Inicio hoje um conjunto de quatro textos em favor da reforma previdenciária. Por já ter escrito muito sobre o assunto e dada a dinâmica que marcará o tratamento da questão no Congresso onde os opositores à reforma levantarão objeções a aspectos específicos não vou expor nos artigos as razões, conhecidas por todos, que sustentam a necessidade da reforma e sim irei me deter nas críticas principais que costumam ser feitas a propósito do tema.
Os pontos abordados serão: 1 a tese de que "a previdência é superavitária"; 2 a possibilidade de substituir a reforma pela cobrança da dívida ativa; 3 a idade mínima em comparação com a expectativa de vida e 4 as diferenças regionais. Hoje tratarei aqui do primeiro ponto.
Há quem sustente a tese, assim como há grupos nos EUA que argumentam que "Elvis Presley não morreu" ou que a notícia de que o homem chegou à Lua não teria passado de uma fraude cinematográfica. Há de tudo no mundo e qualquer um é livre de acreditar no que quiser, desde "Elvis não morreu" até a existência do ET de Varginha. A verdade, porém, é que Elvis morreu e o homem chegou à Lua. Pensar o contrário é digno da literatura fantástica.
Entenda o leitor do que estamos falando. Em 1995, a receita de contribuições do INSS foi de 4,6 % do PIB e a sua despesa com o pagamento de benefícios, de igual montante, caracterizando uma situação de equilíbrio de caixa. Em 2016, estima-se que esses percentuais terão sido da ordem de 5,7 % e 8,1 % do PIB, respectivamente. Em outras palavras, o INSS em 21 anos terá passado do equilíbrio de caixa a um déficit de 2,4 % do PIB.
Os críticos alegam que isso é falso, porque se a receita do INSS incorporar algumas outras rubricas tributárias hoje arrecadadas pelo Tesouro Nacional (TN) e parte da sua despesa for assumida pelo Tesouro (sempre ele!) o déficit se tornaria um superávit. O leitor deve estar se perguntando que mágica é essa e se, afinal de contas, o TN fica em Marte, a ponto de desviar para lá os problemas que, afinal de contas, afligem a quem vive nas fronteiras demarcadas entre o Oiapoque e o Chuí. Vejamos essa alquimia contábil mais de perto.
Quem afirma que a reforma pode ser evitada com uma reclassificação contábil não entendeu a essência da questão
Vamos considerar que o Governo Federal inclui duas entidades: o TN e o INSS. Para efeitos de simplificação, vamos assumir que o primeiro tem duas fontes de receita (A e B) e o segundo uma (C). Concretamente, nos termos do debate, A pode ser representada por impostos, B por contribuições exceto a previdenciária e C pela contribuição previdenciária. Por sua vez, assumese aqui que o TN tem um gasto (D) na forma de despesas gerais e o INSS dois tipos de gasto, com benefícios urbanos (E) e rurais (F). Assim, temos as equações
Resultado TN = A + B D
Resultado INSS = C E F
Resultado Governo Federal = A + B D + C E F, que é equivalente a
Resultado Governo Federal = A + B + C D E F
Em que consiste a contabilidade criativa do batalhão antirreformista? Numa manipulação algébrica que levaria a deslocar a receita B de contribuições exceto a previdenciária do TN para o INSS e repassar a despesa F rural deste para o TN. Como ficariam então as equações? Assim:
Resultado TN = A D F
Resultado INSS = B + C E
O que acontece com o resultado do Governo Central? Ele é igual à soma dos dois resultados anteriores, ou seja,
Resultado do Governo federal = A D F + B + C E, que é equivalente a
Resultado Governo Federal = A + B + C D E F
Como o leitor já percebeu, no final não mudou nada! Sim, caro leitor, o que os antirreformistas propõem é, pura e simplesmente, dar uma volta de 360 graus, mudando toda a classificação da contabilidade fiscal para deixar tudo rigorosamente como está.
O centro da discussão é que há questões que é preciso deixar bem claras:
A despesa primária exceto juros do Governo Central passou de 14% do PIB em 1991 para 23% do PIB em 2016.
No Brasil, a idade em que as pessoas se aposentam em média por tempo de contribuição é de 53 anos no caso das mulheres e de 55 anos no caso dos homens.
Pelas projeções do IBGE, em 2017 o número de pessoas entre 15 e 59 anos de idade é de 136 milhões e o de 60 anos e mais, de 26 milhões; em 2050, o primeiro grupo será menor (128 milhões) e o segundo terá se multiplicado por um fator 2,5 (66 milhões).
Não estamos discutindo uma questão contábil: estamos lidando com uma questão física de matemática elementar: a relação entre as pessoas que estarão com 60 anos e mais e o grupo que genericamente se considerou no passado como de "idade para trabalhar", nos próximos 33 anos, passará de 19% para 52%.
Quem enche a boca para afirmar que a reforma previdenciária pode ser evitada mediante uma reclassificação contábil não entendeu a essência da questão ou entendeu e substituiu a matemática pela ideologia.
Fabio Giambiagi, economista, é superintendente da área de Planejamento e Pesquisa do BNDES e coorganizador do livro "Economia Brasileira Contemporânea: 1945/2010" (Editora Campus). Email: fgiambia@terra.com.br.
Fonte: Valor
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