Lei Complementar 116/03, por meio do seu artigo 4º.
3. A localização do fato gerador do ISS nos serviços de análises clínicas
3.1 O que prescreve o regime jurídico do ISS no caso de análises clínicas
Nos termos dos artigos 146, III, “a”, e 156, III, ambos da Constituição Federal, compete aos municípios e ao Distrito Federal instituir o ISS, conforme definição de serviços tributáveis veiculada por lei complementar, função esta atualmente desempenhada pela Lei Complementar 116/03, que indica como tal na sua lista anexa, item 4.02, as atividades de análises clínicas.
Ademais, compete registrarmos que a localização dos serviços de análises clínicas no espaço, para efeitos de determinação do sujeito ativo do ISS, está submetida à regra geral que vimos comentando, qual seja, de que este imposto compete ao município onde se situe o estabelecimento prestador.
Na boa e racional realização dos serviços de análise clínica e anatomia patológica, os laboratórios, para ampliar os postos de atendimento, por um lado, aproximando-os dos seus respectivos clientes, e para modernizar seus equipamentos de análise e diagnóstico, de outro, concentrados em grandes e modernos centros de diagnósticos, organizam sua estrutura da seguinte forma:
(i) a coleta (obtenção do material biológico que será encaminhado para análise) é realizada em uma unidade de atendimento ao paciente;
(ii) o efetivo serviço, isto é, a análise do material coletado é prestado integralmente em Núcleos Técnicos Operacionais (NTOs), locais onde se encontram os modernos equipamentos e os profissionais especializados no processamento e análise dos materiais biológicos coletados, tudo a ser ao final submetido a processo padronizado de emissão de resultados (laudos), posteriormente remetidos às unidades de coleta.
Resta claro, portanto, que a localização do estabelecimento prestador do serviço de análise clínica deverá ser pautada por onde situem-se os bens necessários à execução do núcleo desta atividade, qual seja, processamento de material biológico e a sua análise propriamente dita.
Pouco importa onde o material biológico seja coletado ou até mesmo onde o cliente retire o laudo, atividades estas de cunho acessório. Aliás, em relação à “entrega” dos resultados dos exames, atualmente é raro isto dar-se por meio físico, posto que clientes e médicos os consultam em sítios eletrônicos.
3.2 Equívocos cometidos pelo STJ no julgamento do REsp 1.439.753/PE
Quando do julgamento do Recurso Especial 1.439.753/PE, a 1ª Turma do STJ entendeu que o sujeito ativo do ISS sobre análise clínica e patológica seria o município de Jaboatão dos Guararapes (PE), onde se realizam apenas as coletas de material biológico (atividade-meio), na medida em que ali seria estabelecida a relação jurídico-tributária.
Desconsiderou-se, a um só tempo, que o serviço contratado (atividade-fim) era o de análise clínica e anatomia patológica, e não de coleta de material biológico, bem como que os postos de coleta não têm estrutura técnica adequada para prestação dos serviços contratados.
De acordo com o posicionamento adotado pela 1ª Seção no Recurso Especial 1.060.210/SC, para fins de identificação da competência territorial, é imprescindível a análise do local em que ocorre o núcleo da operação, i.e., é necessário verificar o município – no caso do leasing financeiro - em que são tomadas as decisões sobre a concessão, a efetiva aprovação do financiamento (atividade-fim), e não o Município em que a clientela é apenas captada (atividade-meio).
Como se nota do julgamento do recurso trazido como paradigma – REsp 1.060.210/SC –, o STJ indicou haver três etapas distintas da prestação do serviço de leasing:
- na primeira, o colaborador da concessionária coleta os documentos que contêm as informações a serem analisadas e as envia para a instituição financeira;
- na segunda, a instituição financeira analisa esses documentos, aprova a operação e libera os valores;
- na terceira, o colaborador da concessionária comunica o cliente acerca da decisão, realiza os procedimentos operacionais para a formalização do negócio, entrega o bem e encerra a prestação do serviço.
Por sua vez, nos serviços de análise clínica e anatomia patológica, há também três etapas análogas:
- na primeira, o funcionário do posto de coleta extrai o material biológico, que contém as informações a serem analisadas, e o envia ao NTO;
- na segunda, o NTO analisa o material biológico e elabora o laudo técnico contendo as conclusões sobre as informações analisadas;
- na terceira, o laudo é entregue ao cliente e encerra a prestação do serviço, etapa que não precisa necessariamente ocorrer no posto de coleta, tendo em vista que, atualmente, a entrega normalmente se dá por meio de acesso ao sítio eletrônico do laboratório.
