Segue na 1ª Seção do STJ o julgamento do leading case de uma das matérias tributárias mais relevantes da atualidade. Trata-se do REsp 1.221.170, no qual se debate, com timbre de recurso repetitivo, o conceito de “insumos” para fins de creditamento de Pis e Cofins no regime não-cumulativo, previsto no artigo 3º, II da Lei 10.833/03.
Até aqui já votaram os ministros Nunes Maia (relator), Campbell Marques e Regina Costa, de maneira relativamente favorável aos contribuintes, e ministros Og Fernandes e Benedito Gonçalves, com entendimento favorável ao Fisco, sob as ressalvas e nuances a serem mais bem detalhadas a seguir. Na última sessão de 9 de novembro, os autos saíram com pedido de vista da ministra Assusete Magalhães.
A segunda, e igualmente extremada, linha hermenêutica para o conceito de insumos é aquela que o aproxima da ideia de “despesa necessária”, prevista no artigo 299 do Regulamento do IR. Sob esse amplíssimo parâmetro, catalogam-se como insumos quaisquer dispêndios necessários à consecução do empreendimento econômico do contribuinte, globalmente considerado.
De tese e antítese floresceu, então, a síntese representada pela terceira corrente, que veio fixar o alcance de insumos a meio caminho das duas primeiras. Trata-se de entender insumos como os dispêndios necessários e vinculados ao processo produtivo, sem, contudo, deles se exigir o desgaste em contato direto com o produto final. O conceito, vê-se, é em tudo similar ao conhecido custo de produção, também haurido no IRPJ (RIR/99, art. 290).
Por mais úteis que possam ser ao empreendimento, custos e despesas não vinculados ao setor produtivo, tais como despesas de vendas (marketing, representantes comerciais etc.) não são insumos. É por isso, aliás, que apenas indústrias e prestadores de serviços absorvem insumos; empresas comerciais simplesmente não têm insumos, pois nada produzem, e por isso o art. 3º, II da Lei nº 10.833/03 é-lhes simplesmente incogitável.
Por outro lado, não é necessário, para essa linha hermenêutica, que o dispêndio tenha contato direto com o produto final.
Enfim, essa terceira e intermediária corrente trabalha com a noção de “pertinência ao processo produtivo” ou, para ficarmos com a expressão empregada no referido art. 290 do RIR, “aplicação na produção”. A pertinência ao processo produtivo é, pois, o requisito necessário e suficiente à caracterização do insumo para Pis/Cofins.
Paulatinamente, porém, a ideia de pertinência foi evoluindo – a nosso ver, “involuindo” – na jurisprudência em direção à noção de “essencialidade”. Não bastava mais que o dispêndio estivesse conectado simplesmente com o segmento produtivo da empresa, instava que com ele mantivesse uma relação qualificada, de especial relevância, uma relação tal que, sem o dispêndio, o produto final “não fosse o mesmo”.
Essa verdadeira corruptela do conceito original de pertinência é um grande desserviço ao encaminhamento da questão, tanto em termos técnicos, como pragmáticos. A investigação da essencialidade do insumo introduz um nefasto subjetivismo na análise de cada processo produtivo, uma descabida intromissão da autoridade fiscal em decisões tipicamente empresariais, que competem unicamente ao empreendedor.
O empresário tem, digamos, o direito de conceber um processo industrial mais ou menos eficiente, de ser, enfim, mais ou menos competente na gestão do seu negócio. Se incorre em dispêndios que poderiam ser evitados sem prejuízo ou modificação no resultado final, nem por isso esse dispêndio deixa de ser um ingrediente do “seu” processo produtivo!
Com essa cisão da corrente intermediária, podemos falar, hoje, em quatro, e não mais apenas três, correntes a disputar a primazia do conceito de insumos, organizados na seguinte escala de amplitude:
A pertinência “convertida” em essencialidade adentrou a jurisprudência judicial pela porta do REsp 1.246.317. Em esmerado voto, o relator Campbell Marques foi lá categórico:
Não basta que o bem ou serviço tenha alguma utilidade no processo produtivo ou na prestação do serviço: é preciso que ele seja essencial. É preciso que a sua subtração importe na impossibilidade mesma da prestação do serviço ou da produção, isto é, obste a atividade da empresa, ou implique em substancial perda de qualidade do produto ou serviço daí resultante.
Voltemos, então, ao leading case. O relator Nunes Maia votara inicialmente com a corrente ampla das “despesas necessárias”. O ministro Og, na sequência, votou com a corrente restrita do IPI, a qual, diga-se de passo, não tem hoje mais nenhuma ressonância no CARF/MF. O ministro Campbell Marques, como era de se esperar, reiterou o entendimento da pertinência qualificada pela essencialidade.
