É muito comum na esfera municipal, e até mesmo na esfera estadual, o respectivo ente federativo atribuir à Secretaria da Fazenda a competência para a inscrição em dívida ativa tributária.
O argumento para aqueles que defendem a legalidade dessa atribuição consiste na competência concorrente para legislar sobre Direito Tributário, nos termos do artigo 24, inciso I, da Constituição Federal, de modo que compete a cada ente político determinar, à sua livre escolha política, a autoridade responsável pela inscrição em dívida[1].
O primeiro deles está amparado e calcado no próprio artigo 24, da CF citado pela corrente contrária, contudo, agora, com espeque em seus parágrafos 1º e 3º, que estabelecem que no âmbito da legislação concorrente a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais e, inexistindo esta, os estados exercerão a competência legislativa plena.
No caso da cobrança da dívida ativa tributária (que se inicia com a inscrição da dívida ativa, ou seja, após a constituição definitiva do crédito) existe norma geral, que é a Lei 6.830/80 (Lei de Execução Fiscal – LEF), dispondo sobre a “cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública e dá outras providências”.
Bem verdade que para os assuntos tributários deve ser aplicado primeiro e com preferência o Código Tributário Nacional, que possui status de lei complementar, por força do que determina o artigo 146, III, da CF. A dívida ativa vem tratada no Capítulo II, do Título IV (Administração Tributária), do CTN, cujo artigo 201 estabelece, apenas, que a dívida ativa tributária deve ser regularmente inscrita na repartição administrativa competente, mas sem eleger qual seria essa repartição.
No entanto, a Lei de Execução Fiscal também é norma geral e deve ser aplicada subsidiariamente nas omissões do CTN, assim como o Código de Processo Civil também é aplicado subsidiariamente nas omissões dos dois primeiros (artigo 1º).
A LEF, assim como fez o CTN, também é genérica ao estabelecer que a inscrição será feita pelo órgão competente para apurar a liquidez e certeza do crédito, contudo, acrescentou que esse ato de inscrição se constitui no ato de controle administrativo de legalidade (artigo 2º, parágrafo 3º).
Quanto à Fazenda Nacional, em norma específica, a LEF estabeleceu que a dívida ativa da União será apurada e inscrita na Procuradoria da Fazenda Nacional (artigo 2º, parágrafo 4º).
Pela leitura desses dois dispositivos contidos no artigo 2º é que exsurgem os argumentos teleológicos a favor da competência do órgão jurídico para proceder à inscrição em dívida ativa tributária, hábeis a conduzir uma modificação e reanálise dos argumentos das decisões que defendem a possibilidade de eleição discricionária do órgão administrativo competente para tal fim.
Na lição de Hely Lopes Meirelles (2004, p. 639): “Controle, em tema de administração pública, é a faculdade de vigilância, orientação e correção que um Poder, órgão ou autoridade exerce sobre a conduta funcional de outro”.
Ora, se o controle administrativo deve necessariamente ser exercido por um outro órgão, autoridade ou poder, logicamente que não pode a Secretaria da Fazenda, que é competente para iniciar o procedimento fiscal tributário, autuando, julgando recursos preliminares e constituindo o crédito tributário, ser também o órgão que, depois, verifique a legalidade e legitimidade de todo o procedimento, com a inscrição da dívida ativa.
Poder-se-ia até contra-argumentar que as autoridades que fazem esses diferentes atos dentro da Secretaria da Fazenda são distintas, podendo haver o controle de uma sobre a outra.
Entretanto, não é preciso dizer que o controle interno feito por outro órgão da administração pública é mais eficaz, mais legítimo e gera mais confiança por parte do cidadão. Há uma dupla verificação do procedimento por parte de autoridades administrativas distintas, o que traz maior segurança e eficiência em todo o procedimento, beneficiando tanto o poder público quanto os próprios cidadãos.
Além disso, a ideia de controle está umbilicalmente ligada à de distanciamento, um segundo olhar, de fora, isonômico. O controle legítimo só é exercido quando inexistirem vínculos e conexões que possam comprometer a isenção e tecnicalidade da análise.
É natural que o mesmo órgão que autuou mantenha intacta sua decisão em caso de eventual recurso, ou até mesmo mantenha o ato inicial "inidôneo" quando inexista recurso se ele mesmo inscrever em dívida. É por isso que a lógica e o bom senso recomendam que esse controle e análise de atuação de um órgão seja feito por outro dentro da própria administração pública, a fim de conferir maior imparcialidade e acertos pelo próprio ente político.
Não bastasse isso, a lei geral determina que não é qualquer controle que deve ser feito no ato de inscrição em dívida, mas especificamente o controle de legalidade do ato, com atuação de órgãos especializados. E essa concepção de legalidade deve ser entendida como controle de juridicidade, mais ampla que a legalidade estrita.
