sábado, 5 de agosto de 2017

Aumento da tributação sobre combustíveis e a retórica do semipresidencialismo

Quando iniciamos as discussões para a preparação deste texto, não imaginávamos a proporção do problema que o aumento, por decreto, da tributação sobre os combustíveis assumiria na presente semana. Com efeito, temos agora uma ADI (5.748) em curso com o prazo aberto para a Presidência da República prestar informações para subsidiar o julgamento do pedido de liminar formulado pelo autor da ação e, na tarde da quinta-feira (4/8), a decisão de uma vara da Justiça Federal da cidade de Macaé (RJ) que concedeu liminar em nova ação popular para suspender os efeitos do decreto presidencial que efetuou a majoração do tributo. Sem embargo dos inúmeros questionamentos que podem ser articulados a respeito da possibilidade de utilização da ação popular como sucedâneo de ADI, fato é que o problema instalado pela edição do decreto parece que está longe de terminar.

Nosso argumento, de todo modo, parte do caso específico do referido decreto, mas quer colocar como questão para reflexão um problema de maiores dimensões, que não diz respeito a fatos episódicos e momentâneos apenas. Trata-se da delicada relação que se estabelece entre o Executivo e o Legislativo no Direito brasileiro pós-1988. Mas, antes de chegar a ele, é importante situar o debate.

Como amplamente noticiado, o Decreto 9.101, de 20/7/2017, com eficácia imediata, alterou a tributação do PIS e da Cofins incidentes sobre a importação e a comercialização de gasolina, óleo diesel, álcool etc., a gerar, na prática, aumento dessas contribuições cujo impacto foi sentido, no limite, pelos consumidores de combustíveis.

Há diversos níveis de análise que se mostram possíveis sobre o tema. O mais evidente, por certo, diz respeito a problemas relativos ao Direito Tributário e ao Direito Financeiro. Mas, para além, aumentando um pouco a esfera de observação, é possível perceber que existe também uma questão — talvez a mais fundamental de todas — de Direito Constitucional.

Na verdade, em um Estado Constitucional, edificado sobre alguma concepção de divisão de Poderes, toda vez que um ato do governo se mostrar potencialmente ofensivo aos direitos fundamentais de seus cidadãos, faz-se imperioso que alguma engrenagem constitucional seja acionada para avaliar a ação e, se for o caso, frear possíveis excessos cometidos pelos agentes públicos. Esse mecanismo todos nós conhecemos pela expressão, até certo ponto lacônica, “sistema de freios e contrapesos”.

Nesse contexto, o problema constitucional mencionado linhas acima pode ser desdobrado em duas questões: a primeira, pode o chefe do Poder Executivo, por decreto, aumentar tributos como o fez em relação ao PIS e a Cofins? A segunda, caso possível, esse aumento pode ter eficácia imediata, ou seja, pode ocorrer, assim, do dia para a noite?

Uma consideração importante, pensando em algo como “unidade da Constituição”, consiste em frisar que nosso sistema constitucional apostou em um presidencialismo de tipo imperial e incrementou o modelo (não necessariamente para o bem), ao atribuir ao presidente da República competência normativa direta, por meio da possibilidade de adoção de medidas provisórias. Claro que, no caso, existe uma tentativa constitucional de equilibrar a equação ao condicionar a validade da medida à sua aprovação pelo Congresso Nacional, naquilo que Pontes de Miranda nomeava como “uma lei sob condição resolutiva”.

Sem embargo, a relação entre o Legislativo e o Executivo no Brasil é tão complicada, por causa de nosso presidencialismo de coalizão, que levou o poder de reforma a alterar, por meio da Emenda Constitucional 32/2001, o artigo 62 da Constituição Federal (que regulamenta a edição de medidas provisórias) porque, entre outras coisas, havia um diagnóstico consensual de que o uso e abuso das medidas provisórias como instrumento de governo havia desequilibrado a relação entre o Executivo e o Legislativo, criando uma fissura em nosso modelo de freios e contrapesos. Entre as várias alterações, foi incluído no referido dispositivo um parágrafo 2º que determina, para as hipóteses em que a medida provisória pode ser articulada para majorar impostos, a necessidade de observação da anterioridade nonagesimal. Claro que os amantes da semântica tributária poderão dizer que impostos e contribuições são classes distintas de tributos e que a regra do parágrafo 2º do artigo aplicar-se-ia apenas para os impostos, e não para as contribuições. Porém, o ponto de reflexão que aqui se propõe passa exatamente por examinar as possibilidades, digamos, heurísticas que podem ser projetadas a partir dessa questão. Note-se que a regra mencionada, na prática, transforma a medida provisória em uma espécie de projeto de lei de inciativa do presidente da República com procedimento sumaríssimo.

