Desta vez, o foco deste pequeno ensaio são as propostas de reforma da legislação trabalhista e a repercussão nos Direitos Sociais como um todo.
Um dos principais pontos de debate é a “regulamentação da terceirização”, projeto que foi aprovado na Câmara (aguardando sanção presidencial), sendo que outro projeto está parado no Senado desde maio de 2016. O texto aprovado na Câmara, segundo se propala, permite a terceirização de toda e qualquer atividade.
Todavia, não é verdade que a terceirização não seja “regulamentada”. O trabalho terceirizado é aquele em que um trabalhador é contratado por uma empresa prestadora de serviços para trabalhar em outra empresa (dita tomadora dos serviços) ou em órgãos públicos. Isso já existe há décadas.
Até as ligações para o 135 – número que serve para agendar benefícios junto à Previdência Social – por exemplo, são atendidas por terceirizados e não por servidores do INSS.
Se você pretende tirar o passaporte, na Polícia Federal, ou a Carteira Nacional de Habilitação, em algum DETRAN, também é um terceirizado que vai fazer o primeiro atendimento, e não um policial. No detector de metais dos aeroportos da INFRAERO, também são terceirizados os que pedem que você coloque seus pertences na esteira e “fiscalizam”(?) o que você está levando.
A terceirização não foi criada no Brasil; em outros países, serve para prestação de serviços especializados, com pessoal qualificado, capacitado, treinado; os direitos destes trabalhadores são respeitados.
Mas aqui, para variar, a ideia foi adaptada para o famigerado “jeitinho brasileiro” – leia-se, o desrespeito à lei.
Serviços públicos estão cada vez mais “terceirizados’. Empresas de mão-de-obra terceirizadas são criadas sem qualquer fiscalização ou controle; depois, vencem licitações públicas ou fecham contratos com as tomadoras de serviços; porém, grande parte delas não respeita os direitos de seus empregados e vão “empurrando com a barriga” até que fecham as portas e seus sócios “somem do mapa”, deixando os trabalhadores sem pagamento. Daí, os mesmos sócios abrem nova empresa, em nome de “laranjas”, e começam tudo de novo…
Estes trabalhadores, por sua vez, recorrem à Justiça do Trabalho, na última tentativa de salvar o direito ao salário, ao FGTS etc.
Então, façamos um exercício sobre o que costuma acontecer: considere um trabalhador terceirizado, cujo empregador “sumiu” sem pagar o que lhe é devido. No entanto, há uma empresa “tomadora” dos serviços, que se beneficiou do seu trabalho. O que você entende ser mais justo: o trabalhador (1) cobrar da tomadora o salário que não foi pago, ou (2) ficar sem nada receber?
Esta é a principal questão da terceirização no Brasil, que leva à existência de tantas ações na Justiça do Trabalho sobre isso. E as decisões judiciais, incluindo as do Supremo Tribunal Federal, tem reconhecido o direito do trabalhador a receber diretamente da empresa “tomadora”, quando a “prestadora” desaparece sem quitar suas obrigações.
Acontece que o projeto de lei não irá resolver nenhum problema destes, porque o problema não está na terceirização, mas na forma como ela é feita no Brasil.
Na verdade, nem o projeto de lei da terceirização, nem outras propostas de reforma na legislação trabalhista irão criar novos empregos, como alguns tentam fazer crer.
Veja-se, por exemplo, a esgarçada ideia de que deve prevalecer o “negociado” (negociação coletiva, com os sindicatos) sobre o “legislado” (a CLT e demais leis trabalhistas). As relações de trabalho já são “negociadas”: são contratos, regidos por cláusulas e por convenções e acordos coletivos e, na falta destes, pela legislação – que impede cláusulas que sejam “leoninas”.
Os acordos e convenções não podem, por óbvio, retirar direitos considerados como o mínimo fundamental, como o salário-mínimo, as férias, a indenização por despedida.
O que se nota é que, embora a relação de trabalho já seja um contrato, este é constantemente descumprido, com a violação de direitos básicos, como o pagamento de horas extras, quando o trabalho extrapola o limite diário ou semanal. Mesmo com a malsinada criação do “banco de horas”, por negociação coletiva, as empresas tendem a não respeitar (o negociado). Então, qual seria o milagre que levaria a realizar, da noite para o dia, a mudança desse comportamento?
O combate ao desemprego se dá pela retomada do crescimento econômico. Lei não cria empregos, a não ser no serviço público, cujos cargos só podem ser ocupados no limite das vagas existentes na lei. Aqui ou em qualquer outro lugar no planeta.
Uma parte deste receituário envolve o ataque à Justiça do Trabalho, vista por setores empresariais como responsável pelo número de “reclamações” trabalhistas existentes. Seria como responsabilizar a Justiça Federal pela quantidade de crimes de colarinho branco, ou a Justiça Estadual comum pela quantidade de violações aos direitos dos consumidores. Há quem fale em “repensar” a Justiça do Trabalho – vide aqui. Tirem suas conclusões…
A quantidade de ações que tramitam na Justiça decorre da crescente litigiosidade entre as pessoas em geral (existem, ao todo, mais de 100 milhões de processos judiciais em andamento), em todo o Judiciário. Apenas 9% do total de processos no Judiciário estão na Justiça do Trabalho – vide aqui.
Na Justiça do Trabalho, a maior parte das demandas envolve o pagamento de direitos básicos, como as verbas rescisórias; mas há um grande número de ações de indenização por acidentes do trabalho. Neste último caso, convém frisar que a maior parte dos acidentes envolve terceirizados, e mais especificamente ainda, na construção civil, conforme estudo de Vitor Araújo Filgueiras, doutor em Ciências Sociais (UFBA), pós-doutorando em Economia (UNICAMP), pesquisador do CESIT da UNICAMP e pesquisador visitante no SOAS (Universidade de Londres) – vide aqui.
E será na Justiça do Trabalho, tal como nos demais ramos do Judiciário, a última oportunidade para que o trabalhador que está no mercado informal de trabalho tenha o reconhecimento de seus direitos, não só de cunho trabalhista, mas também – e, por vezes, principalmente – de caráter previdenciário, pois muitas vezes um empregado “sem carteira assinada” (grande parte sob o rótulo de “terceirizado”) acaba sendo marginalizado pelo empregador e pelo próprio poder público, que lhe nega o acesso às prestações da Previdência Social e aos direitos que todo trabalhador deve ter.
A sociedade deve estar alerta para as consequências das propostas de mudanças que surgem “em tempos de crise”. Num país onde ainda temos trabalho infantil e trabalho escravo, em que não se chegou a um patamar mínimo de civilidade, é necessário pensar em que cenário vamos deixar de legado para as próximas gerações.
O primeiro passo para uma melhor relação entre capital e trabalho é justamente o respeito que deve existir nas relações humanas. Sem isso, poderemos até chegar a ser um país que é muito rico sob o aspecto econômico, mas que continuará sendo pobre no que tange ao sentido de Nação, pois faltará o ingrediente ético.
Carlos Alberto Pereira de Castro
é Juiz do Trabalho. Doutorando em Ciência Jurídica. Mestre em Ciência Jurídica. Professor. Membro emérito do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário. Titular de Cadeira na Academia Catarinense de Letras Jurídicas. Autor.
Fonte: Genjuridico.com.br/
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