terça-feira, 10 de janeiro de 2017

O Código Tributário Nacional, o conceito de tributo e de suas espécies

1.1. A necessidade de o Estado cobrar tributos

Em patamar anterior ao lógico-jurídico, sobre o qual discorreremos, Hugo de Brito Machado[1] explica a necessidade do tributo. Confira-se:

“No Brasil vigora a regra da liberdade de iniciativa na ordem econômica. A atividade econômica é entregue à iniciativa privada. A não ser nos casos especialmente previstos na Constituição, o exercício direto da atividade econômica só é permitido ao Estado quando necessário aos imperativos da segurança nacional, ou em face de relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei (Constituição Federal, art. 173). Não é próprio do Estado, portanto, o exercício da atividade econômica, que é reservada ao setor privado, de onde o Estado obtém os recursos financeiros de que necessita. Diz-se que o Estado exercita apenas atividade financeira, como tal entendido o conjunto de atos que o Estado pratica na obtenção, na gestão e na aplicação dos recursos financeiros de que necessita para atingir os seus fins.

1.2. O conceito jurídico de tributo

O conceito de tributo no Direito Tributário brasileiro é primoroso e desvela a mecânica da imposição tributária, pedra fundamental da disciplina. Dá-se transcrito o art. 3º do CTN:

“Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”

1.3. O tributo no quadro de receitas do Estado

Impende, antes de tudo, indagar a razão jurídica mercê da qual, nas mais diversas circunstâncias, o Estado absorve valores pecuniários. Falemos, em primeiro lugar, dos contratos.

Um grupo bastante grande de receitas estatais tem por causa negócios jurídicos celebrados pelo Estado com maior ou menor influxo publicístico (no campo do Direito Administrativo há todo um capítulo dedicado aos contratos administrativos). Alugueres, certas doações, juros, laudêmios, foros e os mais diversos preços encontram causa jurídica e legitimidade nos contratos que o Estado celebra. O mesmo ocorre nos contratos de venda e mútuo e nas operações de crédito que o Estado entabula.

Em segundo lugar, tirando as simples entradas de caixa (finanças, cauções, depósitos etc.), há que mencionar as multas impostas e percebidas pelo Estado a título de sanção. Aqui a causa das receitas é o jus puniendi de que é titular o Estado. A prática do ilícito, cujo conceito é ser ato de descumprimento de dever legal, muita vez acarreta a aplicação de uma sanção de natureza pecuniária, a multa, que, uma vez paga, é receita.

Em terceiro lugar, comparecem as indenizações. Todo ato de lesão ao patrimônio público deve ser reparado. Quando a reparação é ou se converte em prestação pecuniária, sua percepção pelo Estado caracteriza um tipo de receita ancorada em “causa” perfeitamente identificada (irrelevante que, sob o ponto de vista econômico, haja apenas uma recomposição do patrimônio estatal envolvendo uma simples mutação patrimonial, no dizer dos contabilistas).

Em quarto lugar, pontificam as adjudicações (butins de guerra, confiscos permitidos, apropriações de bens vacantes) ao ativo estatal, que possuem, em termos de classificação, validade puramente formal. A adjudicação é mais instrumento, veículo, meio, do que propriamente causa. Via de regra as adjudicações se dão, é o caso do confisco, a título de ressarcimento por danos causados ao erário ou à guisa de sanção pela prática de ilícitos. Em razão disso, autores há que subsumem ditas receitas – quando em dinheiro, é claro – ou nas multas, ou nas indenizações. Salvam a classificação as apropriações de bens vagos, em pecúnia, que possuem especificidade indiscutível. O dinheiro apropriado o é por ser res derelicta ou res nullius.

Isto exposto, é bom frisar que, afora ditas fórmulas, somente uma outra remanesce a viabilizar em favor do Príncipe, do Estado, a percepção de meios pecuniários: a fórmula tributária.

1.4. A expansividade do conceito de tributo no Direito brasileiro

Se o Estado, tirante a sua condição de contratante ou donatário, não está nem arrecadando bens pecuniários vacantes, nem recebendo multas, nem sendo indenizado em tempo de guerra ou paz, nem percebendo pecúnia ex contractu, tudo o mais que entra como receita, excluídas as “entradas” de caixa, tais como cauções e fianças, ou é tributo, ou é enriquecimento sem causa. A questão é de ontologia jurídica e não de técnica legislativa.

O tributo legitima-se e diferencia-se das prestações pecuniárias e apropriações até agora referidas em função, precisamente, de sua hipótese de fato relacionada ao preceito. Tributo é toda prestação pecuniária em favor do Estado ou de pessoa por ele indicada, tendo por causa um fato lícito, previsto em lei, instituidor de relação jurídica, diferenciando-se da multa porque esta, embora prevista em lei em favor do Estado, decorre de um fato ilícito (ter o “multado” descumprido algum dever contratual ou legal).

Extrema-se da indenização porque esta, posto que também prevista em lei, tem por “razão de ser” prévia e comprovada lesão ao patrimônio alheio, inclusive o estatal.

Contrapõem-se às prestações pecuniárias “contratuais” ou de jus gestionis porque tais receitas decorrem de acordos de vontades (contrato). Enquanto o tributo é unilateralmente previsto em lei, o objeto de tais obrigações é ajustado ex voluntate, tendo por mira múltiplas situações (aluguel ou venda de coisas, contratos de mútuo, aplicações financeiras, prestações de serviços etc.).

Distingue-se o tributo de outros deveres pecuniários compulsórios de índole privada (seguro obrigatório automobilístico) ou da obrigação de alimentar porque, nesses casos, o credor é pessoa jurídica de Direito Privado ou pessoa natural, e também porque a cobrança, em tais casos, não é feita mediante atividade administrativa plenamente vinculada à lei.

