A Lei Complementar 157, publicada em 30 de dezembro de 2016, introduziu diversas alterações na Lei Complementar 116/2003, que disciplina o ISS.
Entre as modificações, está a alteração da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar 116/2003, com a inclusão, no subitem 1.03, das atividades de “armazenamento ou hospedagem de dados, textos, imagens, vídeos, páginas eletrônicas, aplicativos e sistemas de informação”, e com a inclusão do subitem 1.09, referente à “[d]isponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet”.
A hipótese de incidência do ISS é definida pelo inc. III do art. 156 da Constituição Federal, que atribui aos municípios competência para instituir imposto sobre “serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”.
Como se vê, para que uma operação possa ser submetida à incidência do ISS, ela deve, inicialmente, corresponder a um “serviço de qualquer natureza”. Não pode, por outro lado, constituir serviços de “transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação”, que são os serviços previstos no inc. II do art. 155 da Constituição Federal. Por fim, deve estar definida em lei complementar, ou seja, enquadrada na Lista de Serviços estabelecida pela Lei Complementar 116/2003.
O conceito de “serviço de qualquer natureza” deve ser buscado no Direito Privado, na medida em que, sendo utilizado pela Constituição Federal para definir a competência tributária dos municípios, não pode a lei tributária adotar definição distinta daquela a ele dada pelo Direito Privado.
E, no Direito Privado, “serviço” corresponde sempre a uma “obrigação de fazer”, a um facere, a um esforço humano empreendido em benefício de outrem[1]. Opõe-se à obrigação de fazer a obrigação de dar, que consiste em um vínculo jurídico que impõe ao devedor a entrega de alguma coisa já existente[2].
Esse conceito de serviço foi consagrado na jurisprudência a partir do julgamento do RExt 116.121-3, no qual se discutia a constitucionalidade do item 79 da Lista de Serviços anexa ao Decreto-Lei 406/68, que incluía, entre os serviços sujeitos à incidência do ISS, a “locação de bens móveis”. Naquele julgamento, o STF concluiu pela inconstitucionalidade da incidência do ISS sobre a “locação de bens móveis”, entendendo que ela contrariaria o art. 156, inc. III, da Constituição Federal, que define a hipótese de incidência do ISS como sendo a prestação de “serviços de qualquer natureza”, conceito cujo núcleo deve ser construído a partir de uma “obrigação de fazer” e no qual não se enquadra a “locação de bens móveis”, que constitui “obrigação de dar”.
Esse entendimento redundou na edição da Súmula Vinculante 31, cuja enunciado está redigido nos seguintes termos: “É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”. Vale anotar que o citado enunciado serviu como fundamento para se afastar a cobrança do ISS sobre a locação de filmes cinematográficos, videoteipes, cartuchos para video games e assemelhados[3].
Tem-se então que, nos termos do inc. III do art. 156 da Constituição Federal, para que uma operação possa ser submetida à incidência do ISS, ela deve corresponder à prestação de um serviço, que, por sua vez, deve consubstanciar necessariamente uma “obrigação de fazer”.
Deve-se destacar que a inclusão de determinada atividade na Lista de Serviços anexa à Lei Complementar 116/2003 não é suficiente para tornar legítima a incidência do ISS sobre esta atividade. Com efeito, se a Constituição Federal, ao definir a competência tributária dos Municípios, é expressa ao afirmar que esta competência está limitada aos “serviços de qualquer natureza”, não pode o legislador complementar incluir na Lista de Serviços qualquer atividade que não constitua um serviço, pois, ao fazê-lo, estaria pretendendo atrair para a incidência do ISS atividade que escapa à competência tributária do município e, assim, atraindo para o subitem da Lista de Serviços que prevê tal atividade a pecha de inconstitucional.
No conflito entre o comando constitucional que determina que o ISS só pode incidir sobre atividades que constituam “obrigação de fazer” e o comando da lei complementar que pretende fazer o ISS incidir sobre atividade que não constitui serviço, por não englobar uma “obrigação de fazer”, deve prevalecer o comando constitucional. Foi justamente o que ocorreu, como se viu, em relação ao item 79 da Lista de Serviços anexa ao Decreto-Lei 406/68, cuja inconstitucionalidade acabou reconhecida pelo STF.
Por fim, convém que se faça uma observação acerca do conceito de “serviço” para fins de tributação no ordenamento jurídico brasileiro. Ao contrário de diversos outros países, em que o conceito de serviço é formado por exclusão (serviço é tudo o que não é operação de circulação de bens materiais), no Brasil o conceito de serviço possui núcleo próprio.
