Sempre há ideias mais além das palavras, ainda que sejam invisíveis … E elas são o único importante” (SOMOZA, José Carlos. La caverna de las ideias. Madri: Alfaguarda, 2006, pp. 36-37)
Dentro do espírito desta coluna, de fomentar o contraditório nas questões da relação fisco-contribuinte, cogita-se de um caso hipotético para tratar de complexas questões acerca dos grupos econômicos. Determinada pessoa jurídica, permissionária de serviço de transporte público, após contrair vultosa dívida tributária, passa a esvaziar seu patrimônio e deslocar para outras estruturas jurídicas, já existentes ou recém-criadas, com objetivo social e quadro societário semelhantes ou idênticos. Acresça-se ainda o fato de que, em breve e como se sabe pela imprensa local, a permissão caducará, inclusive, pelos maus serviços prestados. O fenômeno é conhecido, popularmente, como blindagem patrimonial.
- existe um conceito de grupo econômico no Direito Tributário?
- é possível corresponsabilizar integrantes dos grupos econômicos por dívidas tributárias contraídas em nome do grupo como um todo?
- quais os critérios para se configurar um grupo econômico?
Quanto ao conceito, deve-se frisar que grupo econômico é algo que surgiu naturalmente na economia, passando a ser uma preocupação do direito positivo ao longo do tempo.
Fábio Konder Comparato conceitua-o como “a associação de empresas juridicamente independentes, atuando sob uma direção unitária”[1]. À luz dessa conceituação clássica, não obstante se encontrarem definições de grupo econômico para fins trabalhistas, previdenciários, consumeristas, etc., a jurisprudência administrativa do CARF encontra três circunstâncias fáticas principais para configuração do grupo econômico:
“i) Existência de sociedades sob direção única em que a principal controla as demais;
ii) Empresas administradas pelos sócios de fato como se uma única empresa fossem, praticando conjuntamente fatos jurídicos tributários e compartilhando seus resultados;
iii) Duas ou mais empresas sob comando único que atuam visando a um fim comum.”[2]
Por outro lado, em variados julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ), afirma-se que a existência de interesse comum entre pessoas físicas e jurídicas, por si só, não configuraria grupo econômico no Direito Tributário, o que, obviamente, indica que os tribunais consideram-no existente nas questões fiscais.
Em tempos de precedentilização, no destaque dado à jurisprudência como fonte do direito, discordar de que os grupos econômicos sejam previstos na base do direito positivo brasileiro, é tarefa dispendiosa e ineficaz[3].
Não há maior distinção, portanto, do conceito clássico do Direito Empresarial para a definição havida como necessária no Direito Tributário. Nos limites deste artigo, não se problematiza maus o conceito ou a definição do grupo econômico, mesmo porque a discussão maior se dá em quais os fatos que atraem a responsabilidade tributária.
Importante investigar se de o Direito Tributário brasileiro em geral, ou de o CTN, em particular, ter cuidado do tema. De início, não se deve esquecer que a publicação do CTN, em 1966, deu-se entre a segunda e a terceira fase do desenvolvimento do direito empresarial, de modo que:
“a regulamentação de grupos econômicos não era uma preocupação. Com a publicação da Lei das Sociedades Anônimas em 1976, os grupos econômicos passaram a receber tratamento legislativo. No entanto, a partir da década de 90, intensifica-se a criação e a expansão desses grupos em razão da busca da otimização de recursos disponíveis, redução de custos e aumento da produtividade”[4].
Assim, nessa conhecida divisão do Direito Empresarial em fases, coloca-se o surgimento dos grupos econômicos como um fenômeno da terceira fase, portanto não coincidente com a época de edição do CTN.
Frise-se, até mesmo por um dever de lealidade dentro de um contraditório real e efetivo no plano da ideias como se espera nesta Coluna, que há quem afirme, com base na Lei de Sociedades Anônimas, a inexistência de responsabilidade subsidiária entre pessoas jurídicas integrantes de um grupo econômico, pois categorizados na Exposição de Motivos deste ato normativo como sociedades não personificadas[5]. Daí que, lacunoso o CTN, ao menos expressamente, seguindo-se a Teoria Geral do Direito Privado, o grupo econômico não atrairia para si qualquer responsabilidade, inclusive a tributária.
Esse silêncio eloquente, alegado pelos contribuintes, é reforçado com outros argumentos, muitas vezes calcados em pareceres de experts, no sentido de que grupo econômico era e é realidade desconhecida no Direito Tributário pátrio e, ainda, que a solidariedade do artigo 124, I, do CTN, exigiria o interesse comum, para atrair a responsabilidade de pessoas físicas e pessoas jurídicas integrantes de um grupo econômico, fosse um interesse jurídico, previamente previsto em lei.