Mas, por que, afinal, isso é assim?

Ora, pensando em uma lógica de separação de Poderes e de Constituição equilibrada, trata-se de colocar uma possibilidade de contrapeso contra um ato imperial do presidente da República que pode implicar ofensa ao direito dos contribuintes. Por isso que, embora não se aplique diretamente à situação do Decreto 9.101/17, essa previsão sobre as medidas provisórias deveria jogar luz sobre um problema que, aparentemente, está ocultado na discussão que se travou até aqui. Afinal, pode o presidente, por um ato imperial e isolado (vale dizer, sem a chance de se estabelecer uma ação de outro poder como contrapeso), aumentar um tributo que incrementa a mordida do Estado no bolso do contribuinte?

Ademais, é de se anotar que a Constituição de 1988 estabelece que somente por lei a União Federal, os estados, os municípios e o DF poderão exigir ou aumentar tributo (artigo 150, I,) podendo-se concluir, portanto, ser esta uma limitação ao exercício da atividade tributária do Estado (que, em certa medida, restringe os direitos individuais de liberdade e propriedade, artigo 5°, caput e XXII), bem como que o contribuinte somente a ela se submete com o seu consentimento, o qual, numa democracia indireta como a nossa, expressa-se, em regra, pela manifestação do Poder Legislativo, via lei.

Alega-se, entretanto, que não teria havido propriamente aumento de tributo sem lei, mas apenas a fixação e alteração dos coeficientes para as alíquotas de PIS e Cofins pelo chefe do Poder Executivo, algo possível ante autorização das leis 10.865/2004 (artigo 23, parágrafo 5°) e 9.718/98 (artigo 5°, parágrafo 8°). Por esse argumento, portanto, tendo a lei conferido essa prerrogativa ao Poder Executivo, válida a edição de decreto.

De todo modo, seria de se indagar: pode o legislador abrir mão de competência a ele conferida pela Constituição de 1988 para salvaguarda do cidadão-contribuinte, delegando-a ao Poder Executivo, o qual, pelo mandatário da ocasião, por decreto, poderá aumentar a carga tributária ao seu talante em detrimento dos direitos individuais? Dito de outro modo, pode-se delegar o que se recebeu por delegação? A vingar esse raciocínio, o que mais poderá o Poder Legislativo delegar ao Poder Executivo? E mais, para que servirá um Poder Legislativo que delega a competência de legislar? E nesse extremo, poder-se-á falar, ainda, em Estado Democrático e separação de Poderes?

Note-se que tal possibilidade seria censurada, inclusive, pela secular “doutrina Marshall”, tão festejada no Brasil por nossos constitucionalistas. É que uma das conclusões possíveis do clássico aresto de John Marshall no emblemático julgamento Marbury v. Madson reza que não é lícito para a lei ordinária alterar a Constituição. Vale dizer, ao Congresso Nacional é vedada a possibilidade de, a pretexto de regulamentar a Constituição, modificar o seu conteúdo, especialmente no que tange ao regime de competências por ela estabelecido. Do contrário, os postulados de supremacia e rigidez constitucionais seriam apenas palavras ao vento, já que o legislador ordinário poderia alterar os conteúdos constitucionais com o quórum e o procedimento mais flexível que se observa para modificação da lei ordinária. Assim, ainda que fosse possível admitir a aplicação das leis 10.865/2004 e 9.718/99 para a hipótese vertente, seriam elas inconstitucionais pelo menos com relação aos dispositivos que autorizam a manipulação imperial pelo executivo das alíquotas de PIS e Cofins, uma vez que tal competência estaria sendo criada ou alterada pela lei ordinária, e não por emenda constitucional.

Não se desconhece, por outro lado, que a própria Constituição de 1988 prevê que o chefe do Poder Executivo poderá levar à publicidade leis delegadas (artigo 59, IV); no entanto, antes ele deverá solicitar a delegação ao Poder Legislativo, o qual especificará o seu conteúdo e os termos do seu exercício, não podendo versar sobre direitos individuais (artigo 68, parágrafo 1°, II, e parágrafo 2°). Vale dizer: não se pode cogitar aqui de um “cheque em branco” passado pelo Poder Legislativo ao Poder Executivo.

