1. Resenha legislativa
A Lei 9.718/98, com a redação da Lei 11.727/2008, permite ao produtor, ao importador e ao distribuidor de álcool optar entre a incidência de PIS e Cofins por alíquotas ad valorem ou específicas, fixando estas últimas em (artigo 5º, caput e parágrafo 4º):
PIS: R$ 23,38
Cofins: R$ 107,52
Vendas realizadas por distribuidor:
PIS: R$ 58,45
Cofins: R$ 268,80
O parágrafo 8º do artigo 5º confere ao Executivo a faculdade de reduzir e restabelecer livremente tais alíquotas específicas. Com base nesse dispositivo, editou-se o Decreto 6.753/2008, vigente a partir de 1º/10/2008 (artigo 5º), que as definiu em:
Vendas realizadas por produtor ou importador:
PIS: R$ 8,57
Cofins: R$ 39,43
Vendas realizadas por distribuidor:
PIS: R$ 21,43
Cofins: R$ 98,57
O Decreto 7.997/2013, vigente a partir de 7/5/2013 no que toca à redução de alíquotas e que se pretendeu vigente a partir de 1º/9/2013 quanto às majorações (artigo 2º), alterou-as para:
Vendas realizadas por produtor ou importador:
PIS: R$ 21,43
Cofins: R$ 98,57
Vendas realizadas por distribuidor:
PIS: zero
Cofins: zero
O Decreto 9.101/2017, que se quer vigente desde 20/7/2017 (artigo 3º), fixou as seguintes alíquotas:
Vendas realizadas por produtor ou importador:
PIS: R$ 23,38
Cofins: R$ 107,52
Vendas realizadas por distribuidor:
PIS: R$ 35,07
Cofins: R$ 161,28
Por último, o Decreto 9.112/2017, vigente a partir de 28/7/2017 (artigo 3º), definiu-as em:
Vendas realizadas por produtor ou importador:
PIS: R$ 23,38
Cofins: R$ 107,52
Vendas realizadas por distribuidor:
PIS: R$ 19,81
Cofins: R$ 91,10
Sistemática parecida foi criada pelo artigo 23 da Lei 10.865/2004 no que toca à gasolina e suas correntes, exceto gasolina de aviação; ao óleo diesel e suas correntes; ao gás liquefeito de petróleo, derivado de petróleo ou de gás natural; e ao querosene de aviação. Por brevidade, resenharemos aqui apenas o tratamento da gasolina e suas correntes, valendo notar que, embora o artigo 23 fale em opção, a incidência das alíquotas fixas de PIS e Cofins é obrigatória na importação de todos esses produtos (artigo 8º, parágrafo 8º), sendo facultativo somente na sua comercialização no mercado interno. Eis as alíquotas impostas na lei:
Pis: R$ 141,10
Cofins: R$ 651,40
Pois bem: com base na autorização para reduzir e restabelecer as alíquotas específicas (artigo 23, parágrafo 5º), o Executivo editou o Decreto 5.059/2004, vigente a partir de 1º/5/2004 (artigo 3º), que as definiu em:
PIS: R$ 46,58
Cofins: R$ 215,02
O Decreto 8.395/2015, que se quis vigente desde 1º/2/2015 (artigo 3º, inciso I), fixou-as em:
Até 30/4/2015
PIS: R$ 85,75
Cofins: R$ 395,86
Após 1º/5/2015
PIS: R$ 67,94
Cofins: R$ 313,66
Por fim, o Decreto 9.101/2017, com pretensa vigência a partir de 20/7/2017 (artigo 3º), restaurou as alíquotas da lei, já discriminadas acima.
A validade de todos esses diplomas, como se sabe, é objeto de acerba polêmica judicial.
2. Análise quanto à legalidade
A questão, segundo pensamos, é singelíssima. O parâmetro é o artigo 150, inciso I, da Constituição, segundo o qual “é vedado (...) exigir ou aumentar tributo sem que lei o estabeleça”.