Embora os contratos extraiam sua força das leis que lhes traçam o perfil ou, pelo menos, lhes atribuem os requisitos mínimos (contratos inominados), quando se diz que o tributo decorre da lei, e as obrigações convencionais de contratos, está se querendo dizer que o tributo é decorrente de fato unilateralmente previsto, e a obrigação convencional, de fato lícito multilateralmente acordado. Um é ex lege (nesse sentido), o outro é ex voluntate.

O tributo, finalmente, distingue-se das “apropriações” de dinheiro abandonado porque aí o fato, embora lícito e acontratual, não é causador de relação jurídica. Com efeito, a existência de dinheiro na condição res nullius ou res derelicta não é fundamento, razão, hipótese, causa de obrigação. Em virtude desse fato, ninguém fica obrigado (dever jurídico) a uma prestação pecuniária, situação comum à multa, à indenização, ao tributo e às obrigações convencionais. Ao contrário, a existência de bens vagos, quando dinheiro, enseja tão somente a sua adjudicação ao Estado ex lege mediante ato de apropriação (ato do Estado). Em suma, sendo o tributo, antes de mais nada, uma prestação pecuniária, distingue-se da apropriação porque esta não o é (prestação pecuniária, implicando a figura do sujeito passivo). A cláusula “em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir” não significa que se possa pagar com cabras ou queijos o tributo devido. Significa, no sistema do Código Tributário Nacional, pagar com selos, ou estampilhas, ou títulos.

Concluindo, o que entrar em dinheiro na burra estatal sob a forma de prestação pecuniária – o que exclui as entradas de caixa (fianças, cauções) e as apropriações – que não seja indenização, multa ou contrato (aluguer, juro, foro, laudêmio, preço) só pode ser tributo.

O que caracteriza o tributo é a sua essência jurídica. Por isso mesmo o CTN, no art. 4º, dispõe que:

“A natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la: I – a denominação e demais características formais adotadas pela lei; II – a destinação legal do produto de sua arrecadação.”

Por outro lado, a essência jurídica do tributo é ser prestação pecuniária compulsória em favor do Estado ou de pessoa por este indicada (parafiscalidade), que não constitua sanção de ato ilícito (não seja multa), instituída em lei (não decorrente de contrato). Intuitivo, também, que a prestação pecuniária no caso do tributo não é feita para indenizar (recompor) nem para garantir (depósitos, fianças, cauções), admitindo cobrança administrativa.

Sendo tal, a prestação pecuniária será tributo e estará, no Brasil, sob a disciplina dos princípios jurídico-tributários insertos na Constituição e nas leis de normas complementares.

O momento jurídico para a apreensão do conceito de tributo é o da imposição do dever. É nesse momento que se aproposita o exame de sua natureza.

Cabe aqui gizar que o tributo, nas sociedades ocidentais praticantes da democracia, é matéria sob estrita reserva de lei em sentido formal e material. Daí o prestígio do princípio da legalidade, de que é corolário o princípio da tipicidade (ou da minuciosa determinação estrutural e conceitual do tributo). Vale dizer: o legislador, só ele, faz a lei tributária. E, em a fazendo, deve dizer com claridade quais são os seus elementos, retirando ao aplicador da lei todo e qualquer subjetivismo. O tributo deve nascer de um fato-tipo, um fato tipificado. Para se saber o que é tipo, é preciso, antes, conhecer a estrutura formal da norma tributária. Enfrentemos o tema, mirando o conceito de tributo.

1.5. O tributo como norma jurídica

Por oportuno, a compreensão estruturalista da norma tributária é importante para a análise do assunto. Vamos, então, traduzir o tributo como norma jurídica.

A norma tributária encontrou em Paulo de Barros Carvalho o seu melhor expositor na literatura luso-hispano-americana. O Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Universidade de São Paulo (USP), aderindo à terminologia de Carlos Cossio, vê a norma jurídico-tributária dividida classicamente em duas partes: hipótese endonormativa e consequência endonormativa. O renomado professor paulistano define as hipóteses das normas tributárias, a que chama de endonormas tributárias, como o conjunto de critérios necessários à identificação do fato lícito, que não acordo de vontades, gerador do dever jurídico. Define, por sua vez, as consequências das normas tributárias como o conjunto de critérios esclarecedores da relação jurídica que se forma com a ocorrência in concreto de fato jurígeno (fato gerador). Nas hipóteses, ele aponta três critérios: o material, o fato em si; o temporal, determinando as circunstâncias de tempo que envolvem o fato jurígeno já materialmente descrito; o espacial, indicativo das condições de lugar em que o fato ocorrer. Nas consequências, enxerga dois critérios, a saber:

a) o pessoal, que determina os sujeitos – ativo e passivo – da relação jurídica decorrente da realização do suposto (hipótese de incidência); e

b) o quantitativo, que esclarece o modo pelo qual será estabelecido o conteúdo do dever jurídico (base de cálculo e alíquotas).[2]

Entende Barros Carvalho que o desenho normativo por ele apresentado é suficiente para o entendimento da fenomenologia da tributação já que “nada mais será preciso para que conheçamos, em toda a extensão, o liame jurídico estabelecido, por virtude do acontecimento do suposto. Tendo ciência de que  existe uma relação jurídica, sabendo quem são os sujeitos do vínculo e tendo meios para determinar o conteúdo do dever jurídico cujo cumprimento o sujeito ativo poderá exigir do sujeito passivo, de nenhum outro elemento será necessário cogitar, posto que está completo, em todos os seus ângulos, o desenho jurídico daquele instrumento que orienta a disciplina dos comportamentos humanos”.