Em ambos os casos, a saber, leasing e análise clínica, há duas categorias distintas de procedimentos vinculados à prestação do serviço, a saber:
(i) os acessórios, que envolvem formalização da proposta, a contratação dos serviços, o pagamento, a entrega de documentos e outros procedimentos auxiliares para possibilitar a prestação dos serviços; e
(ii) o núcleo do serviço, que consiste na etapa que demanda conhecimentos técnicos e poderes decisórios relacionados especificamente à prestação contratada pelo cliente.
A intenção do cliente, ao firmar um contrato de leasing financeiro, não é entregar seus documentos à instituição financeira. Esta etapa é apenas necessária para que se realize a prestação efetivamente pretendida pelo cliente: aprovação da operação e liberação do valor.
De igual modo, ao contratar o serviço de análise clínica, por óbvio, o que o cliente pretende não é ter seu material biológico coletado, e sim obter um laudo técnico resultante da análise desse material.
No julgamento do REsp 1.060.210/SC, a 1ª Seção do STJ decidiu que possui competência para a cobrança do ISS o município do estabelecimento onde realizado o núcleo do serviço – aprovação da operação e liberação do valor.
Em sentido contrário, no julgamento do Recurso Especial 1.439.753/PE, a 1ª Turma do STJ decidiu que competência para a cobrança do ISS não cabe ao município onde se realiza o núcleo do serviço contratado – análise clínica e elaboração do laudo -, mas sim ao município em que efetuados os procedimentos acessórios à prestação do serviço contratado.
A 1ª Turma do STJ, portanto, criou novo critério de competência territorial, qual seja: local da contratação ou do pagamento, diverso do estabelecido pela Lei Complementar 116/03, que elegeu como critério o local do estabelecimento prestador, e absolutamente incongruente com o eleito pela 1ª Seção no julgamento do REsp 1.060.210/SC[8].
Infelizmente, o julgado da 1ª Turma que comentamos vem causando enorme insegurança jurídica e inspirando mudança de alteração de entendimento por parte das municipalidades e da própria jurisprudência dos tribunais estaduais, que era praticamente unânime no sentido de que, em situações como a tratada no REsp 1.439.753/PE, o sujeito ativo do ISS seria o município onde se localizassem os bens necessários à realização do processamento de material biológico e da análise clínica propriamente dita. Pior ainda talvez seja o fato de a 2ª Turma ter acolhido o equivocado entendimento prolatado no Recurso Especial em causa, no julgamento do Agravo Interno no REsp 1.634.445/MG.
Temos esperança de que a 1ª e a 2ª Turmas do STJ, ao tratarem novamente do tema, desfaçam os erros cometidos no julgamento do REsp 1.439.753/PE do Agravo Interno no Recurso Especial 1.634.445/MG e que assim também atue a 1ª Seção desse Tribunal, quando o assunto chegar à sua apreciação.
[1] Vide EREsp 130.792/CE, Primeira Seção, rel. para o acórdão Min. Nancy Adrighi, julgado em 07.04.2000, publicado no DJ de 12.06.2000.
[2] REsp 1.439.753/PE, Primeira Turma, rel. para o acórdão Min. Benedito Gonçalves, julgado em 06.11.2014, publicado no DJe de 12.12.2014.
[3] AgInt REsp 1.634.445/MG, Segunda Turma, rel. Min. Og Fernandes, julgado em 13.06.2017, publicado no DJe de 21.06.2017.
[1] TÔRRES, Heleno Taveira. Código tributário nacional: teoria da codificação, funções das leis complementares e posição hierárquica no sistema. Revista dialética de direito tributário, 71. São Paulo: Dialética, 2001, p. 98; MOURA, Fabio Clasen de. O ISS e o princípio da territorialidade. In: BELLAN, Daniel Vitor e MOURA, Fabio Clasen (Coords.), Imposto sobre serviços: de acordo com a Lei Complementar 116/03. São Paulo: Quartier Latin, 2003. p. 153-154.
[2] MACEDO, Alberto. ISS e o caso potenza leasing. Questões acerca do critério espacial do ISS. Revista direito tributário atual, 29. São Paulo: Dialética, 2013, p. 11.
[3] BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do estabelecimento comercial. São Paulo: Max Limonad, 1969, p. 75.
[4] Tais lições, aliás, terminaram sendo incorporadas pela legislação de Direito Privado, consoante artigo 1.142 do Código Civil.
[1] TÔRRES, Helena Taveira. Tributação do ISS no eterno dilema sobre local da prestação de serviço. CONJUR: http://www.conjur.com.br/2017-mai-24/tributacao-iss-eterno-dilema-local-servico, acessado em 09.07.2017, às 18:17.
Renato Nunes é advogado em São Paulo. Especializado, mestre e doutor em Direito Tributário pela PUC/SP. Professor do Insper.
Carolina Paschoalini é advogada em São Paulo. Especializada em Direito Tributário pelo IBDT e especializada em Gestão Tributária pelo Fipecafi.
Fonte: Conjur
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