O texto é claro: o que se proíbe é a instituição ou a elevação de tributo sem lei. Não está vedada a redução de tributo por decreto, salvo se esta advier de “subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão”, conforme a lista taxativa do parágrafo 6º do mesmo artigo (legalidade estrita para a concessão de benefícios fiscais). E, claramente, a redução de alíquotas atendendo a juízos de conveniência e oportunidade não se enquadra em nenhuma dessas categorias.
A interpretação literal do comando constitucional justifica-se por ser a legalidade uma das “garantias asseguradas ao contribuinte” (caput do artigo 150), ademais inserta na Seção das Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Isto é, trata-se de proteção do contribuinte contra o Estado, via de mão única que não pode ser percorrida no sentido oposto.
É certo que o STF, no RE 838.284/SC (Pleno, relator ministro Dias Toffoli, acórdão pendente de publicação), convalidou a flexibilização do princípio da legalidade perpetrada pelo artigo 2º da Lei 6.994/82, que instituiu a Taxa de Anotação de Responsabilidade Técnica, delegando ao Conselho Federal de Engenharia e Agronomia a manipulação em qualquer sentido de seu valor, desde que respeitado o teto ali imposto[2].
E, na ADI 4.697/DF (Pleno, relator ministro Edson Fachin, DJe 30/3/2017), deu pela constitucionalidade do artigo 6º, caput e parágrafo 2º, da Lei 12.514/2011, que adota técnica semelhante em relação às anuidades de conselhos de profissões regulamentadas.
Em ambos os casos, porém, a Corte deixou claro que só admitiu tais derrogações em atenção às peculiaridades das espécies tributárias em foco: taxa pelo exercício do poder de polícia e contribuição corporativa.
No primoroso voto que proferiu no julgamento da taxa de ART[3], o ministro Toffoli anotou que o diálogo entre lei e decreto na quantificação das taxas de polícia justifica-se pela impossibilidade de o legislador conhecer ex ante a intensidade e os pormenores técnicos — e, portanto, o custo efetivo — de cada ato de fiscalização a ser executado pela administração.
Ao conduzir o julgamento referente às anuidades dos conselhos profissionais, o ministro Fachin ressaltou que também aqui a mitigação da legalidade estrita vincula-se à melhor condição daquelas autarquias para (i) estimarem os seus próprios custos, a serem cobertos por tais contribuições e (ii) repartirem de forma justa esse custo entre os seus filiados.
Trata-se, como fica claro, de especificidades não extensíveis às demais espécies tributárias, nomeadamente aos impostos e às contribuições consistentes, no dizer do ministro Toffoli, em “impostos travestidos” — é dizer, das contribuições que, como o PIS e a Cofins, orientam-se pela capacidade contributiva e não têm por fato gerador uma atuação estatal.
Ao lado dessas exceções, constatadas pela jurisprudência à luz de circunstâncias especialíssimas, figuram aqueloutras abertas de maneira expressa pelo texto constitucional: impostos aduaneiros, IPI e IOF (artigo 153, parágrafo 1º) e CIDE-combustíveis (artigo 177, parágrafo 4º, inciso I, alínea b). Fora dessas hipóteses, vigora em sua plenitude o artigo 150, inciso I, que — já se viu — veda a majoração de tributos por decreto, embora não invalide a redução por esse instrumento (salvo se constitutiva de benefício fiscal).
A majoração, pelo Executivo, das alíquotas específicas de PIS e Cofins aqui analisadas não se legitima pelo fato de ter sido autorizada pelo legislador. Isso porque a separação e a harmonia dos Poderes são matérias ao alcance exclusivo do constituinte, razão pela qual o STF repele a chamada delegação legislativa externa (Pleno, ADI-MC 1.296/PE, relator ministro Celso de Mello, DJ 10/8/1995).