Para o mestre paulistano, a estrutura normativa não está na lei, mas na proposição que o Direito Positivo projeta e que o jurista, utilizando seu equipamento lógico-dedutivo, descobre quando descreve o direito. A sua linguagem, dele, é a do dever-ser. A lei, os sistemas jurídicos são diretivos. Extrair o dever-ser (sollen) do ser (sein) é a função principal da Ciência do Direito.

Para melhor explicitar o pensamento de Barros Carvalho, fez-se o quadro abaixo, que é a melhor tentativa gráfica referente ao imposto predial urbano brasileiro.

Esta é, talvez, a mais aguda percepção da estrutura da norma tributária.

1.6. A importância do aspecto pessoal na hipótese de incidência tributária

Em linhas gerais, concordamos com ela. Todavia, acrescentamos modificações ao desenho normativo do Prof. Barros Carvalho. Divergimos, outrossim, na terminologia, porquanto ao invés de “critérios” utilizamos o termo aspecto para qualificar as facetas da hipótese e da consequência da norma jurídico-tributária. Isto posto, ao lado dos aspectos material, temporal e espacial, acrescentamos ao fato jurígeno, na hipótese da endonorma, um aspecto pessoal. É que o fato jurígeno (um “ser”, “ter”, “estar” ou “fazer”) está sempre ligado a uma pessoa, e, às vezes, os atributos ou qualificações dessa pessoa são importantes para a delimitação da hipótese de incidência. O aspecto pessoal da hipótese de incidência é importante, apresentando diversas serventias. Assim, para a percepção da capacidade contributiva, para a graduação da progressividade, para a consideração do ilícito fiscal e da responsabilização, para o reconhecimento das isenções e imunidades subjetivas, só para exemplificar.[3]

O aspecto pessoal que emerge do fato descrito na hipótese de incidência aparece com intensidade quando, por exemplo, cogita-se do intrigante fenômeno da sujeição passiva substitutiva. Sem a menção do aspecto pessoal da hipótese, seria realmente mais complicado explicar por que “A” é o sujeito do dever previsto no mandamento da norma, embora não tenha realizado a “hipótese de incidência”. Ora, se as consequências jurídicas decorrentes da incidência do mandamento da norma se apropositam em razão da ocorrência do “fato gerador”, como, com efeito, é possível a uma pessoa ver-se obrigada por fato que não praticou ou não lhe diz respeito? – A resposta fica mais inteligível se se considerar a pessoa envolvida com o fato jurígeno descrito na hipótese de incidência (aspecto pessoal) diversa da pessoa destinatária do dever, como sujeito passivo da relação jurídico-tributária instaurada com a realização da “situação jurígena” (do suposto). Há que se considerar os dois momentos dentro da autonomia que logicamente exibem. A pessoa envolvida com a hipótese de incidência a “qualifica” em termos de referência pessoal (aspecto pessoal da hipótese), e nada impede que seja diversa da que, no mandamento, na consequência ou no prescritor da norma, como diria Vilanova, suporta o dever de contribuir (o sujeito passivo da relação jurídica). Ocorre, apenas, que na sujeição passiva direta a pessoa envolvida na hipótese da norma é a mesma que, no mandamento ou consequência, suporta o dever e, na sujeição passiva “indireta”, são diversas. No primeiro caso, “A” pratica ou está envolvida com a hipótese de incidência e por isso mesmo é o sujeito passivo do dever. No segundo caso, “A” pratica o “fato gerador”, mas quem paga o “tributo gerado” é “B”. “A” entra na história somente para qualificar em termos de referência pessoal a hipótese de incidência.

A doutrina, com erronia, costuma chamar de “aspecto subjetivo” da hipótese de incidência aos dois polos da relação jurídica medianizada pelo dever jurídico. Isto, veremos, é profundamente ilógico, porque o dever e seus sujeitos, o ativo e o passivo, surgem como consequência da realização da hipótese de incidência, não podendo, portanto, fazer parte dessa mesma hipótese. O aspecto subjetivo está no mandamento e não na hipótese da norma de tributação. Na hipótese, o que há é o “aspecto pessoal” servindo para dar textura e especificidade ao fato eleito como jurígeno.

As hipóteses de incidência das normas tributárias contêm descrição de fatos. É importante, assim, repisar quais os aspectos mais salientes da descrição. Em primeiro lugar há o aspecto material, a descrição do fato mesmo. Depois o fato ou fatos são devidamente enquadrados nas coordenadas de tempo e lugar. Daí advirão os aspectos temporal e espacial da hipótese de incidência. O fato, assim, passa a se qualificar em função dessas coordenadas espaço-temporais. Mas não é só. É inegável a autonomia de um aspecto pessoal na hipótese, como acabamos de ver.

Há fatos já descritos (aspecto material) e situados no espaço e no tempo que só ganham sentido se conotados com certas qualidades das pessoas. (Daí termos acrescentado mais um elemento à topografia básica da hipótese de incidência das normas tributárias.) Quanto ao fato mesmo (aspecto material), é mister frisar que necessariamente terá que ser um fato lícito. Se o fato for ilícito, não teremos tributo, mas multa (norma sancionante), pois toda regra punitiva tem como hipótese, como suposto, um fato ilícito, razão para a aplicação da sanção. O fato, sobremais, não poderá ser contratual (não se contrai dever tributário por querer, por avença, ex contractu). O fato jurígeno que desencadeia o dever de pagar tributo é previsto unilateralmente. Corresponde aos deveres heterônomos referidos por Kelsen, impostos ab extra por uma vontade estranha à da pessoa destinatária do dever. As hipóteses de incidência das normas tributárias decorrem de descrições legislativas de fatos lícitos que possuem virtude jurígena, ex lege, contendo quatro aspectos: material, temporal, espacial e pessoal.