A ignorância dessa peculiaridade do ordenamento jurídico brasileiro faz com que não poucas vezes se denomine de serviço o que, para fins de tributação, serviço não é. E tal ocorre inclusive nos instrumentos contratuais que formalizam diversas atividades. Isso faz com que a análise da tributação incidente sobre determinada operação não possa ser feita apenas a partir da nomenclatura utilizada no contrato que a formaliza. É preciso perquirir qual é, efetivamente o objeto do contrato, para verificar se aquilo que nele se denomina serviço é efetivamente serviço para fins tributários.
Definida a hipótese de incidência do ISS, deve-se agora verificar se nela podem ser enquadradas as atividades incluídas pela Lei Complementar 157/2016 na Lista de Serviços anexa a Lei Complementar 116/2003.
Novas atividades incluídas
A Lei Complementar 157/2016 incluiu na Lista de Serviços anexa à Lei Complementar 116/2003 o “armazenamento ou hospedagem de dados, textos, imagens, vídeos, páginas eletrônicas, aplicativos e sistemas de informação” (subitem 1.03) e a “[d]isponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet” (subitem 1.09).
Antes de se analisar com mais detalhe cada uma dessas atividades, convém que se faça duas observações. A primeira diz respeito à dificuldade da compreensão dos fenômenos do mundo virtual, que faz com que frequentemente se recorra a analogias para descrever tais fenômenos.
É o que ocorre quando se refere a “armazenagem” de dados, “hospedagem” de sites ou “aluguel” de filmes disponibilizados por meio de streaming, por exemplo. A qualificação jurídica desses fenômenos, no entanto, não pode se dar com base nas analogias utilizadas para descrevê-los. Deve-se buscar a realidade dos fatos e, com base nela, a norma jurídica aplicável.
A segunda diz respeito à distinção entre a natureza jurídica da atividade e a tecnologia nela eventualmente empregada. De bem pouco servirá saber que o acesso a determinado conteúdo audiovisual se dá por meio de streaming, se não se souber que, do ponto de vista jurídico, esse acesso se dá por meio de um licenciamento do uso deste conteúdo audiovisual.
A mesma atividade, do ponto de vista jurídico, pode ser levada a cabo com o emprego de diferentes tecnologias, sem que isso justifique um tratamento jurídico diferenciado. Assim, o licenciamento do uso de uma obra audiovisual deve receber o mesmo tratamento jurídico tanto quando o acesso a essa obra se dá mediante a entrega de um suporte físico em que ela esteja gravada como quando este acesso se dá por meio de streaming.
No caso do “armazenamento ou hospedagem de dados, textos, imagens, vídeos, páginas eletrônicas, aplicativos e sistemas de informação” (subitem 1.03), o que se tem, fundamentalmente, é a cessão de uso de espaço digital para armazenamento de dados em servidores.
O “uso” é definido pelo art. 1.412 do CCiv. e corresponde a um direito de “utilização imediata da própria coisa”[4], ao direito de usar coisa alheia[5], conferindo a seu titular “a faculdade de, temporariamente, fruir a utilidade da coisa que grava”[6]. Assim definido o uso, facilmente se percebe que a cessão de uso não constitui uma obrigação de fazer, mas sim uma típica obrigação de dar.
Já no caso da “[d]isponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet” (subitem 1.09), o que há é o licenciamento ao usuário do acesso a um conteúdo digital (vídeo, áudio, imagem, texto, etc.) que está armazenado em um servidor. Anote-se que não há transferência definitiva ao usuário do conteúdo digital que integra o acervo da empresa responsável pelo licenciamento.
O acesso se dá “por meio da internet”, que é utilizada como meio de comunicação. Por isso, o acesso ao conteúdo é qualificado como OTT (Over the Top). Convém observar, no entanto, que o responsável pela transmissão é o provedor de conexão, não a empresa que disponibiliza o conteúdo.
Pois bem, os arquivos digitais que compõem o conteúdo ao qual o usuário tem acesso integram o gênero “obra intelectual” e os direitos que sobre eles podem ser exercidos constituem direitos autorais.
Enquanto bens incorpóreos ou imateriais, tanto os arquivos digitais como os direitos patrimoniais a eles relativos podem ser transmitidos mediante cessão[7]. O licenciamento dos direitos autorais relativos aos arquivos digitais corresponde a uma cessão parcial dos direitos relativos a esses bens incorpóreos. No licenciamento da empresa para os usuários é cedido apenas o direito de uso. Trata-se, portanto, de uma simples cessão do uso. E a cessão de uso, como se viu, envolve uma típica obrigação de dar. Diga-se que a própria redação do subitem 1.09, ao se referir à “disponibilização” e à “cessão” evidencia que se está diante de uma obrigação de dar, e não de uma obrigação de fazer.