Tais razões garantem aos contribuintes o direito de continuarem sujeitos às menores alíquotas fixadas ao longo de todo o período para cada combustível, bem como de compensarem — atendido o artigo 170-A do CTN — os valores que tenham pago indevidamente no passado. Essas alíquotas são, para o álcool:
Vendas realizadas por produtor ou importador:
PIS: R$ 8,57
Cofins: R$ 39,43
Vendas realizadas por distribuidor:
PIS: zero
Cofins: zero
E, para a gasolina:
PIS: R$ 46,58
Cofins: R$ 215,02
Há quem pretenda, no entanto — sem atentar para a literalidade do artigo 150, inciso I, da Carta —, que a legalidade tributária vedaria também a redução administrativa de tributo, ainda que não consubstanciadora de benefício fiscal. Essa é linha do parecer da Procuradoria-Geral da República no RE 1.043.313/RS, que versa o aumento por decreto do PIS e da Cofins incidentes sobre receitas financeiras.
Para alguns defensores dessa tese, a anulação dos decretos majoradores fulminaria também os redutores, restaurando-se para todo o período as alíquotas fixadas nas leis em exame. Ainda que a premissa fosse juridicamente correta, a conclusão jamais poderia se impor. É que a jurisdição se exerce nos limites dos pedidos formulados pelas partes (CPC, artigo 141), e nenhuma empresa irá a juízo pedir a inaplicação dos decretos benéficos. Tampouco a União a predicará, seja porque não há cogitar de reconvenção em ação antiexacional, seja porque se limitou a revogá-los, não os tendo anulado por vício, como seria seu dever caso o entendesse existente, a teor do artigo 53 da Lei 9.784/99.
Situação análoga foi enfrentada pelo Pleno do STF no RMS 25.476/DF (relator para o acórdão ministro Marco Aurélio, DJe 26/5/2014).
Tratava-se de questionar a Portaria MPAS 1.135/2001, que majorou a base de cálculo da contribuição previdenciária do transportador autônomo. Ocorre que a regra anterior (mais benéfica) fora fixada pelo Decreto 3.048/99 — o que também suscitava dúvidas a respeito de sua constitucionalidade.
Vingou a tese de que, havendo múltiplas inconstitucionalidades, deve-se conceder a segurança quando o status anterior ao ato impugnado for benéfico ao contribuinte. No dizer do ministro Sepúlveda Pertence, “a questão é processual”, não cabendo “indagar da situação anterior da impetrante para, eventualmente, piorar-lhe a situação”.
Observe-se, por fim, que o fato de a submissão às alíquotas fixas por vezes ser opcional não infirma as conclusões aqui expostas, pois também os regimes alternativos devem obediência à Constituição — especialmente às garantias magnas do cidadão, como a legalidade tributária —, que não é um repertório de normas supletivas, passíveis de preterição voluntária por parte do Estado.
3. Análise quanto à anterioridade
Em princípio, o PIS e a Cofins submetem-se apenas à espera nonagesimal (CF, artigo 195, parágrafo 6º), garantia mínima de que o Decreto 9.101/2017 — que nem isso respeita — não poderia se alforriar.
Na tributação fixa opcional dos combustíveis, contudo, há lugar para a anterioridade anual, não por imposição constitucional — que não existe —, mas, por autolimitação do próprio legislador, que estabeleceu a anualidade, a irretratabilidade e a prorrogação automática da adesão do contribuinte (Lei 9.718/98, artigo 5º, parágrafos 5º e 7º; Lei 10.865.2004, artigo 23, parágrafos 1º, 3º e 4º).
As promessas do Estado sobre a duração de um regime jurídico devem ser mantidas, tanto mais que sequer estava obrigado a fazê-las e que, optando pelo silêncio, não enseja direito adquirido, segundo a jurisprudência tradicional na matéria. Confiança e estabilidade são valores jurídicos centrais do Direito. Em suma, a lei impede a modificação, por qualquer das partes, da sistemática conjuntamente definida (o Estado, ao autorizar a opção; o contribuinte, ao exercê-la), não sendo dado a nenhum dos lados romper com a palavra empenhada.
Aplicam-se à hipótese, mutatis mutandis, as decisões tomadas contra a reoneração imediata da folha de pagamentos, baseadas na previsão legal (logo, por norma de igual hierarquia) de que a desoneração duraria por um prazo certo. Nas palavras certeiras do desembargador Federal Amaury Chaves de Athayde, do TRF da 4ª Região, “a alteração abrupta da forma de recolhimento (...), ainda que não viole a anterioridade mitigada, representa (...) flagrante inobservância à segurança jurídica, à proteção da confiança legítima e à boa-fé objetiva do contribuinte (...)” (Ag. 5031249-36.2017.404.0000, j. em 19/6/2017).
