Já não é novidade o Estado deslocar sua incapacidade em fiscalizar a atividade econômica para os próprios empresários. Ainda em 1998 as instituições financeiras tiveram que criar políticas de know your client, assumindo atividade investigativa que, a rigor, incumbiria às agências punitivas; a lista dos obrigados (pessoas que devem monitorar e reportar operações suspeitas no campo da lavagem de capitais) foi ampliada em 2012; logo em seguida, sobreveio a nova lei anticorrupção que desloca ao empresário o ônus de criar mecanismos internos de prevenção de práticas corruptas.
A Medida Provisória 685/2015 parece ser o último grito nessa matéria, na medida em que impõe ao contribuinte o dever de informar, até dia 30 de setembro de 2015,[1] "o conjunto de operações realizadas no ano-calendário anterior que envolva atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo" em três hipóteses: (i) não houver razões extratributárias relevantes para os atos ou negócios jurídicos; (ii) "a forma adotada não for a usual, utilizar-se de negócio jurídico indireto ou contiver cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico"; ou (iii) "tratar de atos ou negócios jurídicos específicos previstos em ato da Secretaria da Receita Federal do Brasil".
Grosso modo a legislação tributária impõe ao contribuinte o dever de escriturar operações (negócios, atos jurídicos etc.) e o dever de pagar o tributo devido (calculado com base nas operações previamente escrituradas), por meio de uma guia (essencialmente um documento que sintetiza as informações relevantes do tributo que se paga). Como um dever atrela-se ao outro, quem escritura falsamente, por exemplo, nota fiscal de determinado produto como se insumo fosse, também acaba por pagar menos ICMS, por exemplo, inverdade essa refletida na respectiva guia.
Cuida-se, no campo penal, de compreender-se a referida sonegação como um único fato (do ponto de vista jurídico), desdobrável em diversos atos (do ponto de vista físico) e, portanto, um só delito. Mais do que isso, todas as fraudes estão alinhadas à finalidade de pagar imposto a menor, razão pela qual o delito-fim absorve os delitos-meio. Essa ideia, aliás, foi incorporada no Direito Tributário, principalmente por conta da construção pretoriana (sobretudo do Carf).
Em síntese, nos delitos tributários materiais (notadamente artigo 1º da Lei 8.137/90 e 337-A do Código Penal), o contribuinte omite ou frauda uma operação, que impacta o an debeatur, que, por sua vez, se traduz em informação falsa constante de documento dirigido à autoridade tributária.
Com a nova obrigação trazida na referida Medida Provisória, cria-se uma nova possibilidade de omissão: a de declarar uma operação (planejamento tributário).[2]
Seria essa omissão dolosa uma daquelas fraudes constantes nos incisos do artigo 1º, da Lei 8.137/90?
O caput diz que "constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas", entre elas, no inciso I, "omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias".
A própria Medida Provisória traz uma interpretação do quanto signifique dita omissão: "o descumprimento do disposto no artigo 7º ou a ocorrência de alguma das situações previstas no artigo 11 caracteriza omissão dolosa do sujeito passivo com intuito de sonegação ou fraude e os tributos devidos serão cobrados acrescidos de juros de mora e da multa prevista no parágrafo 1º do artigo 44 da Lei 9.430, de 27 de dezembro de 1996".
Do ponto de vista do Direito Penal, porém, não me parece que a omissão em reportar planejamento tributário seja uma modalidade típica autônoma de fraude, essencialmente porque ela não é meio necessário (tampouco suficiente) para a consecução da sonegação.
Se o planejamento é fraudulento, então essa fraude terá deixado suas digitais em diversos momentos do procedimento de registro, informação e pagamento do tributo devido. A omissão em reportar não entra na relação de causalidade entre fraude e supressão ou redução de tributo devido; no máximo, deixa de ajudar o Estado a detectar logo o indesejado planejamento. Quem duvidar, use a velha regra da conditio sine qua non, cerne do artigo 13 do Código Penal: retirada a omissão em declarar o planejamento tributário, deixa de existir a supressão de tributo devido? Sem dúvida a resposta é negativa e, portanto, não é causa para o referido delito.
Cuida-se, então, de um reforço omissivo de fraude anteriormente praticada e, por não representar lesividade adicional ao bem jurídico protegido,[3] é pós-fato não punível (comumente chamado de exaurimento). Juarez Cirino dos Santos prefere chamar de pós-fato co-punido, porque "são punidos em conjunto com o fato principal".[4]
O que parece ser boa notícia pode, porém, esconder uma armadilha: se não é fraude-meio, pode ser considerado um delito autônomo?
A falha em declarar é, por vezes, um delito autônomo, como no caso artigo 22, parágrafo único, da Lei do Colarinho Branco, que pune com reclusão de dois a seis anos e multa a manutenção de depósitos no exterior não declarados à repartição federal competente.
Nos crimes tributários, porém, não há o crime de não declarar per se, porém o crime de pagar tributo a menor por meio, inclusive, de não-declaração, quando devida.
Há, porém, no Código Penal o famoso delito de falsidade ideológica, que pode ser cometido inclusive na modalidade omissiva: "omitir (...), em documento público (...), declaração que dele deveria constar (...), com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante".
Note-se que o tipo demanda a omissão em um documento, o que não se confunde com a não entrega de um documento. Na falsidade ideológica produz-se um documento, em que se omite informação que dele deveria constar; na não-declaração, não se perfaz a exigência típica.
De mais a mais, o tipo reclama um especial fim de agir: o de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.[5] No caso, o desejo criminoso daquele que dolosamente se omite no dever de declaração do planejamento tributário suspeito é o de pagar tributo a menor, de sorte que, insista-se, cuida-se de pós-fato não punível e não de delito autônomo.
E nem poderia ser diferente.
Admitindo-se que a omissão em declarar sirva a acobertar fato delitivo pretérito, então ela está protegida pelo princípio constitucional da não auto-incriminação (nemo tenetur se detegere).
Conclui-se, pois, que o curioso dever — cuja legalidade/constitucionalidade deixo aos experts — não deveria alcançar maiores efeitos no âmbito penal. A experiência mostra, contudo, que o poder punitivo aproveita cada brecha existente e a MP, se vingar, não será diferente.
[1] Obrigação que passa a se repetir anualmente, claro.
[2] Não se está a dizer que o planejamento tributário é em si, um problema. Ao revés, ao lado do meu colega de UERJ, Prof. Ricardo Lodi, entendo sonegação não se confunde com (mau) planejamento tributário, cf. http://www.conjur.com.br/2015-jul-23/ricardo-lodi-planejamento-tributario-mal-feito-nao-sonegar.
[3] Na palavras de Cezar Bitencourt: "o ato posterior somente será impune quando com segurança possa ser considerado como tal, isto é, seja um autêntico ato posterior e não uma ação autônoma executada em outra direção, que não se caracteriza somente quando praticado contra outra pessoa, mas pela natureza do fato praticado em relação à capacidade de absorção do fato anterior". Tratado de Direito Penal. Parte Geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, vol I, p. 252.
[4] Direito Penal. Parte Feral. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris/ICPC, 2007, p. 429.
[5] Luiz Régis Prado chama de elemento subjetivo do injusto em seu Curso de Direito Penal Brasileiro. 14. ed. São Paulo: RT, 2015, p. 1278.
por Davi de Paiva Costa Tangerino é sócio de Trench, Rossi, Watanabe Advogados, professor de Direito penal da UERJ, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, com estágios doutoral e pós-doutorais na Alemanha.
Fonte: Conjur
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