Assim, a Lei Complementar 157/2016, ao pretender submeter à incidência do ISS operações que não correspondem a uma prestação de serviços, por envolverem obrigações de dar, e não de fazer, coloca-se em testilha com a hipótese de incidência do ISS definida na Constituição Federal, padecendo de inarredável inconstitucionalidade.
Deve-se observar que a eventual existência, na relação contratual que se forma entre a empresa e o usuário, de obrigações acessórias que caracterizem obrigações de fazer e que estejam previstas na Lista de Serviços anexa à Lei Complementar 116/2003 em nada altera a conclusão aqui apresentada.
Com efeito, como já decidiu o STJ em diversas oportunidades, as atividades-meio não podem ser destacadas do contrato e tributadas pelo ISS e nem justificar a tributação do contrato como um todo[8].
E o mesmo vale para contratos complexos, de natureza indivisível, que preveem direitos e obrigações que não são autônomos, hipótese em que não é dado aos municípios tributar as parcelas do contrato que, isoladamente consideradas, seriam tributáveis pelo ISS.
Nesse ponto, vale recordar o que se passou com as atividades de leasing e franchising, antes de estarem expressamente previstas na Lista de Serviços sujeitos à incidência do ISS. Os municípios pretendiam submeter tais atividades à incidência do ISS, a pretexto de que elas envolviam atividades expressamente previstas na Lista de Serviços, como a locação, no caso do leasing, e a assistência técnica e administrativa ou a cessão do direito de uso de marca, no caso do franchising.
O STJ, no entanto, não admitiu a cobrança do ISS em relação a tais atividades, seja porque elas envolviam contratos típicos, com características e conteúdo econômico próprios, distintos daqueles correspondentes às atividades previstas na Lista de Serviços sujeitos à incidência do ISS[9], seja porque não correspondiam a uma pluralidade de contratos autônomos formalizados em um único instrumento, mas sim a um contrato complexo, que previa de forma indissociável múltiplos direitos e obrigações para as partes contratantes, de modo que não se poderia ter a exigência do ISS apenas sobre as parcelas da remuneração que evidenciassem prestação de serviços sujeitos ao imposto[10].
Conclusão
Nesse contexto, pode-se antecipar que a pretensão de cobrar ISS em relação a essas atividades de “armazenamento ou hospedagem de dados, textos, imagens, vídeos, páginas eletrônicas, aplicativos e sistemas de informação” e “[d]isponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet” suscitará questionamentos, na medida em que conflita com o perfil constitucional do imposto.
[1] BEVILACQUA, Clóvis. Direito das Obrigações. 9. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1957. p. 54; DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral das Obrigações. 2. v. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1990-1991. p. 85; GOMES, Orlando. Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1961. p. 67; MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 1967. p. 95; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 2. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990. p. 43; PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. v. 47. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972. p. 3; SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil : obrigações em geral. V. 2. 6. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1995. p. 61.
[2] BEVILACQUA, ob. cit., p. 54; DINIZ, ob. cit. p. 86; GOMES, ob. cit., p. 67; MONTEIRO, ob. cit., p. 95; PEREIRA, 1990, p. 38.
[3] RExt 626.706 - SP
[4] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. V. 4. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p. 207.
[5] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. V. 5. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 450; GOMES, Orlando. Direitos reais. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 351.
[6] GOMES, 2004, p. 351.
[7] A Lei 9.610/98 não define de forma precisa e unívoca o que seja licença, cessão ou concessão de direitos autorais; refere-se, apenas, em seu art. 49, à transferência parcial ou total, dando como exemplos desta transferência o “licenciamento, concessão e cessão”, mas admitindo também que esta transferência se dê mediante “outros meios admitidos em direito”. Costuma-se, no entanto, reservar o termo “cessão” para a transferência ilimitada, de todos os direitos do titular do direito autoral, ao passo que a expressão “licenciamento” é empregada para designar a transferência limitada, de apenas alguns direitos do titular autoral. Por isso, sempre que neste parecer utilizarmos a expressão cessão, a utilizaremos com alguma qualificação (“cessão de uso”, e.g.).
[8] REsp 883.254; REsp 69.986.
[9] EmbDiv em REsp 341.
[10] REsp 222.246; REsp 189.225.
por Henry Lummertz é advogado e sócio do escritório Souto Correa.
Fonte: Conjur
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