Está gerando grandes debates jurídicos a Medida Provisória 764, de 26 de dezembro último, com teor abaixo transcrito, que autoriza a cobrança de preços diferenciados, a depender da forma de pagamento (dinheiro, cheque ou cartão).
Entre os consumeristas, existem argumentos consistentes contra a norma.
De início, o seu conteúdo não poderia ser objeto de medida provisória, mas apenas de lei, devidamente debatida no Congresso Nacional.
“CONSUMIDOR E ADMINISTRATIVO. AUTUAÇÃO PELO PROCON. LOJISTAS. DESCONTO PARA PAGAMENTO EM DINHEIRO OU CHEQUE EM DETRIMENTO DO PAGAMENTO EM CARTÃO DE CRÉDITO. PRÁTICA ABUSIVA. CARTÃO DE CRÉDITO. MODALIDADE DE PAGAMENTO À VISTA. ‘PRO SOLUTO’. DESCABIDA QUALQUER DIFERENCIAÇÃO. DIVERGÊNCIA INCOGNOSCÍVEL. 1. O recurso especial insurge-se contra acórdão estadual que negou provimento a pedido da Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte no sentido de que o Procon/MG se abstenha de autuar ou aplicar qualquer penalidade aos lojistas pelo fato de não estenderem aos consumidores que pagam em cartão de crédito os descontos eventualmente oferecidos em operações comerciais de bens ou serviços pagos em dinheiro ou cheque. 2. Não há confusão entre as distintas relações jurídicas havidas entre (i) a instituição financeira (emissora) e o titular do cartão de crédito (consumidor); (ii) titular do cartão de crédito (consumidor) e o estabelecimento comercial credenciado (fornecedor); e (iii) a instituição financeira (emissora e, eventualmente, administradora do cartão de crédito) e o estabelecimento comercial credenciado (fornecedor). 3. O estabelecimento comercial credenciado tem a garantia do pagamento efetuado pelo consumidor por meio de cartão de credito, pois a administradora assume inteiramente a responsabilidade pelos riscos creditícios, incluindo possíveis fraudes. 4. O pagamento em cartão de crédito, uma vez autorizada a transação, libera o consumidor de qualquer obrigação perante o fornecedor, pois este dará ao consumidor total quitação. Assim, o pagamento por cartão de crédito é modalidade de pagamento à vista, pro soluto, implicando, automaticamente, extinção da obrigação do consumidor perante o fornecedor. 5. A diferenciação entre o pagamento em dinheiro, cheque ou cartão de crédito caracteriza prática abusiva no mercado de consumo, nociva ao equilíbrio contratual. Exegese do art. 39, V e X, do CDC: ‘Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (…) V – exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva; (…) X – elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços”. 6. O art. 51 do CDC traz um rol meramente exemplificativo de cláusulas abusivas, num ‘conceito aberto’ que permite o enquadramento de outras abusividades que atentem contra o equilíbrio entre as partes no contrato de consumo, de modo a preservar a boa-fé e a proteção do consumidor. 7. A Lei n. 12.529/2011, que reformula o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, considera infração à ordem econômica, a despeito da existência de culpa ou de ocorrência de efeitos nocivos, a discriminação de adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços mediante imposição diferenciada de preços, bem como a recusa à venda de bens ou à prestação de serviços em condições de pagamento corriqueiras na prática comercial (art. 36, X e XI). Recurso especial da Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte conhecido e improvido”. (STJ, REsp 1479039/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/10/2015, DJe 16/10/2015)
“RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA VISANDO À ANULAÇÃO DE AUTOS DE INFRAÇÃO LAVRADOS POR PROCON MUNICIPAL ANTE O RECONHECIMENTO DE VIOLAÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR PELA PRÁTICA DE PREÇOS DIFERENCIADOS PARA VÁRIAS ESPÉCIES DE PAGAMENTO À VISTA: DINHEIRO, CHEQUE OU CARTÃO, DO MESMO PRODUTO. PRÁTICA ABUSIVA. CONFIGURADA. PRECEDENTES DO STJ: RESP 1.479.039/MG, REL. MIN. HUMBERTO MARTINS, DJE 16.10.2015 E RESP 1.133.410/RS, REL. MIN. MASSAMI UYEDA, DJE 7.4.2010. RECURSO ESPECIAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. 1. A diferenciação de preço na mercadoria ou serviço para diferentes formas de pagamento à vista: dinheiro, cheque ou cartão de crédito caracteriza prática abusiva no mercado de consumo, nociva ao equilíbrio contratual e ofende o art. 39, V e X da Lei 8.078/90. 2. Manutenção das autuações administrativas realizadas pelo PROCON do Municipal de Vitória/ES em face da referida prática abusiva do comerciante Recorrente em seu estabelecimento. 3. Precedentes de outras Turmas deste Tribunal Superior (REsp. 1.479.039/MG, Rel. Min. HUMBERTO MARTINS, DJe 16.10.2015 e REsp. 1.133.410/RS, Rel. Min. MASSAMI UYEDA, DJe 7.4.2010). 4. Recurso Especial do comerciante ao qual se nega provimento”(STJ, REsp 1.610.813/ES, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/08/2016, DJe 26/08/2016).
