Em verdade, não fomos surpreendidos. Mesmo que nas eleições presidenciais de 2014 os principais candidatos da época evitassem tratar especificamente do tema – abusando de forma contumaz de técnicas retóricas para não responder assertivamente às perguntas delicadas – era notório que o futuro governo promoveria ajustes no sistema previdenciário. Em um contexto de desaceleração econômica, tão logo encerrado o pleito presidencial de outubro de 2014, a Presidente reeleita Dilma Rousseff deixou de ocultar suas intenções nesta seara: alterações substanciais não tardariam. O grave quadro de instabilidade política, culminando no afastamento da presidente Dilma, interrompeu o cronograma planejado para a reestruturação da previdência.
Rezando pela mesma cartilha, uma das primeiras medidas tomadas pelo Presidente Michel Temer, na reorganização administrativa, consistiu no rebaixamento da Previdência Social. Ela deixou de compor, juntamente com o Trabalho, um ministério para tornar-se uma secretaria vinculada ao Ministério da Fazenda[1]. O progressivo enfraquecimento político da previdência, promovido pelos sucessivos governos, culminando em sua absorção pelo Ministério da Fazenda, já era um claro indicativo do viés da nova proposta. Focada substancialmente na redução das despesas, ela pouco avançaria na senda do aperfeiçoamento da proteção social. Eis que a Proposta de Emenda à Constituição nº 287 foi apresentada ao Congresso Nacional em 05 de dezembro de 2016. Ao contrário do período eleitoral, ninguém ousou sorrir.
Meu objetivo, para o momento, é abordar tão somente a nova regra geral de transição proposta. A proteção das expectativas de direito, em nosso ordenamento jurídico, é demasiado tímida. A abordagem predominante é aquela na qual se considera não haver direito adquirido a regime jurídico. Nesta linha, se o fato aquisitivo previsto na lei velha ainda não se ultimou, o efeito gerador do direito previsto na norma é passível de ser evitado. Mesmo para os direitos que estavam na iminência de serem consolidados, a posição jurídica do titular era a de um mero expectador que não desfrutava de uma proteção efetiva capaz de contrapor-se à ação do legislador.
Dentre os valores superiores dignos de destaque, a justiça e a segurança jurídica não poderiam deixar de ser referidos. Pode parecer surpreendente, mas é absolutamente verdadeira a constatação do jusfilósofo Luiz Recasen Siches: embora o direito deve encarnar os valores da justiça, da dignidade pessoal dos indivíduos (dignidade da pessoa humana) e que o direito não estaria justificado sem que sirva satisfatoriamente a tais finalidades, o direito não nasceu na vida humana por virtude do desejo de homenagear a ideia de Justiça, mas para satisfazer a irrefutável urgência de segurança e de certeza na vida em sociedade[2]. A segurança jurídica abrange um amplo rol de posições jurídicas expressamente positivadas em nossa Constituição. Ela vai muito além da proteção do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito (inciso XXXVI do art. 5º). Dentre outras manifestações relevantes, ela está presente no princípio da legalidade (inciso II do art. 5º); na garantia do devido processo legal (inciso LIV do art. 5º), e também no contraditório e na ampla defesa (inciso LV do art. 5º). Em suma, podemos pensar na segurança jurídica como elemento responsável por contemplar uma estabilidade mínima das relações jurídicas e da ordem jurídica.
Preleciona Sarlet, o princípio da segurança jurídica em sentido amplo – abrangendo a proteção da confiança – serve como elemento para aferir a legitimidade constitucional de leis e atos de cunho retroativo e também para conferir certo grau de proteção até mesmo para as denominadas expectativas de direito. Em sua dimensão objetiva ela exige um patamar mínimo de continuidade do Direito, ao passo que na dimensão subjetiva, significa a proteção da confiança do cidadão nesta continuidade da ordem jurídica no sentido de uma segurança individual de suas posições jurídicas[3].