O ministro Benedito Gonçalves, então, proferiu voto algo esfíngico, comungando o entendimento da essencialidade, que já revelara em precedentes de turma, mas acompanhando o ministro Og Fernandes no desprovimento integral do REsp, interposto pelo contribuinte contra acórdão que lhe negava integralmente o pedido inicial.
A ministra Regina Costa acompanhou, na essência, o entendimento do ministro Campbell. Gizou, é verdade, uma sutil distinção entre essencialidade e relevância, que nos pareceu de pouca ou mesmo nenhuma repercussão prática, tanto assim que o ministro Campbell não hesitou em ajustar seu voto ao dela. O mesmo fez, também, o relator Nunes Maia, declinando da corrente das “despesas necessárias” para aderir ao voto da ministra Regina.
Portanto, dos cinco votos proferidos, três – ou quatro, a depender da leitura que façamos do voto do Ministro Benedito – aderem à corrente intermediária da “pertinência com essencialidade”.
Assim, gostemos ou não, fato é que essa parece ser a tendência do leading case: calibrar o conceito de insumo como dispêndio pertinente e essencial ao processo produtivo da empresa.
É com esse conceito que nós, operadores do direito, possivelmente teremos que trabalhar, e é sobre ele que tecemos as considerações que seguem.
Nenhum dos votos proferidos até aqui expressaram o ponto, mas nos parece indisputável que a tal essencialidade só há de ser perscrutada para itens que não se incorporam ao produto final; para itens que a ele se agregam, a essencialidade deverá ser inexoravelmente presumida. Era só o que faltava: o fisco glosar o custo incorrido pela montadora com a instalação de estofamento em couro no veículo porque ele não é “essencial”, afinal o motorista pode perfeitamente conduzi-lo sem esse supérfluo conforto.
Se não for assim, teremos dispêndios que geram crédito para IPI e não geram para Pis/Cofins, em um completo contrassenso dentro do sistema tributário.
Já dissemos, também, que a essencialidade dá azo a indesejáveis especulações subjetivas, ao contrário do original critério intermediário da pertinência, marcadamente mais objetivo. Inobstante essa vocação para o casuísmo – o que é essencial para um pode não parecer assim para outro –, é, sim, possível buscar-lhe um alcance mínimo. O que queremos dizer é que, em alguns casos, a essencialidade pode perfeitamente ser constatada sem a necessidade de aferição técnica ou pericial. O bom senso do aplicador do direito será capaz de identificá-la.
No REsp 1.246.317, estava em pauta o creditamento sobre despesas com materiais de limpeza e serviços de dedetização do ambiente fabril do contribuinte, uma indústria de alimentos. O pleito fora sistematicamente recusado em todas as instâncias, porque prevalecera até ali o conceito do IPI. Não houvera nos autos qualquer perícia ou laudo técnico analisando especificamente as condições do estabelecimento daquele contribuinte.
Mesmo assim, o relator Campbell Marques sentiu-se plenamente habilitado a investigar o ponto, e em poucas linhas constatou genericamente o óbvio: despesas com assepsia são absolutamente essenciais a uma indústria de alimentos. Aplicou, então, sem tergiversar, essa impressão do senso comum ao caso concreto.
Infelizmente não tem sido assim no leading case. Todos os votos até aqui aderentes à essencialidade, inclusive o do Ministro Campbell Marques, devolvem os autos às instâncias inferiores para instrução probatória tendente a aferição da essencialidade, como se se tratasse de conceito necessariamente técnico, impenetrável pelo especialista em leis.
É bem verdade que, ao contrário do REsp 1.246.317, que versava uma espécie única e bem delimitada de insumos – dispêndios com limpeza –, o leading case abrange um conjunto absolutamente diverso e aleatório de itens, alguns certamente de mais difícil compreensão pelo tribunal; mas em meio a eles havia alguns facilmente aferíveis, entre os quais os mesmos dispêndios de limpeza (no leading case a parte também é uma indústria de alimentos). Poderia e deveria o tribunal, então, operar desde logo a qualificação jurídica do fato, isto é, a catalogação do dispêndio como essencial ou supérfluo ao processo produtivo.
É especialmente preocupante esse excessivo comedimento revelado até aqui no enfrentamento da essencialidade no leading case. Quem pariu Mateus, que o embale; se converteram a boa, segura e correta pertinência na tormentosa e casuística essencialidade, que saibam agora manuseá-la.
O critério da essencialidade ao processo produtivo, principalmente se aplicado da forma conservadora como se anuncia no leading case, tende ao non liquet.
por Paulo Roberto Andrade é advogado, mestre em direito tributário pela USP, sócio do escritório Tranchesi Ortiz e Andrade Advocacia e ex-integrante do Conselho Municipal de Tributos de São Paulo.
Fonte: Conjur
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