No que concerne às consequências das normas tributárias, entendemos que, além dos pontos magnos relacionados por Barros Carvalho: sujeitos ativo e passivo (critério pessoal da consequência) e base de cálculo e alíquotas (critério quantitativo), outros aspectos são encontradiços, todos pertinentes à relação jurídica que se forma com a realização da hipótese de incidência: como, onde, de que modo, quando, em que montante se vai satisfazer o débito em favor do sujeito ativo. O gráfico feito retrata a nossa concepção.


1.7. A complexidade das fórmulas de cálculo do tributo devido

No plano da consequência da norma tributária, particularmente, é forçoso convir que o ilustre Prof. Paulo de Barros Carvalho deixou de desenvolver a sua teoria de modo mais cabal (e poderia tê-lo feito, com sobras de mérito). Ao nosso sentir, concessa venia, ao reduzir o aspecto quantitativo das consequências endonormativas, para usar sua terminologia, a tão somente dois elementos: base de cálculo (estrito senso) e alíquota, o ilustre tributarista apequenou, restringiu, limitou a sua rica teorização. E por duas razões muito simples. A uma, porque tributos há que sequer base de cálculo e alíquota possuem. Hipótese frequente nas taxas. “Por certidão de bons antecedentes: R$ 20,00.” A duas, porque outros tantos tributos, mais complexos, exigem para a quantificação do dever tributário o concurso de outros dados, imprescindíveis à fixação do quantum debeatur. Casos, somente para exemplificar, do imposto de renda, tanto das pessoas jurídicas quanto das físicas, do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, do imposto sobre produtos industrializados e do imposto territorial rural, além de outros. Esses impostos, e no Direito Comparado avultam exemplos, implicam cálculos e complicadores, sem os quais não é, de modo algum, possível fixar o valor da prestação devida pelo sujeito passivo. Nem se duvide de que, numa norma de obrigação, o mais importante é mesmo o valor da prestação. Aí se condensa a meta optata da norma. O que se quer, mesmo, é o pagamento e a quitação.

Ora, se após a aplicação da alíquota sobre a base de cálculo ainda restam adições, deduções e cálculos a fazer para se chegar ao quantum devido, então é porque o aspecto quantitativo da consequência endonormativa não se reduz a esses dois elementos (seria, aliás, simplório que assim fosse, invariavelmente). Vimos já que em alguns casos nem sequer são necessárias a base de cálculo e a alíquota. Vale dizer, são prescindíveis. Noutros casos não são suficientes…

Enquanto o devedor for obrigado a fazer operações para conhecer o seu débito, e o credor, para apurar o seu crédito (lançá-lo), necessitar também de fazê-las, já praticada a aplicação da alíquota sobre a base de cálculo, não se terá esgotado o elemento quantitativo da norma de tributação!

A conclusão se nos afigura singela e compreensível. Veja-se o caso do ICMS brevitatis causa. Não basta aplicar a alíquota interna ou interestadual sobre o “valor das operações tributáveis” ocorridas em lapso de tempo determinado. É necessário ainda que se deduza do montante achado pelo modo atrás descrito o valor dos “créditos” pelas “entradas” ocorridas no período, assim como o valor dos “créditos presumidos” porventura previstos na legislação. Sem essa dedução não se chega ao quantum debeatur. A dedução não é facultativa, é imperativa. Decorre de preceituação inserta no comando da norma. Uma preceituação que indica como calcular o tributo. Se porventura o credor recebê-lo sem a referida dedução, estará recebendo a mais do que o devido, e o devedor, pagando mal. Como o dever tributário é ex lege, será recebimento indevido, sem causa, ilegítimo, ilegal. Cabe ao devedor, na espécie, repetir o indébito se o credor não restituir ex officio o valor excedentário. É que o princípio da não cumulatividade integra a norma de tributação do ICMS. Está “dentro” dela e não “fora”. A norma, repita-se pela undécima vez, não se confunde com as leis. É uma resultante das leis, inclusive constitucionais. O credor estatal, ao desenvolver a atividade administrativa do lançamento, ainda quando predito ato se resume em homologar (o que implica, é óbvio, exame prévio) o “procedimento de cálculo” do sujeito passivo, está obrigado a considerar o “crédito” pelas entradas (ou presumido) para chegar ao quantum devido. O ato administrativo do lançamento é vinculado e privativo e, ademais, é ato de aplicação de norma a caso concreto.

O ato administrativo do lançamento resume-se a individualizar a norma de tributação. O Poder Executivo, cuja função é aplicar de ofício a lei (norma, dizemos nós) ao caso concreto, ao produzir o lançamento está aplicando a norma de tributação às situações individuais. Noutro giro, está subsumindo a vida à norma. Fala-se muito que esta dedução do crédito, em tema de ICMS, é uma compensação. Ora, não resta a menor dúvida de que é. Só que esta compensação se dá no momento do lançamento e não depois dele, ou então dá-se antes de qualquer lançamento (pagamento pelo contribuinte sujeito à homologação pela Fazenda Pública).

E o lançamento é a aplicação da norma do ICMS à situação individual do contribuinte: tanto da hipótese quanto da consequência da norma.

Em suma, esta “compensação” é modo de apurar o quantum debeatur do imposto, sem o quê não é possível ao sujeito passivo pagar o que deve e corretamente receber quitação.

Fica assim comprovado que o “aspecto” ou “critério” quantitativo das consequências das normas de tributação não se reduz à base de cálculo e à alíquota. Pode ser que sim e pode ser que não. O importante é que a norma diga, com ou sem base de cálculo, com ou sem o concurso de outros elementos, como se calcula o débito do sujeito passivo.