O controle jurídico ou de juridicidade dos atos administrativos e das ações da administração é a verificação técnica feita por operador do Direito que afere se um determinado objeto de controle encontra compatibilidade com o sistema jurídico; para tanto, utiliza critérios hermenêuticos, argumentação jurídica, precedentes doutrinários e jurisprudenciais, entre outras técnicas.
Esse controle de juridicidade é ato típico e privativo da advocacia pública (ao mesmo tempo em que é atividade típica de Estado), não sendo correto que esse controle seja exercido pelo órgão fazendário, sob pena de nulidade.
Além disso, a advocacia pública exerce verdadeira função de Estado, patenteada por seu tratamento constitucional como “função essencial à Justiça” (legalidade, legitimidade e licitude[2]). Por isso, deve-se destacar que, além de servir à pessoa jurídica de direito público, também patrocina os interesses de toda a sociedade, o que faz de forma primária, antes mesmo de qualquer publicização ou atuação de órgãos de controle externo (Ministério Público, Tribunal de Contas etc.).
Faz-se prudente, aqui, o destaque conferido pelo saudoso administrativista Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao lembrar que a Constituição de 1988 consagrou em seu Título Quarto a organização dos poderes. A advocacia pública não é sabidamente um quarto poder, mas é uma quarta modalidade ou função essencial ao Estado Democrático de Direito.
Sua natureza jurídica é de função essencial que se situa no mesmo patamar constitucional das tradicionais funções, em igualdade de status constitucional e sem subordinação direta ou hierarquia de essencialidade (apenas administrativa) a nenhum dos três Poderes.
Não se admite mais a defesa cega, incondicionada e irresponsável do Estado como acontecia outrora, mas agora com a preservação do princípio da boa-fé objetiva nas relações entre Estado e contribuinte.
Toda a advocacia pública deu um grande salto qualitativo após a Constituição de 1988, empurrada pela especialização das funções prestadas, necessidade de estruturação em carreiras e de concurso público de provas e títulos.
Verifica-se, portanto, que é a advocacia pública que tem a função e competência para sopesar eventual conflito entre o interesse público primário e o secundário, significando que é ela, como órgão autônomo, a competente para analisar, juridicamente, se deve prevalecer o interesse do cidadão ou do governo na arrecadação.
Ou, ainda, de verificar se estão ou não preenchidos os requisitos legais (interesse público primário) a fim de evitar uma futura execução fiscal desnecessária e temerosa não só em prejuízo ao contribuinte, mas principalmente ao próprio Estado, com o pagamento desnecessário de custas, ônus sucumbenciais e, por vezes, danos morais.
O órgão fazendário, por sua vez, como de sua própria natureza e competência, defende unicamente o interesse público secundário, na exclusiva ânsia arrecadatória do Estado.
Este órgão, como todos os demais órgãos administrativos, deve obediência à lei, contudo, tal obediência ocorre somente na forma literal/gramatical (técnica da subsunção), enquanto que o controle jurídico é muito mais amplo e complexo, vez que utiliza de todos os métodos hermenêuticos disponíveis para a aplicação da juridicidade.
Não se retira a importante e necessária função da Secretaria da Fazenda em iniciar todo o procedimento fiscal, que tem como expertise a arrecadação e aplicação fria da letra da lei, com viés nitidamente econômico.
Contudo, tão importante quanto esse viés econômico (arrecadatório) é o viés jurídico (exame da juridicidade), cuja competência é exclusiva da advocacia pública.
São fases distintas dentro do procedimento administrativo fiscal, independentes, mas complementares. Cabe destacar que o processo de cobrança inicia-se com o esgotamento da competência da administração fazendária, que se dá com a constituição definitiva do crédito tributário. A partir desse marco é que se inicia a contagem do prazo prescricional[3]. E sabidamente a prescrição nada mais é do que a perda do direito de cobrar o crédito tributário, cobrança esta que é da competência do órgão jurídico.
Nesse giro, a competência da Secretaria da Fazenda se esgota com a constituição definitiva do crédito tributário, e a competência da advocacia pública nasce com a inscrição da dívida ativa (exame de juridicidade de todo o procedimento), que representa o primeiro ato do procedimento de cobrança da dívida.
Desse modo, não é possível exigir que a Secretaria da Fazenda exerça, além do controle econômico-fiscal arrecadatório, também o controle jurídico de seus próprios atos. Tratar-se-ia de usurpação de competência legal e até constitucional, hábil a macular todo o procedimento fiscal, em desacordo com o próprio Estado Democrático de Direito.
Nessa linha, prudente que se faça o seguinte questionamento: é preciso ajuizar a questão para somente lá na frente se verificar que tudo poderia ter sido feito diferente? É preciso aguardar inúmeras exceções de pré-executividade ou embargos à execução fiscal, inclusive com condenação em honorários advocatícios, de algo que poderia ter sido consertado já na via administrativa? Certamente que não. Inclusive isso vai contra a ideia de celeridade e desafogamento de litígios no Judiciário, a exemplo dos inúmeros dispositivos acrescentados no CPC/2015 com essa finalidade.