Chega-se, ao ponto, de se alegar que a responsabilização para integrantes de grupos econômicos de fato somente seria possível com alteração do CTN ou previsão em nova lei complementar, tendo em vista o teor do artigo 146, III, da Constituição da República, a marcar reserva desse ato normativo para tratamento de sujeição passiva tributária.
Humberto Ávila sugere, então, que como há reserva de matéria de lei complementar para tratamento de responsabilidade tributária, isso se deu para dar uniformidade ao Direito Tributário como um todo, com uma nítida função garantista.
Entende, por fim, que isso levaria a uma repercussão no modo como a fonte das responsabilidades tributárias – o CTN, sobretudo, em seus artigos já mencionados – deveria ser interpretada: de uma forma garantista e uniforme[6]. Ademais, os artigos 133 e 135, do CTN, trariam uma enumeração taxativa, que não menciona grupos econômicos, não podendo o intérprete criar novos casos de corresponsablização.
Ora, se continuarmos disputando força em torno de argumentos, como esse a contrario sensu posto por Humberto Ávila, recorramos também a Luciano Amaro, para quem se interesse comum for apenas aquele expressamente previsto em lei, o artigo 124, II, do CTN, tornar-se-á inútil, pois logicamente a responsabilidade tributária já demandaría previsão exaustiva na lei[7].
Contentar-se com a tese simplista do silêncio eloquente em torno dos grupos econômicos é desconsiderar que o Direito, ao traçar planos de conduta, deve sofrer atualizações, pela via interpretativa, que mantenham sua autoridade ao longo dos anos. Seria inoportuno e ilógico o Direito Tributário não lidar com uma realidade tão presente nos dias atuais, como é a dos grupos econômicos.
Respondendo-se à primeira perguntada levantada, tem-se que o grupo econômico é realidade existente no Direito Tributário brasileiro, sendo reconhecido pela jurisprudência.
Para tratar das outras duas questões levantadas, o problema passa a ser o que seria esse interesse comum para fins de fixação de um grupo econômico e de aquilatação da responsabilidade tributária dos integrantes.
Na prática, a identificação de um grupo econômico é uma etapa necessária para se verificar a responsabilização de integrantes dos grupos econômicos, à luz dos artigos 134 e 135 do CTN. Toma-se como premissa que a identificação de um grupo econômico não leva necessariamente à corresponsabilização, mas abre o caminho para tanto.
Por isso, ao se afirmar que a corresponsabilização somente poderia haver se o interesse comum se referisse a uma situação prevista no antecedente da regra matriz de incidência, embora afaste se tomar a expressão “interesse comum” como sinônimo de “interesse social” ou “interesse econômico”[8], não vai ao ponto de impedir a corresponsabilização de integrantes de um grupo econômico.
Deve-se compreender, com ressalvas, a ideia construída, administrativa[9] e judicialmente[10], de que “o fato de haver pessoas jurídicas que pertencem ao mesmo grupo econômico, por si só, não enseja a responsabilidade solidária prevista no art. 124, do CTN”. O “por si só” indica apenas que são necessários critérios outros, além de alguma unidade entre pessoas jurídicas, para que se considere verdadeiro grupo econômico para fins de fixação de responsabilidade tributária.
Doutrina e jurisprudência já identificaram uma série de fatos que atraem a corresponsabilização:
- Ocupação das mesmas instalações;
- Utilização dos mesmos utensílios e equipamentos para exercício da atividade econômica;
- Variação da receita, com o aumento da sociedade sucessora e proporcional diminuição da sociedade sucedida;
- Mesmo controle acionário;
- Mesma força de trabalho;
- Mesmo sistema de informática, sobretudo se for algo específico ao negócio e contiver programação não encontrável em softwares “de prateleira”;
- Similaridade do nome comercial, fantasia, logotipos e marcas;
- Atendimento da mesma carteira de clientes;
- Simultaneidade entre o início da exploração da atividade econômica pelo adquirente dos ativos e a sua interrupção pelo alienante;
- Coincidência de um grande número de prestadores de serviço e fornecedores;
- Assunção de dívidas, pelo adquirente, junto a fornecedores do alienante;
- Existência de compromisso de não-concorrência ou de colaboração;
- Celebração de contratos de prestação de serviços, envolvendo a transferência de know-how entre as pessoas envolvidas;
- Identidade de setor contábil;
- Despesas comuns de funcionamento;
- Contrato Comum de Trabalho;
- Transferência contínua de recursos entre os integrantes do grupo; etc.[11]
Está por se construir, entretanto, critérios gerais para fixação de quais indicadores possuem maior ou menor relevância, de quais indicadores combinados indicam a corresponsabilização etc. Por enquanto, a casuística tem imperado, o que sugere duas preocupações.
