terça-feira, 1 de agosto de 2017

O imposto de importação no desembaraço aduaneiro

É comum ainda nos dias de hoje contribuintes que se sentem prejudicados com a retenção de mercadorias no procedimento de desembaraço aduaneiro buscarem o Judiciário objetivando a liberação dos itens importados invocando a prática de sanção política pela Administração Tributária.

Argumentam esses contribuintes que a retenção de mercadorias cujo respectivo imposto de importação não foi adimplido, total ou parcialmente, seria uma coerção ao pagamento de tributos. As decisões têm sido, em sua grande maioria, favoráveis aos contribuintes, baseando-se, invariavelmente, na Súmula 323 do STF, a qual dispõe que é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.

A aplicação desse enunciado, a nosso ver, não tem sido objeto do necessário grau de reflexão sobre a pertinência do precedente ao caso concreto. Tampouco tem sido objeto de atenção a coerência entre o fundamento desse enunciado e outros entendimentos consolidados do Supremo na mesma matéria.

A súmula referida foi editada no ano de 1963, muito antes da Constituição Federal de 1988 e antes até mesmo da edição do próprio CTN.

O STF, em momento posterior à Constituição de 1988, já editou súmula em sentido completamente oposto àquele da Súmula 323. Trata-se do enunciado de Súmula 661 do STF, editada em 2003, segundo a qual na entrada de mercadoria importada do exterior, é legítima a cobrança do ICMS por ocasião do desembaraço aduaneiro.

Tal entendimento foi confirmado pelo Pleno do STF em 2015, momento em que tal súmula foi convertida na Súmula Vinculante de número 48.

O anacronismo da Súmula 323 do STF pode também ser deduzido do papel desempenhado pelo imposto de importação na economia globalizada da atualidade.

Como se sabe, o imposto de importação é identificado como um tributo extrafiscal, que serve de instrumento para a União intervir no comércio internacional. A principal finalidade desse tributo aduaneiro não é carrear recursos aos cofres da União, mas sim servir de instrumento indutor em relação às importações [[1]].

A mera incidência tributária sobre manifestações de capacidade contributiva, por si só, já representa uma interferência, ainda que mínima, no domínio econômico. É que a ideia de tributos absolutamente neutros não mais se sustenta, cedendo espaço ao reconhecimento de que qualquer tributo, ainda que em menor grau, influenciará os comportamentos dos agentes econômicos. Há tributos, contudo, que possuem como principal função a influência sobre a economia. São estes os chamados tributos extrafiscais, que servem ao propósito de obter respostas dos atores privados para uma determinada direção pretendida pelo Estado.

Percebe-se que a própria atividade de importação já é, por essência, uma atividade que necessita de constante e apurada fiscalização, diferentemente de outras atividades econômicas, como a mera compra e venda ou a prestação de serviços.

Isso significa que a exigência de tributos aduaneiros não deve ter o mesmo tratamento legal, jurisprudencial ou hermenêutico dos demais tributos. O que poderia se caracterizar como uma sanção política em relação ao ICMS ou ao ISS pode ser entendido como um legítimo e necessário ato de controle e fiscalização por parte da administração tributária, em defesa da produção interna e dos objetivos da política econômica.

É nessa lógica que a legislação aduaneira dispõe:

Decreto 6.759/2009, Art. 571.  Desembaraço aduaneiro na importação é o ato pelo qual é registrada a conclusão da conferência aduaneira.

§ 1º Não será desembaraçada a mercadoria: (Redação dada pelo Decreto nº 8.010, de 2013)

I – cuja exigência de crédito tributário no curso da conferência aduaneira esteja pendente de atendimento, salvo nas hipóteses autorizadas pelo Ministro de Estado da Fazenda, mediante a prestação de garantia; (…)

Não há conferência aduaneira sem o recolhimento dos tributos aduaneiros.

A retenção de mercadorias no procedimento do desembaraço aduaneiro não se dá pelo simples inadimplemento de tributos. Até mesmo porque a finalidade maior dos tributos aduaneiros não é arrecadar. O que está em jogo é o controle da administração sobre questões afetas à soberania e à economia nacional.

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em julgado didático e perspicaz, reconheceu a peculiaridade existente na tributação do comércio exterior, assim enfrentando o tema:

(…)3. Em matéria de imposto de importação, a apreensão de mercadorias em razão de desclassificação tarifária e a imposição do recolhimento do saldo remanescente não se constitui em hipótese de “apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”, tal qual a hipótese estampada na Súmula 323 do STF, que tratava de sanções políticas. 4. É da sistemática da tributação de operações de importação de mercadorias o recolhimento prévio do tributo, no momento da efetiva internação das mercadorias. Essa prática não é abusiva, mas inerente ao imposto sobre importações. De outro lado, admitir-se que a insurgência contra a desclassificação tarifária – mesmo nos casos em que o ato administrativo encontrasse base legal – pudesse sustar a exigência do prévio recolhimento e causar a liberação das mercadorias, seria subverter a sistemática inerente a tributação das importações. (…) (TRF da 3a Região, 3ª Turma – AMS nº 199399, Rel. Des. Nery Júnior j. 16/10/2002) – grifamos.