1.8. Os equívocos da doutrina tradicional na consideração do fato gerador dos tributos

A melhor doutrina, contudo, vem se equivocando no estudo e na descrição da norma tributária. Toda ênfase é posta na hipótese de incidência (fato gerador abstrato); nela são alojados elementos estruturais que estão, em verdade, nas consequências das normas (“mandamentos”). Por isso é até mesmo lícito falar em escolas que “glorificam o fato gerador”.

“Es esta la razón por que este ensayo de una teoría general del derecho tributario material está construido al deredor de la teoría del hecho imponible.”[4]

No Brasil, obras há cuidando especificamente da “hipótese de incidência” das normas tributárias, isto é, do pressuposto jurídico das obrigações tributárias, em minuciosas e aprofundadas análises.[5]

Estes autores, com erronia, alocam nas hipóteses das normas tributárias, como já salientado, todos os “aspectos” que as compõem (enquanto entes lógicos juridicamente estruturados). De conseguinte, esvaziam as “consequências” ou “mandamentos” normativos. Assim, fazem habitar nas hipóteses de incidência, além dos aspectos material, temporal e espacial, outros que são próprios do dever tributário decorrente, isto é, sujeitos ativo e passivo, bases de cálculo, alíquotas, como, onde e quando cumprir a prestação (pagar tributo).

Amílcar de Araújo Falcão[6] diz que:

“Esta figura do sujeito passivo da obrigação é inerente à definição do próprio fato gerador. Inhaeret et ossa.”

O Prof. Jarach leciona:[7]

“Este pressuposto de fato se compõe de diferentes elementos: em primeiro lugar, os fatos objetivos contidos na definição legal do pressuposto; em segundo, a determinação objetiva do sujeito ou sujeitos, que resultem obrigados ao pagamento do gravame e o momento da vinculação do pressuposto de fato com o sujeito ativo da imposição; em terceiro lugar, a base de medição, chamada também base imponível, isto é, a adoção de parâmetros que sirvam para valorar quantitativamente os fatos; em quarto lugar, a delimitação no espaço e no tempo desses fatos; e em quinto lugar, a quantidade expressada numa soma finita, ou em uma percentagem ou alíquota aplicável à base imponível que permite determinar, como resultado, o quantum da obrigação tributária” (grifos nossos).

Ruy Barbosa Nogueira,[8] de igual forma, faz com que na hipótese se contenha toda a relação jurídica, em mistura com seu próprio pressuposto.

“A lei cria, em tese, a figura ou modelo e a consequência tributária somente surgirá se a situação descrita for praticada por alguém, dentro da jurisdição, num dado momento, submetido a uma base de cálculo e alíquota.

Assim, teoricamente, o fato gerador compreende aspectos objetivo, subjetivo, espacial, temporal, valorativo e tarifário.”

Permissa venia, são defeituosas as manifestações da doutrina retroexposta, vez que é preciso respeitar a integridade conceitual do ente ou objeto que está em análise, ou seja, a norma jurídica tributária, em cuja estrutura se hospeda elementos precisos, uns na hipótese, outros na consequência, e não todos na hipótese.

Ademais, a doutrina que os autores citados expuseram contraria frontalmente a teoria da norma jurídica como ente hipotético em que dadas consequências se enlaçam a dados antecedentes. Com razão, Barros Carvalho[9] já criticara a orientação dos que esvaziam a substância estrutural das consequências normativas.

1.9. A estática e a dinâmica da norma tributária – A fenomenologia da incidência da norma tributária

Feita a descrição arquitetônica da norma tributária em posição estática e feita também a crítica das deformações estruturais que certa doutrina produz ao descrevê-la, vem a pêlo gizar os pontos principais relativos ao mecanismo de incidência das normas jurídicas. Ao invés de flagrar a norma em posição estática, importa agora surpreendê-la em movimento (dinâmica da incidência). Que se esclareça para logo, no entanto, que o ponto carrega importância. Afinal, o que incide ou deixa de incidir é o “mandamento” da norma, criando deveres tributários. A hipótese de incidência apenas ocorre…

Geraldo Ataliba[10] nos diz que “se costuma designar por incidência, o fenômeno especificamente jurídico da subsunção de um fato a uma hipótese legal”. E arremata: “A norma tributária, como qualquer outra norma jurídica, tem sua incidência condicionada ao acontecimento de um fato previsto na hipótese legal, fato este cuja verificação acarreta automaticamente a incidência do mandamento” (grifos nossos).

Hensel,[11] chamando ao fato jurígeno de fato imponível, discorre conciso: “O comando: Deves pagar imposto é sempre condicionado à frase: se realizas o fato imponível ” (grifos nossos).

O quadro seguinte dá-nos uma visão bastante clara da estrutura da norma (hipótese e consequência) e da sua incidência, instaurando efeitos jurídicos concretos. Todavia, uma tal fenomenologia é, amiúde, percebida de modo imperfeito pelos juristas. A melhor página sobre o assunto é de Karl Engisch,[12] cujo adminículo é de proveito, embora não se refira especificamente à norma tributária.


