sábado, 5 de agosto de 2017

Fusões e aquisições: insights sobre a atuação do Cade

Tem-se ouvido – e lido – recentemente na mídia especializada comentários de que o Cade tem sido ultimamente mais duro em suas decisões envolvendo atos de concentração, tese que, supostamente, encontraria respaldo na opinião de quem milita na autarquia de maneira mais constante. Independentemente de ser essa uma percepção genuína ou mera retórica de quem gostaria de uma autoridade antitruste mais leniente, tais comentários sugerem que estaria ocorrendo uma mudança de curso – deliberada – na execução da política de análise de fusões e aquisições da autarquia.

Para avaliar o quanto de realidade tais afirmações carregam, é preciso, primeiramente, avaliar se há, de fato, evidências que possam minimamente corroborar o argumento de que o Cade tem sido mais rigoroso em suas análises. Ademais, é preciso também entender quais fatores poderiam explicar eventual trajetória de endurecimento na aplicação de Lei 12.529 em relação às fusões e aquisições, já que não houve alterações significativas, seja em termos normativos, seja do instrumental analítico utilizado, que pudessem justificar uma mudança de rumo em direção a um maior nível de intervencionismo.

Primeiramente, vamos aos números. Desde a entrada em vigor da Lei 12.529 no final de maio de 2012, já foram apresentados ao Cade 1775 atos de concentração[1]. Desses, 36 foram impugnados ao Tribunal e 30 declarados complexos. Ou seja, o Cade impugnou aproximadamente 2% e declarou complexidade em 1,5% das operações notificadas desde a entrada em vigor da nova lei. Para avaliar a trajetória de impugnações e declarações de complexidade ao longo desses 5 anos, apresento o quadro abaixo:


201220132014201520162017[2]
Impugnações[3]21,4%41%102,3%71,6%92,2%42,236
Complexidade[4]10,7%41%51,15%51,2%82%73,930
Total de casos1413794334214011771775
Não é possível, a partir desses números se tirar grandes conclusões, pois (i) algumas operações são impugnadas por questões simples, como cláusulas de não concorrência – o que tem diminuído nos últimos anos; (ii) algumas empresas têm optado por desistir de seguir a operação após a sinalização de que a autarquia pode reprovar a operação, o que subestima o número de operações que poderiam resultar em reprovação; (iii) em certos casos as empresas têm se antecipado e resolvido privadamente com clientes relevantes questões que potencialmente poderiam levar a autoridade antitruste a impugnação da operação ou a aplicação de remédios.

Assim, a análise dos números acima não é um bom indicador de se a autoridade está sendo mais ou menos rigorosa na avaliação dos casos submetidos ao órgão. O que ocorre é que há, de fato, um conjunto de fatores que tem permitido o CADE atuar com mais atenção nos diversos mercados.

O primeiro fator é estrutural, e, por mais óbvio que possa parecer, às vezes é preciso chamar a atenção para o óbvio. À medida que os anos passam, e novas e sequenciais operações de fusões e aquisições são concretizadas, é natural que os mercados apresentem índices crescentes de concentração econômica – desconsiderando as operações que promovem desconcentração ou desverticalização econômica, pois constituem minoria.

Para ilustrar o ponto, apresento exemplos. A recente operação entre as empresas de educação Kroton e Estácio, reprovada pelo Cade em junho, e que ao longo de toda a análise fomentou comentários a respeito da suposta maior rigidez do Conselho, é um exemplo claro de como uma narrativa é construída sem qualquer fundamento, inclusive estatístico (uma operação isoladamente não deveria levar a conclusões gerais).

O mercado de educação superior no Brasil vem sendo alvo de consolidação nos últimos anos, com alguns poucos players na liderança desse movimento. Conforme mencionado no Parecer da Superintendência-Geral do Cade, das 62 operações de fusões e aquisições catalogadas pelo Departamento de Estudos Econômicos do Cade e analisadas entre 2001 e 2015, 20 foram empreendidas pela Kroton e 19 pela Estácio. Ou seja, as requerentes naquela operação foram responsáveis por 63% de todas as operações analisadas pelo Cade no mercado educacional.  Além de serem as líderes nesse movimento de consolidação, ambas passaram por operações recentes e de grande porte. A Kroton adquiriu a Anhanguera e a Estácio adquiriu a Uniseb, em 2013. Já naquela época, o Cade havia sinalizado suas preocupações em relação aos impactos concorrenciais do aumento do nível de concentração no mercado, inclusive com a adoção de remédios estruturais no caso Kroton – Anhanguera. Não se pode argumentar desconhecimento desses fatos para agora alegar surpresa na decisão recente do Conselho. Sinais – claros – de que a concentração no setor havia chegado a patamares preocupantes foram dados.

