Como se sabe, os contratos atípicos são vistos tradicionalmente como a máxima expressão da autonomia privada, tendo indiscutível importância na seara empresarial, como instrumentos de inovação, criatividade e viabilização de distintos arranjos ou negócios.
Quando se está diante de cenários em que a autonomia privada não tem maiores restrições, os problemas de tais contratos normalmente se restringem a saber quais são os seus parâmetros de interpretação e integração. Entretanto, em searas em que há importantes limitações à autonomia privada, especialmente em razão de normas imperativas que protegem direitos difusos ou direitos de vulneráveis, surgem novas ordens de preocupação em relação aos contratos atípicos.
Observa-se, portanto, que a identificação do contrato atípico não é trivial, já que envolve cuidadoso exame entre o objeto e a estrutura do contrato diante dos arquétipos legais. Sob essa perspectiva, a análise muitas vezes exige um delicado juízo de proporção, a fim de saber em que medida a utilização de elementos atípicos em contratos típicos pode desconfigurar estes últimos, tornando-os verdadeiros contratos atípicos[3]. Para tal análise, o que importa é saber se o novo arranjo adquire autonomia própria em relação ao tipo contratual de que partiu.
Tal aspecto já indica que a conclusão pela atipicidade não é algo que decorre da mera vontade das partes, mas sim do efetivo descolamento do arranjo contratual diante dos tipos contratuais já previstos. Dessa maneira, o afastamento formal do tipo pelas partes obviamente não tem eficácia quando o contrato, em sua essência e estrutura, seja considerado típico. Na verdade, caso isso fosse possível, as partes poderiam facilmente contornar regras imperativas de contratos típicos, simplesmente afirmando que o seu arranjo contratual não corresponde ao tipo verdadeiro.
Esclarecida a questão da identificação dos contratos atípicos, é importante destacar que a autonomia privada, embora seja mais extensa em relação a eles, não pode obviamente ser considerada absoluta. Dentre os limites à inovação e à criatividade empresarial, encontram-se as cláusulas gerais do Código Civil, diante do seu artigo 425, segundo o qual “É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.” (grifos nossos)
Outros importantes limites aos contratos atípicos são aqueles impostos pelas chamadas áreas de “regulação dura” que, por tratarem de interesses difusos ou de vulneráveis, estruturam-se a partir de um conjunto de regras obrigatórias, que não podem ser afastadas pelas partes e que se aplicam sempre que estiverem presentes os seus pressupostos materiais de justificação. São exemplos o Direito do Trabalho, o Direito do Consumidor, o Direito Ambiental e o Direito da Concorrência. Em todas essas áreas, aplica-se o princípio da primazia da realidade sobre a forma, até para evitar que as partes possam convenientemente mascarar ou tentar modificar a realidade por meio dos seus arranjos contratuais.
Diante desses limites, os contratos empresariais atípicos precisam se ajustar aos comandos obrigatórios das searas de regulação obrigatória, sob pena de, não o fazendo, estarem sujeitos à declaração de nulidade por fraude à lei imperativa (CC, art. 166) ou, a depender do caso, até mesmo por simulação (CC, art. 167).
Com efeito, por mais que uma das finalidades da atipicidade seja a de construir modelos mais vantajosos do que os previstos legalmente, em prol da inovação e da redução dos custos de transação, não se pode admitir que tais contratos se prestem à consecução de vantagens econômicas ou eficiências à custa do descumprimento de leis imperativas. É por essa razão que o exame dos contratos atípicos na atualidade requer uma cuidadosa reflexão sobre o equilíbrio entre autonomia e heteronomia.
Isso é particularmente importante porque, em várias das suas utilizações mais recentes, incluindo aí os negócios da chamada economia do compartilhamento, discute-se o problema da evasão da regulação jurídica imperativa – o que os americanos chamam de “circumvention”[4] –, por meio da criação de novos modelos contratuais cujo objetivo precípuo é atingir vantagens similares a de modelos legais sem as respectivas responsabilidades. De fato, uma das questões mais atuais do debate contratual é a de que muitos dos novos modelos de negócios apresentam suas eficiências e redução de custos de transação precisamente porque se evadem de regulações importantes.
Tais dificuldades muitas vezes se potencializam pelo tamanho e complexidade dos instrumentos contratuais, o que cria uma dificuldade inicial até mesmo para a compreensão do objeto do contrato e para saber se ele é realmente atípico. Como se viu anteriormente, tal exame pode ser extremamente complexo.
O que é mais preocupante é que teoria jurídica não está preparada para lidar com todos esses fenômenos, o que mostra a necessidade urgente de um esforço concentrado dos juristas, a fim de criar uma base teórica consistente em torno dos contratos atípicos, seja para propor critérios para identificá-los e diferenciá-los dos contratos típicos, seja para definir as cláusulas gerais e as normas imperativas que a eles se aplicam, seja para aprofundar a reflexão em torno dos problemas de fuga da regulação jurídica imperativa por parte de contratos atípicos.
Somente assim se poderá equacionar aquele que é o problema maior da questão: assegurar que os contratos atípicos continuem a cumprir seu importante papel de inovação sem se tornarem instrumentos fáceis para burlar leis imperativas.
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[1] Nesse sentido, ensina Álvaro Villaça Azevedo (Teoria geral dos contratos típicos e atípicos. São Paulo: Atlas, 2002. p. 131) que “tipicidade significa presença, e atipicidade ausência, de tratamento legislativo específico”.
[2] Ver: VASCONCELOS, Pedro Pais. Contratos atípicos. Coimbra: Almedina, 1995; DUARTE, Rui Pinto. Tipicidade e atipicidade dos contratos. Coimbra: Almedina, 2000.
[3] GOMES, Orlando. Contratos. 26.ed. Rio de Janeiro: Forense. p. 127.
[4] ELERT, Niklas; HENREKSON, Magnus. Evasive entrepreneurship. Small Business Economics. v. 47, n. 1, pp. 95-113, jun. 2016.
por Ana Frazão - Advogada. Professora de Direito Civil e Comercial na UnB. Ex-Conselheira do Cade
Fonte: Jota.info/
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