Nas situações em que o legislador venha a suprimir posições jurídicas relevantes – seja por lei ou pela via de emenda constitucional – em matéria de direitos fundamentais sociais sempre haverá significativa controvérsia sobre a ocorrência de violação ao princípio da proibição do retrocesso. Na lição de Canotilho, uma vez que o legislador infraconstitucional tenha realizado a sua tarefa de conformar determinado direito fundamental social, a referida lei não apenas geraria um direito subjetivo, como também o seu conteúdo estaria protegido contra a atuação do legislador que aspirasse revogar o núcleo essencial de tais direitos[4]. Nas oportunidades em que o STF foi convocado a manifestar-se sobre este princípio, em matéria de previdência social, apenas no julgamento da ADI 1946 é que restou reconhecida a existência de ofensa relevante. Assim, parece pouco provável, na hipótese de a PEC nº 287/16 ser aprovada, ocorrer a conjuração de suas disposições com apoio apenas neste princípio.
Como já era esperado, a proposta nuclear desta reforma é o estabelecimento de uma idade mínima como requisito de elegibilidade aplicável também para o regime geral. Não se contesta a evolução do perfil demográfico do nosso País. De um lado, não parece razoável continuar aposentando pessoas produtivas e saudáveis antes dos 50 anos de idade, independentemente do seu tempo de contribuição, pois a tendência é que muitas delas não se afastem do mercado de trabalho. Do ponto de vista do cenário mundial, a aposentadoria lastreada unicamente no tempo de serviço é uma exceção. Consoante dados trazidos pelos técnicos do IPEA – baseados em estudos da Associação Internacional de Seguridade Social (AISS) – dentre 177 países comparados, apenas 13 preveem a aposentadoria voluntária sem um limite mínimo de idade. Destes, cinco exigem o abandono do mercado de trabalho ou impõem restrições ao acúmulo de salário e benefícios previdenciários, e doze ostentariam regras redutoras do valor do benefício[5].
De outro, parece justo indagar se a idade de 65 anos não está em absoluto descompasso com a realidade brasileira. A comparação isolada da idade prevista para a aposentadoria em países como Japão, Estados Unidos e os mais desenvolvidos da Europa, olvidando as condições diferenciadas de vida, inserção no mercado de trabalho e expectativa de vida dos países apontados como paradigma, compromete a credibilidade da proposta[6]. Estabelecer uma idade mínima de 65 anos em um país cuja expectativa de vida supera os 82 anos, bem como as condições de trabalho, com jornada reduzida, são adequados, pode ser uma medida socialmente adequada. Diversamente, a previsão da mesma idade para outra nação cuja expectativa de vida é de 75 anos, e onde metade dos contribuintes individuais não conseguem pagar contribuições regularmente para a previdência é outra completamente diferente.
Não se percebe, por parte do governo, medidas tendentes a incentivar a inclusão e a contratação de pessoas com mais de 50 anos por parte das empresas. As possibilidades reais de permanência no mercado de trabalho dependem da saúde, escolaridade e tipo de ocupação. Naturalmente será mais difícil a continuidade do exercício de atividades que exigem acentuado esforço físico do obreiro. Apesar de não haver estudos conclusivos, há uma tendência de que apenas os trabalhadores mais capacitados e dotados de maior escolaridade consigam continuar no mercado de trabalho depois dos 50 anos, razão pela qual, a produtividade dos trabalhadores ativos não refletiria a real produtividade desta faixa etária[7]. As maiores dificuldades de adaptação às evoluções tecnológicas, o grau de preconceito e a menor produtividade podem configurar fatores de exacerbada dificuldade para a absorção do trabalhador mais velho. Assim, viabilizar uma efetiva inclusão destes trabalhadores demandaria um conjunto de políticas que abrangeriam a implantação de programas de capacitação continuada, incentivos fiscais, adaptações dos ambientes de trabalho (por exemplo introdução de equipamentos que reduzam problemas de audição e visão) e alterações na jornada laboral. Será que podemos esperar que efetivamente o Poder Executivo atue com o mesmo empenho para viabilizar políticas sociais de inclusão no mercado de trabalho tão avançadas?
