Introdução. Qual a relação que existe entre direito, contabilidade e tributação?
É bastante comum ouvirmos que os advogados têm que dominar outras áreas do conhecimento, além da jurídica, para exercerem qualificadamente suas funções. No caso do direito tributário, é indiscutível que conhecimentos contábeis são imprescindíveis para uma boa prática jurídica.
Não é preciso uma análise profunda das razões dessa interdisciplinaridade para entendermos sua importância: basta ler o Decreto-Lei nº 1.598, promulgado em 1977, e que ainda é uma das principais leis que regulam a tributação da renda das pessoas jurídicas. Diz seu artigo 6º: Lucro real é o lucro líquido do exercício ajustado pelas adições, exclusões ou compensações prescritas ou autorizadas pela legislação tributária.
Como explicar a exclusão das “reversões de provisões e recuperações de créditos baixados como perda” das bases de cálculo do PIS e da COFINS sem recorrer aos conhecimentos contábeis?
Essa constante intersecção entre Contabilidade e Direito, presente de forma escancarada no direito tributário, decorre do fato de que a vida econômica das empresas é uma realidade que só pode ser apreendida a partir das demonstrações contábeis.
São os fatos econômicos, retratados por meio dos registros contábeis, que devem ser adequadamente capturados pelas normas tributárias. Seria possível tributar a renda sem utilizar como ponto de partida as demonstrações financeiras? E a receita (cujo conceito jurídico nem os próprios juristas conseguiram acordar até hoje), existe sem o rastro contábil das operações econômicas?
Que outro documento que não a contabilidade (seja o caixa – que represente valores efetivamente recebidos – ou o contas a receber e a receita bruta) serviria de ponto de partida para identificar se há ou não receita tributável? Sem dúvida que inúmeros outros documentos são importantes no caminho da investigação sobre a incidência tributária (os contratos, as notas fiscais, a natureza jurídica da relação comercial estabelecida), que se pauta pelas normas jurídicas e pelos princípios constitucionais (capacidade contributiva, legalidade etc.). Esse caminho, contudo, não seria possível se não houvesse um documento que registrasse a priori os fatos econômicos empresariais sobre os quais essa análise deve ser feita.
O desafio atual dos juristas e contadores é estabelecer os limites entre uma coisa e outra, de forma a preservar os objetivos precípuos das demonstrações financeiras e resguardar a segurança jurídica, fundamental para a própria existência da atividade econômica.
Os contadores firmaram sua premissa de forma bastante contundente: a prevalência da essência (econômica) sobre a forma (jurídica). Contudo, para assumir ou desprezar a forma, é preciso conhecê-la. Para desconsiderar (ou considerar, conforme o caso) a formatação jurídica de um contrato e impor a realidade econômica dos fatos ao registro contábil é imprescindível saber o que é um contrato. Por outro lado, os juristas não podem ignorar os relevantes impactos contábeis e financeiros que a realização de um contrato sob determinados termos e premissas podem gerar.
Para contribuir com esse debate, publicaremos, a partir desta semana, às quartas-feiras, uma série de cinco artigos que buscam demonstrar a importância dessa análise interdisciplinar no mundo dos negócios. O fio condutor dos artigos será o tema do reconhecimento de receitas, intrinsicamente ligado ao direito contratual e com decisivos impactos na área tributária.
O reconhecimento de receitas está regulado internacionalmente pelo IFRS 15, e, no Brasil, pelo Pronunciamento CPC n. 47, aprovado no final do ano passado. A leitura dessas normas permite a identificação de, no mínimo, cinco pontos cujos impactos jurídicos (especialmente tributários) devem ser analisados cuidadosamente.
Condições para o Reconhecimento da Receita
A receita só poderá ser reconhecida se (i) houver a efetiva transferência do controle (dos bens ou serviços) ao comprador; (ii) o valor da receita e das despesas incorridas puderem ser mensurados com confiabilidade e (iii) for provável que os benefícios econômicos fluirão para o vendedor. Ausente qualquer dessas condições, a receita não deve ser reconhecida.
E como fica a tributação da renda (IRPJ/CSLL) e da receita (PIS/COFINS) neste caso? Essas condições para o reconhecimento da receita já existem de forma clara no CPC n. 30, que foi publicado antes da Lei n. 12.973, de 2014. De acordo com o art. 58 da Lei n. 1973, de 2014, as normas contábeis que não foram tratadas de forma específica devem produzir os mesmos efeitos para fins tributários, razão pela qual existe fundamento jurídico para a não tributação de uma receita que não existe para fins contábeis.