Estou totalmente alinhado aos argumentos constantes dos julgados. Tanto, que cito a cobrança de preços diferenciados como um dos exemplos atuais de aplicação do inciso V do art. 39 do Código de Defesa do Consumidor, que elenca como prática abusiva a exigência de vantagem manifestamente excessiva do consumidor (TARTUCE, Flávio. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: GEN/Método, 5ª Edição, 2016, p. 480).
Poderiam os comerciantes transferir os valores relativos às taxas de administração do cartão de crédito para os consumidores? Penso que não, estando aqui a vantagem manifestamente excessiva, a configurar a ilegalidade da Medida Provisória.
Essa ilegalidade, em clara lesão aos direitos do consumidor, torna também sem sentido jurídico o conteúdo do parágrafo único do art. 1º da MP, que estabelece a nulidade absoluta da cláusula contratual que proíba ou restrinja a citada diferenciação de preços. Ora, cláusula abusiva haverá se existir previsão contratual dessa diferenciação, o que tem enquadramento no art. 51 do CDC, na linha do que reconhece o primeiro aresto antes transcrito. Conforme destacou o Ministro Humberto Martins em seu voto,”o art. 51 do Código de Defesa do Consumidor traz rol meramente exemplificativo de cláusulas abusivas, num conceito aberto que permite o enquadramento de outras abusividades que atentem contra o equilíbrio entre as partes no contrato de consumo, de modo a preservar a boa-fé e a proteção do consumidor. Como bem reconheceu o Tribunal de origem, o lojista que, para mesmo produto ou serviço, oferece desconto ao consumidor que paga em dinheiro ou cheque em detrimento daquele que paga em cartão de crédito estabelece cláusula abusiva apta a transferir os riscos da atividade ao adquirente, lembrando-se que tal abusividade independe da má-fé do fornecedor”.
Também é forte o argumento jurídico da existência de discriminação dos adquirentes, o que é vedado expressamente pela Lei n. 12.529/2011. O seu art. 36 elenca atos que constituem infração da ordem econômica, gerando responsabilização independentemente de culpa. Entre essas condutas, está previsto no § 3º, letra d, inciso X, do comando:” discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços “.
Para que a analisada Medida Provisória tivesse aplicação no Brasil, seria necessário revogar esse último diploma. E não se olvide, em complemento, que a igualdade entre os consumidores é um dos seus direitos básicos, expresso no inciso II do art. 6º do CDC, também atingido pela MP 764.
Ademais, será que, com a norma, os preços com pagamento em dinheiro vão diminuir ou os preços com pagamento via cartão de crédito irão aumentar? Acredito mais no segundo caminho, infelizmente, pela nossa realidade de mercado.
De toda sorte, há quem veja a regra com bons olhos, pois ela supostamente afastará do consumidor a cobrança dos juros abusivos praticados pelas administradoras de cartão de crédito, irá incentivar a economia e evitar o superendividamento.
Deixo, então, o tema para debate e para as devidas reflexões.
E um Feliz 2017 para todos. Melhor do que 2016, esperamos.
Flávio Tartuce é Doutor em Direito Civil e Graduado pela Faculdade de Direito da USP. Mestre em Direito Civil Comparado e Especialista em Direito Contratual pela PUCSP. Professor Titular permanente do Programa de Mestrado e Doutorado da Faculdade Autônoma de Direito (FADISP-ALFA). Professor do Curso de Graduação da Escola Paulista de Direito (EPD, São Paulo), na disciplina Direito Contratual. Coordenador e Professor dos Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Civil e Processual Civil, Direito Civil e Direito do Consumidor, Direito Contratual e Direito de Família e das Sucessões da EPD. Professor exclusivo da Rede de Ensino LFG nos cursos preparatórios para as carreiras jurídicas. Professor convidado em outros cursos de Pós-Graduação Lato Sensu pelo País, em Escolas da Magistratura, na AASP e na ESA-OABSP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), do Instituto Luso-Brasileiro de Direito Comparado, do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), da Comissão de Direito Civil da OABSP, do Instituto Brasileiro de Política e de Direito do Consumidor (BRASILCON), do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil), da International Society of Family Law (ISFL) e da Rede Brasileira de Pesquisadores em Direito Internacional (RBPDI).Parecerista membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Civil, do IBDCivil, e da Revista Brasileira de Direito das Famílias e das Sucessões, do IBDFAM. Membro avaliador do CONPEDI (Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito). Palestrante em cursos, congressos e seminários jurídicos. Advogado e consultor jurídico em São Paulo.
Fonte: Genjuridico.com.br/
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