Até o final deste mês de agosto esgota-se o prazo do Poder Executivo Federal para encaminhamento do projeto de lei orçamentária anual ao Poder Legislativo, para deliberação e aprovação parlamentar, a fim de que seja devolvido e sancionado até o encerramento da sessão legislativa e tenha a sua imprescindível vigência no primeiro dia do próximo ano.
Mas, infelizmente, na prática brasileira, os valores republicano e democrático no processo orçamentário não se têm materializado. Não obstante os encômios à democracia fiscal orçamentária, num país em que prevalece a mecânica do presidencialismo de coalizão, a legítima participação dos representantes das unidades federativas no Poder Legislativo durante o processo de elaboração e aprovação das leis orçamentárias nem sempre se faz adequada, sobretudo por decorrência de pressões pela inclusão de dotação orçamentária destinada a atender às bases eleitorais por meio das emendas parlamentares. Essa situação, que se repete não apenas na União, mas também em diversos Estados e municípios, em muitas circunstâncias acarreta um aumento de gastos e desequilíbrio fiscal.
Um exemplo concreto disto foi a aprovação, no dia 13 de julho, em votação simbólica e às pressas para permitir o início do recesso do legislativo federal, do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) da União para o ano de 2018 (Projeto de Lei nº 01/2017-CN), prevendo um déficit de mais de R$ 130 bilhões. Pode-se também citar a tão noticiada “troca de favores”, através da liberação de verbas orçamentárias para emendas parlamentares, na votação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) que buscava a rejeição do parecer sobre a autorização da Câmara de Deputados para que a denúncia da Procuradoria-Geral da República contra o Presidente da República fosse julgada pelo Supremo Tribunal Federal.
E isso tudo dentro de um contexto de penúria fiscal, em que o orçamento federal do ano sofre elevado grau de contingenciamento. Apenas para ilustrar a dimensão dos cortes realizados e seus reflexos em algumas importantes áreas que são gravemente atingidas, temos: a) na saúde, mais de R$ 7 bilhões contingenciados, prejudicando o funcionamento de diversos hospitais federais; b) na educação, com quase R$ 5 bilhões cortados, afetando as universidades federais e centros de pesquisa; c) na Polícia Federal, com mais de R$ 2 bilhões contingenciados, afetando a emissão de passaportes e o funcionamento da polícia rodoviária federal; d) na defesa, com cerca de R$ 6 bilhões represados do seu orçamento, prejudicando o monitoramento de fronteiras; e) no Ministério das Cidades, com mais de R$ 6 bilhões bloqueados, impedindo a execução dos programas de construção de abrigos para população de rua.
Não se pode negar que as emendas parlamentares fazem parte legítima do processo orçamentário. Podem ser apresentadas ao projeto de lei orçamentária, configurando propostas formuladas por parlamentares com o objetivo de alterar o projeto original, de modo a influenciar na destinação dos gastos públicos em função de suas ideologias e compromissos políticos, suprimindo, modificando ou adicionando determinadas rubricas orçamentárias. Todavia, tais propostas deveriam contemplar um verdadeiro interesse republicano.
Prevalece, contudo, em nosso regime presidencialista de coalizão, a concorrência do jogo político dentro do processo de aprovação e execução das leis orçamentárias, gerando um nefasto desequilíbrio fiscal e uma evidente falta de preponderância das despesas que realmente são prioritárias, a partir da persistência de interesses individuais em detrimento do estabelecimento de verdadeiros programas e planos de políticas públicas.
É importante lembrar que, segundo a Constituição, as emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem somente podem ser aprovadas caso: I – sejam compatíveis com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias; II – indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa, excluídas as que incidam sobre: a) dotações para pessoal e seus encargos; b) serviço da dívida; c) transferências tributárias constitucionais para Estados, Municípios e Distrito Federal; ou III – sejam relacionadas: a) com a correção de erros ou omissões; ou b) com os dispositivos do texto do projeto de lei. (§§ 2º e 3º do art. 166, Constituição).