Receitas de Terceiros
Não podem ser reconhecidas como receitas os valores arrecadados pela empresa na condição de agente (em nome do principal). Essa disposição da norma contábil fortalece a discussão sobre a não incidência de PIS e COFINS sobre as receitas de terceiros. O desafio, neste caso, é formatar relações jurídicas contratuais que deixem clara a função do agente, ou seja, daquele que recebe o valor a ser repassado. Essa preocupação mitiga não só efeitos tributários, mas também fortalece a decisão sobre o registro contábil a ser feito.
Operações de Permuta
Somente trocas entre bens de natureza e valor similares não geram receita. Permuta de bens não similares representam operações simultâneas de compra e venda e ensejam o reconhecimento de receita. Para objetivar a relação de similaridade, tanto o Pronunciamento CPC n. 30 como o Pronunciamento CPC n. 47 indicam que apenas commodities cumpririam esse requisito. Os serviços de publicidade, anteriormente mencionados como exemplo no item 12 do Anexo do Pronunciamento CPC n. 30, foram excluídos pelo Item 5d do Pronunciamento CPC 47. Essa intepretação da norma contábil – equiparação de operações de permuta a operações de compra e venda – tem um relevantíssimo efeito, especialmente no mercado imobiliário. A sua aplicação prática, que será vista nas demonstrações financeiras, tende a deixar mais acalorado o debate sobre a incidência de IRPJ e CSLL (lucro presumido), PIS e COFINS sobre as operações de permuta.
Receita Normais (Operacionais)
De acordo com Apêndice A do Pronunciamento CPC n. 47, as receitas são aumentos nos benefícios econômicos provenientes das atividades normais da entidade. Do ponto de vista tributário, atividades normais eram vistas como geradoras de receitas operacionais, em contraposição às receitas não operacionais, como venda de ativo imobilizado. Essa classificação (receita operacional e não operacional) foi excluída da Lei n. 6.404, de 1976 (art. 187), e ainda não há clareza sobre a nova (ou não) interpretação que deve ser atribuída a esses conceitos para fins fiscais. Além disso, o enquadramento de uma receita como normal ou operacional pode ter impactos relevantes para efeitos de IRPJ, CSLL, PIS e COFINS, em razão de sua potencial relação com o novo conceito de receita bruta (art. 12 do Decreto-Lei n. 1.598, de 1977), definido como receita da atividade ou objeto principal da pessoa jurídica.
Segregação das Obrigações de Desempenho
Quando houver duas operações não-simultâneas fixadas em uma mesma transação, as receitas delas decorrentes devem ser reconhecidas cada qual a seu tempo. Um exemplo ajuda a identificar os impactos jurídicos e tributários desse comando contábil: a empresa XPTO firma um contrato para elaborar um projeto de iluminação e se obriga a fornecer o material (luminárias e acessórios) e executar o projeto depois de aprovado pelo cliente. As receitas decorrentes deste contrato serão reconhecidas em momentos distintos e após o cumprimento de cada uma das obrigações: (i) elaboração e apresentação do projeto, (ii) entrega dos produtos e (iii) execução.
A própria subjetividade na análise do contrato pode dar ensejo a interpretações diversas, impondo dificuldades à contabilização: seriam a entrega dos produtos e a execução do projeto obrigações de desempenho distintas? Foi satisfeita a obrigação contratual se a empresa XPTO apenas entregou os produtos e não executou o projeto?
E, para finalizar: a incidência do ISS e do ICMS deve acompanhar o raciocínio empregado para efeitos de contabilização? Se houver obrigações de desempenho distinguíveis (dar e fazer, vender produtos e prestar serviços), por que não haver incidência dos dois tributos separadamente? O raciocínio sobre a prevalência da obrigação de dar sobre a obrigação de fazer e vice-versa, utilizada para mitigar conflitos entre ICMS e ISS, também pode ser utilizado para aplicação dessa norma contábil? A resposta mais objetiva a essas questões só pode ser dada após a revisão e adequação acurada da formatação jurídica dos contratos da empresa. É a clara e objetiva expressão contratual do negócio firmado que servirá de suporte ao julgamento para o registro contábil e a decisão de recolhimento de ISS e / ou ICMS.
Cada um desses pontos aqui colocados merece aprofundamento e análise conjunta por parte de juristas e contadores. Nas próximas semanas, serão publicados os artigos que procuram detalhar cada um desses problemas, pois somente essa atividade constante, dialética e interdisciplinar é que propiciará o fortalecimento dos limites que devem existir para a intersecção entre o direito e a contabilidade.
por Vanessa Rahal Canado - Sócia da Área Tributária do CSMV Advogados. Professora da FGV DIREITO SP. Mestra e Doutora pela PUC/SP. Coordenadora do GEDEC – Grupo de Estudos em Direito e Contabilidade.
Fonte: Jota
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