Agora a cita de Engisch, antes prometida:

“Pode, de resto, duvidar-se, num caso concreto, sobre o que pertence à ‘hipótese legal’ e o que faz parte da ‘consequência jurídica’. Quando o § 8º do art. 23 do Código Civil diz: ‘Aquele que intencional ou negligentemente lesar ilicitamente a vida, a integridade física de outrem, fica obrigado a perdas e danos pelos prejuízos que daí resultem’, podemos perguntar-nos se a fórmula ‘danos que daí resultem’ pertence propriamente à hipótese legal ou à consequência jurídica. A solução correta é a seguinte: pertence aqui à hipótese legal que um determinado prejuízo tenha surgido, e à consequência jurídica que precisamente esse prejuízo é que deve ser indenizado. Pertence, com efeito, à hipótese legal tudo aquilo que se refere à situação a que vai conexionado o dever-ser (sollen), e à consequência jurídica tudo aquilo que determina o conteúdo deste dever-ser.

Sobre a ‘hipótese legal’ muito haverá ainda a dizer. Desde logo isto: que ela pode não ser constituída apenas por elementos positivos, mas também por elementos negativos, como o mostram os exemplos que acima apresentamos referentes às exceções a imperativos; que podem entrar a fazer parte dela, além disso, não só elementos exteriores, apreensíveis pelos sentidos, mas também elementos interiores, psíquicos ‘subjetivos’ (v.g. ‘intencionalmente’, no referido § 8º do art. 23); ou que podemos encontrar nela, ao lado de elementos descritivos (como, v.g., ‘lesão corporal’), elementos referidos a valores, ‘normativos’ (v.g., no § 2º do art. 26 do Código Civil, ‘ofensa aos bons costumes’).

Mas há algo que precisamos pôr em destaque antes de prosseguirmos na nossa indagação: é que tanto a hipótese legal como a estatuição (consequência jurídica) são, enquanto elementos de regra jurídica, representadas por conceitos abstratos. Assim como os juízos hipotéticos no sentido lógico são constituídos por conceitos, de igual modo o são a prótase e apódose de um imperativo jurídico condicional. Por isso, a ‘hipótese legal’ e a ‘consequência jurídica’ (estatuição), como elementos constitutivos da regra jurídica, não devem ser confundidos com a concreta situação da vida e com a consequência jurídica concreta, tal como esta é proferida ou ditada com base naquela regra. Para maior clareza, chamamos por isso ‘situação de fato’ ou ‘concreta situação da vida’ à hipótese legal concretizada. Infelizmente, porém, não existe qualquer designação para a consequência jurídica concreta” (grifos nossos).

Então não é só a expressão fato gerador que é ambígua, como observou Ataliba, mas a de comando normativo. Aqui também há a prescrição em abstrato e a prescrição concretizada (em ato).

A incidência é dinâmica. O fenômeno se dá como a seguir.

Acontecido o fato previsto na hipótese legal (hipótese de incidência), o mandamento que era abstrato, virtual, torna-se atuante e incide. Demiúrgico, ao incidir produz efeitos no mundo real, instaurando relações jurídicas (direitos e deveres). A incidência, em Direito Tributário, é para imputar a determinadas pessoas o dever de pagar somas de dinheiro ao Estado, a título de tributo. Esse, precisamente, é o comportamento desejado pela ordem jurídica.

O Prof. José Souto Maior Borges, tributarista recifense, deita fala profunda sobre o assunto:[13]

“Analisada sob o prisma de sua estrutura lógica, toda norma jurídica, inclusive a tributária, se decompõe em uma hipótese de incidência ou previsão hipotética (suporte fático, fato gerador, fatispecie, tatbestand) e uma regra ou preceito (regra de conduta). Como se acentuou, a incidência da regra jurídica é infalível, mas somente ocorre depois de realizada a sua hipótese de incidência.”

A doutrina, de um modo geral, não dissente na compreensão do que seja incidência. Eduardo Garcia Maynez, com acuidade, relata:[14]

“Hemos definido el supuesto jurídico como la hipótesis de cuya realización dependen las consecuencias estabelecidas por la norma. La citada definición revela el carácter necesario del nexo entre la realización de la hipótesis y los deberes y derechos que el precepto respectivamente impone e otorga” (grifos nossos).

E Alfredo Augusto Becker finaliza:[15]

“Toda e qualquer regra jurídica (independente de sua natureza tributária, civil, comercial etc.) tem a mesma estrutura lógica: a hipótese de incidência (fato gerador, suporte fático etc.) e a regra (norma, preceito, regra de conduta) cuja incidência fica condicionada à realização dessa hipótese de incidência.”

A obrigação tributária que já se continha in abstracto no mandamento da norma de tributação instala-se no mundo fático com a realização do fato jurígeno previsto na hipótese da norma. O estudo do tributo como norma é o estudo mesmo da obrigação tributária, sua estrutura e sua incidência; daí o notável papel que uma prospecção a este nível assume em face da Teoria Geral do Direito Tributário. Nem há assunto, eis aí uma real verdade, que sendo justributário careça de fincar raízes na teoria da norma. É desse ponto de partida que são lançadas as melhores especulações dos autores mais considerados. É que a norma tributária é uma “norma de conduta” cuja especificidade reside em gerar o dever de pagar tributos, dela promanando também a exoneração do pagamento. Dessarte, a estrutura da obrigação tributária se contém na estrutura da norma de tributação. Na sua “hipótese de incidência”, ou “suposto”, ou “pressuposto”, ou “fato gerador”, está o fato jurígeno tributário desenhado pelo Direito Positivo vigente de cada época e de cada Estado. Sobre a importância dessa parte lógica da norma há toda uma literatura.[16] No “comando”, ou “consequência”, ou “preceito”, ou “estatuição”, ou “mandamento” da norma, ou outro nome que se lhe queira dar, aloja-se a “relação jurídica decorrente” ou a obrigação propriamente dita, contendo os sujeitos ativo e passivo e o vinculum juris entre eles existente para a realização da prestação: um dare. (Um dar dinheiro ao Estado, credor ou accipiens da prestação.) Tome-se o estudo até agora feito sobre a norma tributária como um estudo sobre a obrigação e credite-se ao Prof. Paulo de Barros Carvalho o mérito de ter chamado a atenção da tributarística brasileira, quiçá latina, para a importância do “mandamento” da norma na mecânica de sua aplicação à vida, com o seu notável  Teoria da Norma Tributária.