A uma, devem-se levar os fatos a sério, de modo que as provas contrárias apresentadas pelos contribuintes não podem ser relegadas a segundo plano, pois a caracterização de um grupo econômico e da corresponsabilização traz consequências jurídicas importantes.
A duas, recomenda-se parcimônia na fixação dos precedentes, pois cada um firmando em torno da configuração ou não do grupo econômico de fato e de sua corresponsabilização ou não, se dá à luz de conjunto probatório, para casos em torno dos quais se fixam propriedades relevantes de aplicação.
Essa última preocupação tem a ver, portanto, com coibir a fixação de uma jurisprudência defensiva, com o estabelecimento de cláusulas de barreira contra a real análise dos fatos, independentemente do beneficiado com essa prática.
Voltando ao caso apresentado, qual seria a sua resposta, cara leitora ou leitor, em relação à situação vivenciada? Existiria fundamento para corresponsabilizar os sócios e a pessoa jurídica que praticou a blindagem? O que diria se lhe relatasse que havia um processo em curso para revogar a permissão concedida, o que inviabilizou, a curto prazo, a empresa? O que me responderia se eu lhe revelasse, agora, que da última estrutura societária participavam funcionários da pessoa jurídica original e que já bem nenhum restava? Será que o Direito Tributário não traça planos de condutas contrários a isso?
Comecei o artigo com um epíteto falando sobre as palavras trazerem ideias, e isso ser o que realmente importa. Fecho meu escrito inaugural na Coluna, propondo que existe, sim, uma cláusula geral de corresponsabilização de grupos econômicos, o que não implica a mera caracterização indicar corresponsilização sempre e para todos os casos. Levar os fatos a sério implica concretizar as dimensões da segurança jurídica: calculabilidade, cogniscibilidade e confiabilidade.
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[1] COMPARATO, Fábio Konder. Direito Empresarial. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 275.
[2] GAMA, Tácio Lacerda. Mutações no Código Tributário Brasileiro Nacional e os contornos da responsabilidade tributária entre empresas do mesmo grupo econômico. In: TEIXEIRA, Alessandra Brandão; SANTIAGO, Igor Mauler; FRATTARI, Raphael; LOBATO, Valter de Souza (orgs.). Código Tributário Nacional 50 Anos – Estudos em Homenagem à Professora Misabel Abreu Machado Derzi. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 580.
[3] A bem da verdade, não estou defendendo que a jurisprudência pode ir além das fontes legisladas, em qualquer caso e sem qualquer critério. Sob o tema em discussão e dentro dos limites da teoria analítica do direito, deixo para momento futuro tratar se, realmente, haveria uma lacuna normativa – ausência de regulação jurídica, ou seja, ausência de estipulação de uma solução para um universo de casos – ou axiológica – regulação jurídica deficiente ou injusta, “situações para as quais, se bem existe uma solução (…), é axiologicamente inadequada (ALCHÓURRON, Carlos Eduardo; BULYGIN, Eugenio. Sistemas normativos: Introduccíon a la metodologia de las ciências jurídicas. 2ª edição, Buenos Aires: Editorial Austrea, 2012, pp. 155-156).
[4] SAMPAIO, Júnia Roberta Gouveia. In: “MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito; MURICI, Gustavo Lanna; RODRIGUES, Raphael Silva. O Cinquentenário do Código Tributário Nacional. Belo Horizente: Del Plácido Editora, 2017, p. 582.
[5] Idem, p.583.
[6] ÁVILA, Humberto. Grupos Econômicos. In: “Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT, Belo Horizonte, ano 14, n. 82, jul./ago. 2016, p. 1, versão digital da Plataforma Fórum de Conhecimento Jurídico.
[7] AMARO, Luciano. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 11ª ed., São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 314-315.
[8] SAMPAIO, J. R. G.. Op. cit., p. 585.
[9] BRASIL, CARF, Processo 15504.727813/2012-99, 2ª Seção de Julgamento, j. em 7.10.2014.
[10] BRASIL, STJ, EREsp n. 859.616/RS, 1ª Seção, Rel. Min. Mauro Campbell, j. em 09.02.2011.
[11] Louvei da lista presente em GAMA, T. L. Op. cit., pp. 580-581; e da jurisprudência do CARF.
Daniel Giotti de Paula - Procurador da Fazenda Nacional, Doutorando em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ, Ex-Diretor do Centro de Altos Estudos Jurídicos da PGFN no Estado do Rio de Janeiro, professor-convidado de Direito Financeiro, Direito Material e Processual Tributário do programa de pós-graduação lato sensu do LFG, da PUC-Rio, da UFF, da FGV-Rio e do INTEJUR.
Fonte: Jota.info/
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