A PEC nº 287/16 fulmina as seguintes regras de transição: arts. 9º da EC nº 20/98; arts. 2º, 6º, e 6º-A da EC nº 41/03; e o art. 3º da EC nº47/05. Em outras oportunidades já manifestei oposição quanto à possibilidade de revogação de regras de transição em matéria previdenciária. A revogação de regra de transição em matéria previdenciária constitui evidente violação do princípio da segurança jurídica, mas não é este o entendimento do STF. No julgamento da ADI nº 3.104, apreciando a revogação do art. 8º da EC 20/98, ficou assentado que:
Os critérios e requisitos para aquisição do direito à aposentadoria não se petrificam para os que – estando no serviço público a cumprir, no curso de suas atribuições, os critérios de tempo, contribuição, exercício das atividades, entre outros eleitos pelo constituinte – ainda não os tenham aperfeiçoado de modo a que não pudesse haver mudança alguma nas regras jurídicas para os que ainda não titularizam direito a sua aposentadoria.[8]
No caso da PEC 287/16, além de ser profundamente questionável a idade proposta para a concessão do benefício voluntário – 65 anos para homens e mulheres, inclusive trabalhadores rurais – a injustiça da nova regra de transição apresentada é mais do que evidente. Pessoas que contribuíram por 15, 20 ou 25 anos recebem o mesmo tratamento daquelas cujo ingresso no mercado de trabalho é recente. Se nada for alterado, os trabalhadores que contarem com menos de 50 anos de idade, se forem homens, ou menos de 45, no caso das mulheres serão afetados de forma drástica. Se estivermos tratando de um servidor público com 25 anos de contribuição e que tenha 45 de idade, ele teria de continuar exercendo a sua atividade por mais 20 anos para pode postular o benefício. E neste caso, como veremos, tendo um tempo total de serviço de 45 anos de contribuição, ainda não teria direito de receber um benefício com cem por cento da média de suas contribuições.
Constantemente, entre o novo que necessita ser instituído, mas que ainda não pode ser aplicado, em sua inteireza, e o velho com o qual se deseja romper, são estabelecidas regras para despressurizar a tensão, permitindo uma transição razoavelmente tranquila para os novos tempos. Assim, embora seja sempre possível a modificação dos sistemas de proteção social para promover uma adaptação aos novos contornos sociais, desde que o seu núcleo essencial seja preservado, tais transformações reclamam regras de transição adequadas e proporcionais.
Elemento peculiar dessa técnica de proteção social, que difere substancialmente dos demais direitos prestacionais decorre do caráter contributivo da previdência social. Inequivocamente, a obrigatoriedade do recolhimento das contribuições implica restrição no acesso à almejada cobertura do seguro social, pois aqueles que não têm capacidade contributiva ou exercem atividade econômica na informalidade não são amparados pela previdência social. A limitação obrigatória efetuada sobre o resultado econômico do trabalho dos segurados torna mais nítidos os direitos e deveres que emanam a relação jurídica de previdência social – relação complexa cujo desenvolvimento progressivo produz vários direitos para os beneficiários,[9] até a constituição de um direito mais amplo ou principal[10], no caso do regime geral, representado pelas aposentadorias ofertadas – conferindo uma maior justiciabilidade às posições jurídicas dela decorrentes. Diferentemente da assistência social, cujas prestações, via de regra,[11] não produzem um direito subjetivo passível de ser exigido em face do Estado, não podem os regimes previdenciários públicos alegarem dificuldades financeiras para desincumbir-se do pagamento de benefícios previdenciários cujos requisitos de acesso já foram preenchidos pelos segurados. É em razão da previdência social estabelecer um vínculo entre a capacidade contributiva e as prestações previdenciárias ofertadas, convertendo uma parte do resultado da atividade produtiva e a solidariedade social em proteção social individual e previsível, que se materializa uma expectativa jurídica legítima, nos beneficiários, de serem amparados nos momentos de necessidade social[12].
Por tais motivos, infere-se que a regra de transição ofertada fere o princípio da proporcionalidade, além de desprezar o histórico contributivo dos trabalhadores, o que sempre deveria ser levado em consideração na estipulação de regras de transição em matéria de previdência social[13].
[1] A reorganização foi efetivada pela MP nº 726, de 12.05.2016, convertida na Lei nº13.341/16.
[2] SICHES, Luis Recasens. Introducción al estudio del derecho. 13. ed. México: Editorial Porrúa, 2000, p.112.
