sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

A preclusão no processo administrativo fiscal

O artigo 17 do Decreto 70.235/72 estabelece que será considerada não impugnada a matéria que não tenha sido expressamente contestada pelo contribuinte no âmbito do processo administrativo fiscal. Atualmente, no CARF, vemos o referido dispositivo sendo aplicado para o fim de reconhecer a preclusão de argumentos apresentados em sede de recurso voluntário: o Tribunal tem afastado o conhecimento de alegações recursais sob o fundamento de que referido argumentos não foram apresentados na fase de impugnação[1], ainda que os objetos dos lançamentos fiscais tenham sido combatidos desde a primeira instância.

Os julgadores têm fundamentado decisões nesse sentido na interpretação do vocábulo “matéria” como sinônimo de “alegações” para deixar de conhecer de razões recursais sob o argumento da preclusão. Não raro, o resultado é a ofensa ao contraditório e à ampla defesa das partes envolvidas no processo administrativo fiscal.

Ainda que aparentemente se trate de uma questão meramente interpretativa e, assim, da construção do melhor sentido da norma em discussão, a solução para a questão aqui colocada vai além da hermenêutica e passa pela definição do papel institucional do CARF. Seria esse Tribunal apenas um órgão revisor de decisões de primeira instância ou sua função iria além dessa e passaria pelo controle da legalidade de atos administrativos?

Evidente que apenas a primeira hipótese seria capaz de conduzir à interpretação mais restritiva do artigo 17 e a um maior rigor na análise do que pode ou não ser conhecido em sede de recurso voluntário. Todavia, caso se reconheça que o CARF exerce papel de controle da legalidade dos atos administrativos, como revisor dos atos de lançamentos tributários contestados pelos contribuintes (artigo 5º, XXXIV, “a” e LV da Constituição Federal), plausível a interpretação mais ampla do dispositivo em questão, afastando-se eventuais reconhecimentos de preclusão por inovação de argumentos no curso do processo administrativo.

Melhor elucidando, pensemos no seguinte exemplo: a) contribuinte é autuado sob o fundamento de que determinadas verbas pagas a alguns de seus funcionários possuem natureza salarial e, portanto, devem ser incluídas na base de cálculo das contribuições previdenciárias incidentes sobre a folha de salários; b) em sede de impugnação, tal contribuinte contesta o lançamento e alega que tais valores pagos consistem em abonos e, portanto, não são passíveis de tributação nos termos do art. 28, § 9º, e, 7, da Lei nº. 8.212/91; e c) em sede de recurso voluntário, o contribuinte alega que referidos pagamentos consistem em bônus de contratação (hiring bonus) firmados com determinados trabalhadores antes do início do vínculo laborativo.

Nessa situação hipotética, comumente encontrada na prática dos julgados administrativos, estaríamos diante de uma inovação de “argumentação”. Dessa forma, analisando a jurisprudência mencionada, é possível afirmar que o art. 17 do Decreto 70.235/72 seria aplicável.

Porém, na tentativa de uma interpretação sistemática, verificamos que o termo “matéria” é igualmente utilizado nos artigos 16, 18, 25 e 62 do mesmo decreto. Nos termos desses artigos, não seria desarrazoado interpretar a “matéria” referida no artigo 17 como o “tributo” objeto do lançamento. Como sabido, conforme o artigo 25 do Decreto 70.235/72, o CARF é constituído por seções especializadas por “matérias”, que são os tributos (IRPJ, CSLL, PIS, COFINS, ITR, Contribuições Previdenciárias etc.) objetos de lançamento fiscal.

Nesse contexto, no exemplo hipotético citado acima, haveria preclusão com base no artigo 17 do Decreto 70.235/72? A partir da interpretação de que a matéria (contribuição previdenciária incidente sobre a folha de salários) foi objeto de impugnação pelo contribuinte (“sobre abonos não incide contribuição previdenciária nos termos do art. 28, § 9º, e, 7 da Lei nº. 8.212/91), não haveria que se falar em preclusão, já que foi apenas alterado o fundamento/argumento (“trata-se de pagamentos a título de hiring bonus, que não possuem natureza salarial) da sua irresignação em sede de recurso voluntário.

Tal posicionamento, inclusive, fundamentar-se-ia também no princípio da verdade material, reiteradamente aplicado no âmbito dos julgamentos do CARF[2]. Nessa hipótese seria relevado o rigor processual e priorizada a busca pela verdade dos fatos daquele processo específico, pelo melhor modo de se atingir a legalidade tributária na análise do lançamento em questão.

Recentemente, a 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 2ª Seção, posicionou-se exatamente nesse sentido, ao reconhecer novos argumentos trazidos pelo contribuinte em sede de memoriais de julgamento, mas que atacavam o que vinha sendo combatido desde a impugnação apresentada: a base de cálculo do lançamento[3].

Importante ressaltar que uma maior elasticidade na interpretação do artigo 17 (“matéria” como “tributo”) não escusa a parte de que suas alegações sejam acompanhadas de elementos fáticos e probatórios pertinentes, que permitam o seu conhecimento e apreciação, sujeitando-se às regras e requisitos do artigo 16 do Decreto 70.235/72.

Não se defende uma liberalidade do contribuinte alegar o que bem entender, tampouco provocar “tumulto” processual com o fito de se beneficiar da sua própria torpeza. Na verdade, demonstra-se o prejuízo a ambas as partes (contribuinte e fisco) ao deixar de apreciar o processo administrativo e realizar o julgamento dentro dos ditames da ampla defesa, contraditório e legalidade tributária.   

Diante dos cenários apresentados, entendemos que cabe ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais o papel de revisor dos atos da administração pública, não se aplicando ao processo administrativo fiscal regras rígidas de preclusão que obstem o acesso do contribuinte à discussão administrativa e, assim, permita-se a efetivação da ampla defesa e do contraditório.

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[1] Acórdãos CARF: 2302003.512; 3201001.666; 1301-001.921; 2401-004.148.
[2] Acórdãos CARF: 2402-004.992; 2401-003.949; 1301-001.958; 3301-002.284.
[3] Acórdão CARF nº. 2401-004.467.

por Carlos Alexandre Tortato - Conselheiro titular da 1ª Turma da 4ª Câmara da 2ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF, mestrando na FGV Direito SP e membro do Núcleo de Direito Tributário Aplicado da mesma instituição

Fonte: Jota

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