1.10. O conceito de tributo no Direito brasileiro, sua excelência dogmática

O conceito de tributo no sistema brasileiro, fruto de intensa observação do fenômeno jurídico, é dos mais perfeitos do mundo. Se nos compararmos com os países do Common Law, com a Itália, França e Alemanha, no plano dogmático, a vantagem da tributarística brasileira desponta com notável evidência, sendo lastimável que as faculdades de Direito, pela desatualização dos currículos e pela rapidez dos cursos de Direito Tributário, não formem juristas versados verdadeiramente em Direito Tributário, anulando a vantagem do Brasil no campo da dogmática e da codificação. O que se vê, na prática, é uma fantasmagórica confusão de ideias, aquele “mistifório” provocador da “insegurança kafkiana” a que se referiu Gilberto de Ulhôa Canto.

No entanto, a segura compreensão dos arts. 3º e 4º do CTN seria suficiente para apaziguar os ânimos e fazer esmaecer o tormento a que ficamos submetidos toda vez que se discutem neste país questões justributárias.

O que estamos a dizer quanto à perfeição do nosso conceito de tributo não passou despercebido a juristas de escol. Por todos, pontifica Geraldo Ataliba:

“O Código Tributário Nacional conceitua tributo de forma excelente e completa.

‘Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.’

É notável a cláusula ‘que não constitua sanção de ato ilícito’ porque permite extremar o tributo das multas. Se não se fizesse a ressalva, o conceito ficaria ambíguo – e, pois, cientificamente inútil – por excessivamente compreensivo, a ponto de abranger entidade tão distinta como é a multa de direito público.

Merece louvores a comissão elaborada do anteprojeto do código pela incorporação desta inovação, deixando completa e incensurável a noção de tributo, de modo a concorrer decisivamente para o aprimoramento das constru- ções básicas da dogmática do direito tributário.

O conceito legal, in casu, coincide com o doutrinário.

Só é possível obter um conceito jurídico de tributo e – via de consequência – de direito tributário, como conclusão de alentado e ingente estudo do direito positivo. É oportuna a advertência de A. Becker:

‘Quem preferir caminho diferente defrontar-se-á com múltiplos problemas jurídicos e não os poderá resolver; apenas conseguirá apaziguar as suas dúvidas, embriagando-se com ilogismos eruditos dissolvidos no remoinho da retórica e utilizando o estupidificante, aliás muito cômodo, princípio dos fundamentos ‘óbvios’ (op. cit., p. 232).

Constrói-se o conceito jurídico-positivo de tributo pela observação e análise das normas jurídicas.

A verificação da universalidade e constância de um fenômeno, pelo cientista, leva-o a concluir pelo reconhecimento de uma categoria à qual, para efeito de síntese, dá uma designação.

O aperfeiçoamento da observação que enseja a formulação de uma noção acabada e completa, permitindo a construção de um conceito válido – na medida que efetivamente retrata e espelha o objeto observado – caracteriza o objeto e o isola dos demais. Identificado, recebe uma designação convencional, pela qual se reconhece um instituto, assim entendido um feixe de princípios e normas, reunidos sob o conceito, regulando unitariamente um fato ou situação jurídica, que passa a ter entidade e existência autônoma no mundo do direito.

Tal é o que ocorre com o tributo, categoria jurídico-positiva, que se engendrou sob o conceito deduzido da observação dos fenômenos produzidos no direito positivo.

O objeto do direito tributário é o estudo do direito tributário positivo ou objetivo. O instituto jurídico central desse estudo é o tributo.

Juridicamente se define tributo como obrigação jurídica pecuniária ex lege, que se não constitui em sanção de ato ilícito, cujo sujeito ativo é, em princípio, uma pessoa pública, e cujo sujeito passivo é alguém nessa situação posto pela vontade da lei.

Acolhemos o conceito formulado da disposição do art. 3º do CTN, que tem o notável mérito de, pela cláusula excludente das obrigações que configurem sanção de ato ilícito, evitar a abrangência também das multas, as quais, doutra forma, ver­‑se-iam nele compreendidas.”

Isto posto, o tributo ou a relação jurídico-tributária é ex lege e nasce de um fato antes previsto pelo legislador, desde que este fato ocorra no mundo fenomênico. Por isso mesmo, em nossa terminologia jurídica positiva a expressão “fato gerador do tributo” possui duplo sentido (polissemia). Há o fato gerador em abstrato, como hipótese (“Todo aquele que possuir automóvel deve pagar IPVA”).


E há o fato gerador como situação jurídica caracterizada, isto é, que já ocorreu no mundo fenomênico, apropositando a incidência do prescritor da norma. A senhorita Ana Maria, v.g., dona de um BMW em 1997, vê-se obrigada a cumprir o dever jurídico de pagar o IPVA relativo ao ano de 1997. Há que distinguir, portanto, o fato gerador em abstrato e o fato gerador em concreto. Um é previsão de fato gerador e de dever jurídico, o outro já é dever jurídico em razão de o fato previsto ter ocorrido. Eis nascida a relação jurídico-tributária. O tributo, pois, não é mais uma imposição do poder soberano, o que levou muitos autores a dizer que o Direito Tributário regulava a atividade tributária do Estado, parcela da sua atividade financeira, que compreende receita, despesa, crédito público e orçamento (Direito Financeiro lato sensu). Nada disso, o Direito Tributário traduz uma relação de direito cada vez mais justa e isonômica. O Direito Tributário regula a relação jurídica entre o Estado e o contribuinte, sob severos princípios e restrições positivados na Constituição e nas leis (valores recepcionados pelo Direito Positivo).