As origens do orçamento público como documento democrático e representativo da vontade do povo na alocação de recursos remontam à Magna Carta inglesa de 1215, na qual se vislumbra o embrião do processo de transmutação do modelo de regimes absolutistas para o Estado de Direito, em que as receitas e os gastos do governante passam a ser definidos pelo Parlamento. Historicamente, o controle do Parlamento sobre as finanças do governante se deu primeiramente na sua face arrecadatória (tributação) e, só posteriormente, foi estendido para a orçamentária (despesa).
Porém, somente com o desenvolvimento do constitucionalismo e o controle do Poder Legislativo sobre o Executivo, e com o advento das instituições de governo representativo, é que se inicia a evolução do sistema orçamentário no Velho Mundo, modelo que se espraia para a grande maioria das nações. Remonta, assim, ao advento do controle do Parlamento sobre a Coroa, a partir da insatisfação popular sobre as escolhas do rei. Por outro lado, há quem sustente, em postura crítica, que o controle da despesa pública praticado através da votação do orçamento surge, na realidade, como instrumento de interferência política da classe dominante e não como mecanismo propriamente popular e democrático.
Não obstante, percebe-se que o orçamento público, ao longo dos séculos, transformou-se em um instrumento de relacionamento político entre o governante e o Parlamento nos Estados de Direito modernos. Parte-se da concepção de que a estrutura organizatória-funcional dos poderes financeiros passa a conceber, para além da mera autorização arrecadatória, a proposição orçamentária da despesa pública, que embora esteja inicialmente em mãos do governante, deve também ser submetida ao Parlamento – formado por representantes dos cidadãos – para autorização da execução de gastos na forma de lei.
Apesar disso, vivemos em um contexto de “desvalorização orçamentária”, sobretudo pelo déficit decorrente de uma inefetiva participação parlamentar. A isso, soma-se a relativização dos efeitos materiais das leis orçamentárias, mormente pela influência da teoria do jurista germânico Paul Laband (século XIX) que conferiu à lei orçamentária natureza de mera lei formal. Este modo de ver as coisas, infelizmente, ainda influencia e causa miopia em muitos atores das finanças públicas no Brasil nos dias atuais, o que, a nosso ver, tende ao retrocesso de todo o processo evolutivo da seara fiscal, fato que merece uma releitura a partir da consideração de todo o conjunto de nossos preceitos constitucionais de natureza orçamentária.
Se, por um lado, devemos ter em mente que não se pode conferir poderes ilimitados ao Poder Executivo para elaborar e executar o orçamento público conforme seus interesses e conveniência, contingenciando, remanejando ou cancelando despesas, de maneira a monopolizar ilegítima e artificialmente o processo orçamentário, por outro, não se pode reduzir o papel do Poder Legislativo a mero “carimbador” no processo orçamentário, e nem este servir para realizar apenas certos interesses individuais, fato que não se coaduna com o modelo republicano brasileiro nem com a dignidade do exercício da função legiferante própria daquele Poder.
Não podemos olvidar que o cidadão é parte diretamente interessada e ativa nas questões orçamentárias. Afinal, no Estado contemporâneo, o cidadão possui não só uma gama de deveres, mas também de direitos fiscais, que permitem a sua participação, ainda que de maneira indireta, na formulação das políticas públicas, passando pelo dispêndio dos recursos, até o controle da execução orçamentária.
E, ao final, para garantir a efetividade dos direitos humanos e sociais, e materializá-los em bens e serviços oferecidos à coletividade, o Estado dependerá de uma atividade financeira conduzida em observância aos preceitos e normas constitucionais das finanças públicas, tendo o orçamento público papel capital nesta tarefa, este que é um relevante instrumento de planejamento, gestão e controle financeiro, ao contemplar a participação conjunta dos Poderes Executivo e Legislativo, tanto na sua elaboração e aprovação, quanto no controle da sua execução, configurando um instituto fundamental no Estado Democrático de Direito.
Marcus Abraham - Desembargador Federal no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Doutor em Direito Público (UERJ), Professor de Direito Financeiro e Tributário da UERJ, autor de diversos livros, dentre eles o CURSO DE DIREITO FINANCEIRO BRASILEIRO, 4ª edição, Editora Forense, 2017 e LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL COMENTADA, 2ª edição, Editora Forense, 2017.
Fonte: Jota.info/
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