[3] SARLET, Ingo. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição do retrocesso no direito constitucional brasileiro, p. 96 .
[4] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1997, p. 320 – 321.
[5] CAETANO, Marcelo Abi-Ramia, et. al. O fim do fator previdenciário e a introdução da idade mínima: questões para a previdência social no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA, 2016. (Coleção Texto para Discussão nº 2230). Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=28616. Acesso em: 23 dez. 2016.
[6] Em 2015 foram encontrados 12 países do mundo cuja expectativa de vida superava os 82 anos Suíça (83,4 anos), Espanha (82,8), Itália (82,7), Islândia (82,7), Israel (82,5), França (82,4), Suécia (82,4), Japão (83,7), Cingapura (83,1), Austrália (82,8), Coreia do Sul (82,3) e Canadá (82,2). Os dados podem ser conferidos na compilação anual da OMS: World Health Statistics 2016: Monitoring health for the SDGs. Disponível em: http://www.who.int/gho/publications/world_health_statistics/2016/en/# . Acesso em 10. dez 2016.
[7] SOUZA JÚNIOR, José Ronaldo de Castro; LEVY, Paulo Mansur. Impactos do novo regime demográfico brasileiro sobre o crescimento econômico (2010-2050). In: CAMARANO, Ana Amélia. Novo regime demográfico: uma nova relação entre população e desenvolvimento? Rio de Janeiro: IPEA, 2014.
[8]STF, ADI no 3.104, Rel. Min. Cármen Lúcia, Pleno, DJU 9/11/2007.
[9] Exemplificativamente, aponte-se: acesso ao auxílio-doença por força de acidente do trabalho, mesmo que não tenha sido implementada a carência de 12 meses; direito de manter a vinculação com o sistema enquanto estiver em gozo de benefício; cômputo do tempo de serviço ou de contribuição já prestado no mesmo regime ou nos demais regimes pela via da contagem recíproca, etc.
[10] RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos,Vol. 2, p. 636.
[11] O benefício de prestação continuada previsto no artigo 20 da Lei nº 8.742/93 constitui uma saudável exceção às práticas de institucionalização das políticas sociais, as quais mesmo quando introduzidas por Lei, ficam dependentes de disponibilidade orçamentária não configurando um autêntico direito subjetivo. É o caso do “Bolsa-Escola” (Leis nº 9.533/97 e 10.219/2001). Mesmo quando o direito é estabelecido, há uma tendência a interpretá-lo da maneira mais restrita possível. Essa asserção pode ser comprovada mediante o exame da decisão do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADin nº 1232-1/DF, a qual, por maioria, julgou improcedente a ação e, em decorrência, reconheceu a constitucionalidade do §3º do artigo 20 da Lei 8.742/93 (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1232-1/DF, Pleno, Rel. p. acórdão Ministro Nelson Jobim, DJ 01.06.2001). No julgamento da medida liminar, inclusive, o STF entendeu que a concessão de liminar tornaria a disposição constitucional dependente de regulamentação para ser aplicada, privando a administração de conceder novos benefícios até o julgamento final da ação. (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1232-1/DF, Medida Cautelar, Pleno, un., Rel. Ministro Maurício Corrêa, DJ 26.05.1995).
[12] ZACHER, Hans F. Seguridade social e direitos humanos. In: TORRES, Ricardo Lobo; MELLO, Celso Albuquerque (Orgs.). Arquivos de direitos humanos, vol. IV, Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 118.
[13] Na 15ª edição do meu livro, Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social, publicado pela Editora Atlas, em um anexo específico, examino os efeitos concretos que poderão ser produzidos na proteção social do nosso País, na hipótese de a proposta plasmada na PEC nº 287/16.
Daniel Machado da Rocha
Juiz Federal Presidente da 2ª Turma Recursal do Rio Grande do Sul, Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Doutor e Mestre em Direito pela PUC-RS. Coordenador acadêmico do Instituto Latino-Americano de Direito Social IDS e Coordenador da Especialização em Direito Previdenciário da ESMAFE/RS. Foi Promotor de Justiça no RS.
Fonte: Genjuridico.com.br/
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