E, como vimos linhas atrás, é da maior importância – já que várias são as obrigações de dar – distinguir o tributo da multa, do contrato, da indenização e das obrigações heterônomas de Direito Privado (seguro obrigatório, obrigação alimentar etc.) para submeter a relação jurídico-tributária aos ditames rigorosos que regulam e restringem o poder de tributar do Estado, submetendo-o ao Direito, em prol dos contribuintes e da cidadania.

1.11. O tributo como obrigação

Acabamos de ver o tributo traduzido em norma e norma de dever, ex lege, descrita em forma de proposição jurídica genérica. O Código Tributário Nacional mais à frente cuidará da obrigação tributária. É dizer, o tributo pode ser traduzido, também, como obrigação. Luciano Amaro[17] dá-nos a noção tradicional de obrigação e averba:

“Obrigação, porém, além de dever jurídico (a que fica jungida uma parte ou cada uma das partes numa relação jurídica) presta-se a designar a própria relação jurídica expressando o vínculo que enlaça duas (ou mais) pessoas, às quais se atribuem direitos e deveres correspectivos. Ressalta-se a ideia, presente na etimologia do vocábulo, de ligação ou liame, unindo pessoas (credor e devedor) que têm, respectivamente, o poder de exigir e o dever de prestar o objeto da obrigação (dar, fazer ou não fazer).

(…)

Nas obrigações bilaterais as partes são, reciprocamente, credoras e devedoras. No exemplo da compra e venda, ao direito do vendedor (de receber o preço) corresponde o dever do comprador (de pagá-lo) e ao direito do comprador (de receber a coisa) corresponde o dever do vendedor (entregá-la). Nas obrigações unilaterais, ao direito de um corresponde o dever de outro.”

A cita de Luciano Amaro nos aproveita e muito. O tributo é uma obrigação ex lege subdividida em espécies, tema que a seguir será tratado, ao cuidarmos dos impostos, das taxas e das contribuições de melhoria. Será visto que a nossa teoria sobre as espécies tributárias está baseada precisamente na dualidade: obrigações unilaterais (impostos) e obrigações bilaterais (taxas e contribuições). Os impostos independem de o Estado fazer ou dar algo ao contribuinte. As taxas e as contribuições exigem uma atuação do Estado voltada ao contribuinte. No primeiro caso, obrigação unilateral. No segundo, obrigação bilateral. Ambas estão alojadas na norma tributária, como vimos de ver.

[1]         Machado, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1992, pp. 3-5.
[2]         Carvalho, Paulo de Barros. Teoria da Norma Tributária, São Paulo, Lael, 1974, p. 78.
[3]         Nesse sentido, ver Marçal Justen Filho. Sujeição Passiva Tributária, obra de grande merecimento.
[4]         Jarach, Dino. El Hecho Imponible, 2ª ed., Buenos Aires, Abeledo-Perrot, p. 68.
[5]         Merecem destaque as bem elaboradas monografias de Amílcar de Araújo Falcão (O Fato Gerador da Obrigação Tributária, Ed. Revista dos Tribunais, 1973) e Geraldo Ataliba (Hipótese de Incidência Tributária, Ed. Revista dos Tribunais, 1983). Ademais, é muito raro um autor de tomo deixar de dedicar capítulos alentados ao estudo dos aspectos da hipótese de incidência: A. D. Giannini (I Concetti Fondamentali di Diritto Tributario, Utet, 1956), Hector B. Villegas (Curso de Finanzas, Derecho Financiero y Tributario, Buenos Aires, Depalma, 1972), Perez de Ayala (Derecho Tributario, Madrid, Editorial de Derecho Financiero, 1968), Alfredo Augusto Becker (Teoria Geral do Direito Tributário, Saraiva, 1972) e Ruy Barbosa Nogueira (Curso de Direito Financeiro, José Bushatsky, 1971) o fizeram.
[6]         Falcão, Amílcar de Araújo. Sistema Tributário Brasileiro – Discriminação de Rendas, Rio de Janeiro, Edições Financeiras S/A, 1965, p. 112.
[7]         RDP 16/337.
[8]         Nogueira, Ruy Barbosa. Direito Financeiro – Curso de Direito Tributário, 2ª ed., José Bushatsky, 1970, pp. 112-3.
[9]         Ob. cit., pp. 100-1.
[10]        Ataliba, Geraldo. Ob. cit., p. 41.
[11]        Hensel, Albert. Diritto Tributario, trad. de Dino Jarach, Milão, Giuffrè, 1956, p. 148.
[12]        Engisch, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico, 3ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, p. 43.
[13]        Borges, José Souto Maior. Isenções Tributárias, Sugestões Literárias, 1969, p. 176.
[14]        Maynez, Eduardo Garcia. Introducción al Estudio del Derecho, Porrua, 1971, p. 172.
[15]        Becker, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário, São Paulo,  Saraiva, 1963, p. 289.
[16]        Mais perto de nós, O Fato Gerador da Obrigação Tributária de Amílcar de Araújo Falcão, Hipótese de Incidência Tributária de Geraldo Ataliba e El Hecho Imponible de Dino Jarach.
[17]        Amaro, Luciano. Direito Tributário Brasileiro, 1ª ed., São Paulo, Saraiva, 1997, p. 227.

por Sacha Calmon Navarro Coêlho é Doutor em Direito. Jurista. Advogado e parecerista. Conferencista. Autor.

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