Na mesma linha foi o desembargador Federal Souza Ribeiro, do TRF da 3ª Região, revelando justa preocupação com o contribuinte que, “na crença da irretratabilidade da escolha, planejou suas atividades econômicas frente ao ônus tributário esperado (...)” (Ag. 5011263-26.2017.4.03.0000, j. em 11/7/2017).
Especificamente quanto ao álcool, tem-se ainda que o Decreto 6.753/2008, que continua a ser o diploma básico na matéria[4], dispõe que o índice de redução das alíquotas fixas de PIS/Cofins poderá ser alterado até o fim de outubro de cada ano, “alcançando os fatos geradores que ocorrerem a partir de 1º de janeiro do ano subsequente ao de sua alteração” (artigo 4º).
Nem cabe alegar, contra a aplicação da anterioridade — ou, pelo menos, da espera nonagesimal — que não teria havido majoração tributária, mas simples extinção de um coeficiente de redução. O jeu de mots semântico se esmaece ante o simples cotejo dos valores a pagar antes e depois do novo decreto, tanto mais que o intuito da vacatio constitucional é dar ao contribuinte tempo para se adaptar à majoração tributária que se lhe imporá, qualquer que seja o nome por que atenda (verba non mutant substantiam rei).
Evidente ainda que não se está a tratar de benefício fiscal, pois as reduções de alíquota foram desvinculadas de qualquer contrapartida. O tema, aliás, perdeu relevância ante a jurisprudência atual do STF no sentido de que o princípio da anterioridade anual e/ou nonagesimal se impõe também na revogação de incentivo tributário (1ª Turma, RE 564.225 AgR/RS, relator ministro Marco Aurélio, DJe 18/11/2014).
4. Conclusão
Do exposto, concluímos que o contribuinte tem direito de pagar o PIS/Cofins fixos sobre os combustíveis com base nas menores alíquotas praticadas desde a entrada em vigor das leis 9.718/98 e 10.865/2004, bem como de, após o trânsito em julgado de sua ação, compensar com débitos de tributos federais os montantes que recolheu a maior no passado (diferença entre a alíquota fixa considerada para pagamento e a menor alíquota fixa que tenha vigorado até então).
Sucessivamente, tem direito pagar os tributos até 31/12/2017 (ou, pelo menos, até 18/10/2017[5]) com base nas alíquotas fixas vigentes antes do Decreto 9.101/2017.
Uma palavra final sobre a Suspensão de Liminar e Antecipação de Tutela (Lei 8.437/92, artigo 4º; Lei 12.016/2009, artigo 15), mecanismo que ofende a separação dos Poderes, por dar ao Judiciário a faculdade de decidir segundo juízos de conveniência e oportunidade, e resulta na submissão de apenas uma das partes ao Direito material e a o iter recursal. Para não ser inconstitucional tout court, o instrumento deve ser usado apenas em situações raríssimas, contra decisões teratológicas em seus fundamentos e desastrosas em seus efeitos e cujo combate pelas vias ordinárias se mostre estéril ou demorado demais.
Esse decerto não é o caso de liminares estribadas em escorreita interpretação constitucional, em especial quando se limitam a impedir a futura cobrança de tributo novo ou recentemente majorado, sem contribuir para o aumento do déficit das contas públicas.
[1] Todos os valores referem-se ao metro cúbico de combustível.
[2] Teto depois majorado para R$ 150 pelo artigo 11 da Lei 12.514/2011.
[3] Acessível em www.youtube.com/watch?v=CHzC0kWyMk4 — a partir de 2h17min.
[4] Os decretos posteriores listados no item 1 limitaram-se a alterar a sua redação em pontos específicos.
[5] Esse é o único prazo aplicável aos derivados de petróleo oriundos do exterior, para os quais o regime das alíquotas fixas é obrigatório, não havendo falar em opção anual.
por Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.
Fonte: Conjur
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