O mesmo argumento acima pode ser estendido para outros setores da economia que foram objeto de operações de consolidação em anos anteriores, aumentando o nível de concentração geral dos mercados: financeiro, saúde, combustíveis, telecomunicações, dentre outros. Ressalta-se que isso não quer dizer que nesses mercados novas operações necessariamente serão alvo de preocupações concorrenciais, mas tão somente que, dado o aumento da concentração geral, a probabilidade disso ocorrer é maior, e aumenta a cada nova operação. Uma intervenção mais incisiva, com a aplicação de um remédio estrutural ou mesmo uma reprovação é a melhor maneira de se remediar uma operação problemática sob o ponto de vista concorrencial e também da autoridade sinalizar que a concentração em determinado mercado ou em poder de determinado player chegou a níveis insustentáveis, como ocorreu no caso supracitado, dando previsibilidade ao mercado. Se esse sinal não for dado, as empresas podem continuar desafiando a autoridade com operações prejudiciais ao ambiente competitivo.

Um segundo argumento que trago tem a ver com a estrutura organizacional do Cade e, mais especificamente, da SG. Quando da criação dos grupos de trabalho para preparar a transição da antiga Lei 8.884 para a nova Lei 12.529, muito se discutiu qual deveria ser a estrutura da Superintendência-Geral. Após muita pesquisa e conversas no grupo de trabalho responsável e com o Conselho, chegou-se à conclusão que deveríamos privilegiar a expertise em mercados, segmentando a análise de atos de concentração por coordenações gerais setoriais. O objetivo era claro: dar condições para que houvesse o aprofundamento no conhecimento dos mercados, gerando ganhos de escopo entre as operações para reduzir um dos principais problemas relacionados à análise de fusões e aquisições: a assimetria informacional entre a autoridade – que analisa – e as partes que submetem suas operações.

Essa assimetria informacional fazia com que os técnicos da autoridade iniciassem a análise das operações em desvantagem, tendo que iniciar do zero, muitas vezes, a compreensão dos mercados analisados. Situação agravada, ainda, pelo formato de análise a posteriori com notificações relativamente pobres em quantidade de informação. A divisão das coordenações por mercados permitiu, então, que as operações de um determinado mercado fossem analisadas pela mesma equipe. Ao longo do tempo, em um fluxo de repetição dos mercados e retroalimentação – aprendizado com operações passadas – a assimetria informacional reduziu: em muitos casos a autoridade não parte do zero, podendo, ao longo da análise de novas operações, se preocupar não apenas em compreender minimamente o mercado objeto de análise, mas aprofundar em minúcias que podem, eventualmente, implicar a detecção de novos riscos ao ambiente competitivo. Em suma, a assimetria informacional não é mais uma vantagem tão grande das partes e advogados.

Por fim, trago um terceiro argumento que pode contribuir para a percepção de endurecimento da política antitruste. Assim como aprendemos mais a respeito dos mercados que analisamos, também aprendemos, com a experiência pretérita, o que, em termos de remédios, funciona e o que não funciona. Ainda há um longo caminho a percorrer, mas, sem dúvida, o processo de retroalimentação também contribui para a elaboração de remédios mais efetivos e, eventualmente, a rejeição de remédios que, pela experiência, são insuficientes, pouco efetivos ou impossíveis de se operacionalizar ou acompanhar o cumprimento. Talvez esse seja, na minha opinião, o ponto que ainda precisamos mais avançar, não obstante, já podemos analisar o passado e tirar conclusões relevantes para consideração em casos futuros.

Como já salientado, os números apresentados no início deste texto são pouco relevantes, em termos estatísticos, para que se extraia deles qualquer conclusão. Os argumentos elencados acima são, ao meu ver, mais realistas e podem explicar a percepção de que as análises têm sido mais duras: talvez até estejam sendo, mas as condições estruturais dos mercados e o processo de aprendizado constante da autoridade explicam melhor essa história do que a sugestão de endurecimento da política antitruste.

Afinal, a reprovação de atos de concentração faz parte do leque de opções da autoridade ao concluir a análise dos casos submetidos ao órgão. Isso ocorre no Brasil e em todas as demais jurisdições. Não faz sentido uma autoridade antitruste que, em sede de análise preventiva, não reprove ou não aplique remédios amargos para operações com riscos à concorrência. Caso contrário, não faz sentido a própria existência do controle preventivo.

O autor fala em nome próprio e não em nome do Cade.
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[1] Número atualizado em 12 de julho de 2017.

[2] Até 12 de julho de 2017.

[3] Por ano do Despacho SG que impugnou o AC.

[4] Por ano de notificação do AC.

Marcelo Nunes de Oliveira - Coordenador-Geral de Antitruste do Cade

Fonte: Jota.info/

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