A ementa do julgado acima bem reflete as peculiaridades sobre as quais o intérprete deve se debruçar na análise da questão. Tratar o imposto de importação da mesma forma que os demais tributos é um erro fatal, que conduz a resultados opostos aos visados pelo ordenamento.

A própria mitigação dos princípios da legalidade e da anterioridade nos tributos aduaneiros deixa claro que tais exações não são utilizadas como alicerces do orçamento público, não obedecendo a rigorosos planejamentos orçamentários que estabelecem metas de arrecadação. Impõe-se que uma interpretação teleológica seja adotada.

O Supremo Tribunal Federal, em julgados mais recentes (ARE 1022791, DJ de 20.2.2017; Ag. Reg. no RE com Agravo nº 876.019/SC), demonstra que nos tributos incidentes sobre a importação a exigência do adimplemento no desembaraço aduaneiro não deve ser compreendida como sanção política.

A doutrina igualmente reforça essa orientação, como podemos ver a seguir:

“sendo tais tributos devidos por força da própria operação de impostação, a exigência do seu pagamento para a liberação do produto não é descabida nem configura meio impróprio para a satisfação do crédito tributário. Portanto, não se cuida de constrangimento passível de ser encarado como ‘sanção política’”[2]

Trata-se, portanto, não de apreensão de mercadorias como meio coercitivo para o pagamento de tributos, mas de negativa de desembaraço aduaneiro enquanto não satisfeitas as condições previstas na legislação em vigor para a internalização de mercadorias estrangeiras, as quais incluem o pagamento (ou a garantia) dos tributos devidos na operação.

A retenção de mercadoria procedente do exterior pelo Fisco nessas circunstâncias decorreria do exercício do poder/dever de fiscalização e controle do comércio exterior, que é atribuído ao Ministério da Fazenda por força do art. 237 da Constituição Federal (“A fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, serão exercidos pelo Ministério da Fazenda”).

Acreditamos ainda que o apego à Súmula 323 do STF que muitos julgadores ainda possuem não pode sobreviver diante da nova realidade social e jurídica que se desenvolveu desde 1963, ano de edição da súmula. Vários dos dogmas vigentes naquele momento foram sepultados.

Nos dias atuais, a própria relação entre o Fisco e o contribuinte deve ser repensada, como observa Sérgio André Rocha:

“Analisando-se as relações entre Fisco e contribuintes nos dias atuais, verifica-se que se encontram presentes nas mesmas, em ampla medida, a ambivalência e insegurança características da sociedade de risco, a reclamarem uma mudança de paradigmas e princípios vetores do agir dos diversos atores tributários (Fazenda Pública, Poder Judiciário, contribuintes, entidades não governamentais de controle – nacionais e internacionais).”[3]

Enquanto antes se discutia apenas sanções políticas do fisco contra o contribuinte, hoje se discute práticas abusivas de um grupo de empresas com o poder de exercer suas atividades substancialmente em determinado país sem ali recolher os tributos correspondentes aos ganhos econômicos obtidos naquele território.

A Súmula 323 do STF originou-se de um precedente de 1961 (RE 39.993/AL). No qual a suposta sanção política sequer fora cometida pela União, mas sim por um Município! A súmula do STF hoje aplicada de forma tão pacífica quanto irrefletida originou-se de um julgamento em que se declarou inconstitucional o artigo 75 do Código Tributário do Município de Major Izidoro, do Estado de Alagoas.

Não se discutiu naquela ocasião sequer a competência da União atinente à regulação do comércio exterior, tampouco o caráter indutor do imposto de importação.

Se alguns podem ainda se agarrar à ideia de que a súmula referida deve ainda continuar sendo aplicada sem nenhuma adaptação à nova realidade que se desenvolveu, é necessário que, ao menos, se lancem de argumentos adicionais, de uma fundamentação atualizada.

Deve-se reconhecer, ao menos, que a discussão deve ser reaberta em termos totalmente diferentes dos que prevaleciam na década de 1960.  Vários fatores desconsiderados quando da edição da súmula devem agora ser sopesados. Outros princípios e outra relação entre Fisco e contribuinte precisam ser considerados. A própria jurisprudência posterior do STF e a sua Súmula 661 devem fazer parte da pauta.

E acreditamos que, com essa necessária reabertura do debate, a Súmula 323 do STF deve ser tida por superada.

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[1] Registramos aqui a abordagem inovadora dos conceitos de fiscalidade e extrafiscalidade em ROCHA, Paulo Victor Vieira da. Fiscalidade e Extrafiscalidade: uma Análise Crítica da Classificação Funcional das Normas Tributárias. Revista Direito Tributário Atual n. 32. São Paulo: IBDT/Dialética, 2014, p. 256-274. Nesse estudo, é traçada uma diferenciação entre fiscalidade dos tributos e fiscalidade das normas tributárias.

[2] PAULSEN, Leandro e Melo, José Eduardo Soares de. Impostos Federais, Estaduais e Municipais. 7ª Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 27.

[3] ROCHA, Sérgio André. Tributação Internacional. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 20.

por Antônio Augusto Souza Dias Júnior - Procurador da Fazenda Nacional em Campinas e Especialista em Direito Tributário.

Fonte: Jota.info/

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