Aliás, é lição comezinha em Direito Constitucional que a delegação é admitida excepcionalmente, estabelecendo o Poder Legislativo os limites à atuação do Poder Executivo, que, no entanto, não poderá atuar nas matérias expressamente resguardadas pela Constituição de 1988; dentre elas à relativa aos direitos individuais, tais como se afiguram os de caráter tributário (STF, ADI 939).

Ao Poder Legislativo compete, inclusive, segundo a Constituição de 1988, sustar os atos normativos expedidos pelo Poder Executivo quando esses exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa, nas matérias que a comportem (artigo 49, V). Deve ter algum sentido a Constituição de 1988 ter elencado como Poderes independentes e harmônicos entre si, nesta ordem, o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário (artigo 2°).

Uma última nota se mostra relevante.

Ainda que se invocasse o artigo 177, parágrafo 4°, II, da Constituição de 1988 como forma de “fugir” do regramento próprio às contribuições sociais, entendendo tratar-se de contribuição sobre a intervenção no domínio econômico relativamente à importação e comercialização de petróleo e seus derivados, como também de álcool (o que não se mostra correto, pois a Cide-Combustível é tratada pela Lei 10.336/01), forçoso seria afastá-lo porquanto a restrição feita pelo preceito trazido com a EC 33/01 mostra-se írrita.

E isso porque a mitigação à legalidade e à anterioridade permitida pela EC 33/01 é inconstitucional, pois intolerável que emenda à Constituição de 1988 amesquinhe os direitos individuais como os são os de caráter tributário (STF, ADI 939). Ademais, tendo em conta o necessário contrapeso que deve ser articulado em matéria de tributos, seria de se cogitar, igualmente, uma violação à cláusula pétrea de separação de Poderes, uma vez que aumenta perigosamente o nível dos poderes “imperiais” do Executivo.

Seria mesmo algo a se pensar: uma emenda à Constituição estabelece a possibilidade de o chefe do Poder Executivo reduzir e restabelecer as alíquotas de determinado tributo, bem como acrescenta hipótese à exceção de cumprimento da anterioridade tributária; posteriormente, o Poder Legislativo delega ao Poder Executivo a competência para que este disponha sobre tal e qual tributo, por decreto, podendo imprimir-lhe, inclusive, efeitos imediatos, prática que, ao fim e ao cabo, exacerbará a carga fiscal já suportada pelo cidadão-contribuinte, que, ademais, pouco a vê a ele retornando em forma de incremento e melhoria das políticas públicas.

Representaria, efetivamente, uma burla aos direitos individuais assegurados ao cidadão-contribuinte pela Constituição de 1988 por meio do exercício do poder de reforma, que, em última análise, muitas vezes será feito pelos mesmos que “delegarão”, depois, a competência legislativa ao Poder Executivo.

A matéria tratada, ademais, já provoca ruído sobre sua compatibilidade com a Constituição de 1988 podendo-se citar a ADI 5.277, proposta em 2015, na qual se impugna a previsão da Lei 9.718/98 (artigo 5°, parágrafos 8°, 9°, 10 e 11, que trata desta delegação do Poder Legislativo ao Poder Executivo, presente os coeficientes das alíquotas do PIS e da Cofins), como também o RE 986.296, com repercussão geral reconhecida em 2017, pelo qual se discute a higidez do Decreto 8.426, de 1°/4/2015, que, a exemplo do Decreto 9.101, de 20/7/2017, alterou a tributação pelo PIS e pela Cofins, respeitando, no entanto, a anterioridade nonagesimal. Ambos a aguardar pronunciamento do Supremo Tribunal Federal.

A grande ironia de tudo isso é que o presidente da República jacta-se ao dizer que lidera um governo semipresidencialista. De plano, seria de admoestar-se: uma governo semipresidencialista é um governo inconstitucional, já que o sistema de governo previsto pela Constituição de 1988 é outro: o presidencialismo. Mas, vá lá, sejamos benevolentes e aceitemos que, em pronunciamentos como este, o presidente esteja fazendo uso de uma licença poética. O curioso é que, ainda assim, a carga aqui seria mais retórica do que a expressão de uma convicção efetiva. O caso do Decreto 9.101/17 escancara isso: não há governança compartilhada; apenas o velho — e perigoso — presidencialismo imperial. É como dizia Fernando Pessoa, pela boca de Álvaro de Campos: “Grandes são os desertos, minha alma. Grandes são os desertos”.

Rafael Tomaz de Oliveira é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp).

Thiago de Oliveira Vargas é advogado em Santa Catarina e mestre em Ciência Jurídica pela Univali.

Fonte: Conjur

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