Ainda que se entenda que o controle não precise ser exercido por órgão diverso dentro da administração pública — embora altamente recomendado —, não é possível vencer o segundo requisito consistente no controle de legalidade (amplo sensu), cuja competência é exclusiva e monopólio do órgão jurídico, mormente porque é ele quem vai executar a dívida posteriormente e defender, quando possível, o ente público perante as teses dos contribuintes em eventuais embargos à execução ou exceções de pré-executividade.
Não parece compreensível e racional que o órgão jurídico apenas verifique eventual ilegalidade do procedimento administrativo somente na esfera judicial, com a execução da dívida ativa, quando poderia resolver o problema já em seu nascedouro, dentro do próprio âmbito administrativo.
Não são raras as vezes que os argumentos de defesa dos contribuintes no processo judicial são acolhidos — ou até mesmo reconhecidos prontamente pelo órgão jurídico — por erros administrativos que poderiam ser evitados já no ato da inscrição em dívida.
A realização da inscrição em dívida ativa tributária pelo órgão jurídico evita ou ao menos diminui o ajuizamento de ações viciadas, em legítimo exercício de controle de legalidade sobre os procedimentos administrativos tributários prévios, feitos pelo órgão fazendário.
Impedir que o controle de juridicidade seja exercido por quem é legítimo e competente para tal, como a advocacia pública, é andar na contramão da efetividade e da economicidade. E não apenas isso, é desrespeitar o cidadão contribuinte, a boa-fé objetiva, a moralidade, desvirtuando a existência do próprio Estado Democrático de Direito.
É a Procuradoria que exerce função de Estado (e não função de governo) — único dentro do Poder Executivo municipal que exerce essa função essencial à Justiça —, é um órgão autônomo em relação aos três Poderes tradicionais, demonstrando uma imparcialidade mais evidente e legítima do que um órgão de governo não autônomo, como é a Secretaria da Fazenda, que é um gestor político da arrecadação, e não um órgão técnico competente a averiguar a certeza e liquidez do crédito tributário.
Não é por menos que é considerada função essencial à Justiça (ao lado do Ministério Público, da advocacia privada e da Defensoria Pública, sem subordinação direta e sem hierarquia de essencialidade a nenhum dos três Poderes) e está implicitamente abarcada pela Constituição Federal e expressamente referida em diversos diplomas legislativos infraconstitucionais (como a lei de improbidade administrativa, a lei de licitações, a lei da ação civil pública, a lei da ação popular, a lei do mandado de segurança, a lei do mandado de injunção, a lei anticorrupção etc.) que atestam essa conclusão.
Essas são as razões ontológicas pelas quais a União expressamente conferiu ao órgão jurídico a competência para a inscrição em dívida ativa tributária, que devem ser repetidas pelos demais entes da federação.
A simetria pode ser verifica porquanto existe identidade de razão (elementos de coerência) entre as funções da advocacia pública estatal em todas as esferas — que permite o raciocínio por analogia e um parâmetro constitucional —, sendo injustificada qualquer discriminação ou tratamento diferenciado a apenas um ente, qual seja, o município.
A norma constitucional que institucionaliza a advocacia pública está revestida de eficácia vinculante para todas as unidades federadas e inexiste qualquer mandamento expresso em sentido contrário.
Com todas essas considerações, existe manifesta incompatibilidade vertical com os artigos 131 e 132 da CF quando determinada lei local confere a inscrição em dívida ativa a qualquer outro órgão administrativo que não o órgão jurídico (Procuradoria).
Existindo características semelhantes entre a atuação jurídica de todos os entes, o tratamento isonômico entre eles é medida que se impõe.
Significa que toda legislação que contrariar esse preceito é eivada de vício de inconstitucionalidade (artigos 18, 24, parágrafo 1º e 3º, 25, 37, 74, 131, 132, da CF e artigo 11, do ADCT) e ilegalidade (artigo 1º, II, do EOAB; artigo 2º, parágrafos 3º e 4º, da LEF), merecendo ser imediatamente revista (i) pelo próprio Poder Executivo do respectivo ente ou (ii) pelo Poder Judiciário em caráter repressivo, inclusive tratando dos efeitos jurídicos dessa declaração.
[1] Assim decidiu o TJ-SC, em 2009, acerca da legislação do estado atribuindo a competência da Secretaria da Fazenda para inscrição em dívida ativa (Apelação Cível 2009.060133-5).
[2] Conforme tricotomia defendida por Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1992).
[3] REsp 1.107.339/SP, ministro Luiz Fux, DJe 23/6/2010.
Rafael Schreiber é procurador do município de Joinville (SC), advogado, especialista em Direito Público pela LFG e em Direito da Economia e da Empresa pela FGV e graduado em Direito pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (Furb).
Fonte: Conjur
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